A renovação litúrgica do Vaticano II não surgiu do nada. Ela é consequência de mais de um século daquilo que se intitulou de «Movimento litúrgico». Muitos autores afirmam que este começa com Dom Prosper Gueranger, re-fundador da Abadia beneditina de Solesmes (1833).
A influência da renovação beneditina de Solesmes (Dom Prosper Gueranguer)
Gueranger consegue adquirir a antiga abadia de Solesmes e voltar a fundar nela uma comunidade beneditina. É neste esforço por recuperar a herança monástica perdida na revolução francesa que surge o empenho por recuperar o rito romano com o estilo medieval, pois considera-o a expressão da maturidade histórica do cristianismo. Promove a renovação dos paramentos (casulas góticas) e objetos litúrgicos através de estudos e de trabalhos em oficinas artesanais. É celebre a recuperação por parte de Solesmes do canto gregoriano, tendo sido realizado um trabalho notável de recolha de anotações musicais antigas e a sua transcrição e execução. A liturgia de Solesmes resplandece no seu decoro e nas suas formas provocando admiração e imitação, levando à sua expansão, sobretudo, a outros mosteiros beneditinos.
O Movimento Litúrgico começa, portanto, em Solesmes e estende-se às grandes abadias beneditinas do norte de europa: Beuron e Maria-Laach na Alemanha, e Mont-Cesar e Maredsous na Bélgica. O objetivo deste movimento é revitalizar a grande oração da Igreja, que tinha sido marginalizada e substituída por uma pluralidade de devoções.
A grande intuição do Abade de Solesmes é que a liturgia é a Oração da Igreja e, no fundo, do próprio Cristo. Nela dá-se uma presença privilegiada da graça. É a expressão mais genuína da Igreja e da Tradição.
Ideias, agora comuns, como a de que a Palavra de Deus que se lê na Liturgia tem um valor especial, são desenvolvidas e estudadas nestes verdadeiros centros de espiritualidade.
As duas guerras mundiais afetaram o desenvolvimento do movimento litúrgico, porém, este renasceu com especial força depois de cada uma delas. A causa e manifestações desse vigor foram o aprofundamento da liturgia nos planos teológico, bíblico, patrístico e pastoral. Foram criados institutos litúrgicos em Paris e Tréveris. Multiplicaram-se semanas e congressos diocesanos, nacionais e internacionais e publicaram-se revistas científicas e divulgativas.
Podemos destacar a abadia alemã de Maria-Laach, sobretudo, a partir de 1918, como o grande centro propulsor do conhecimento científico da liturgia. A ela estão indissociavelmente unidos nomes como Herwegen, Guardini, Odo Casel e outros.
A redescoberta dos mistérios (Odo Casel).
Odo Casel nasceu numa pequena povoação da Renania. O seu pai era trabalhador dos caminhos de ferro. Odo começou a estudar filosofia clássica em Bonn (1905) onde conheceu Ildefons Herwegen que mais tarde seria abade do mosteiro de Maria-Laach. Pouco depois de começar o ano, decide entrar na abadia e aí vai estudar filosofia, teologia e irá professar em 1907. A finais de 1908 é enviado para a abadia de S. Anselmo em Roma para concluir os estudos em teologia. Foi ordenado (1911) e elaborou uma tese sobre S. Justino Mártir. Assim, entrou em contato com a maneira patrística de explicar os sacramentos (mystagogia).
Entre 1913 -1918 voltou á universidade de Bonn para terminar a filosofia clássica que tinha começado. Concluiu com uma tese sobre o silêncio místico nos filósofos gregos.
No vocabulário cristão chamam-se «mistérios» às grandes verdades de fé. O grande teólogo alemão, Mathias Scheeben, popularizou a expressão com a sua magnífica obra «Os mistérios do cristianismo» (1865).
Scheeben defendia que a teologia é, sobretudo, a ciência dos mistérios e que há três grandes planos nos mistérios cristãos:
– o mistério de Deus em si mesmo (Trindade)
– o mistério de Deus feito homem (Encarnação, Jesus Cristo)
– o mistério da salvação que se nos aplica (mistérios da graça, da Igreja, da Eucaristia, dos sacramentos, da glorificação e predestinação)
A esta noção de mistério na realidade e no conhecimento Odo Casel junta a noção vital e litúrgica: o cristianismo é, acima de tudo, participar no mistério de Cristo presente em toda a História desde o seu centro que é o mistério pascal.
«O cristianismo (…) não se deve considerar como uma certa conceção do mundo que se derive de um contexto religioso, ou um sistema doutrinal-religioso ou teológico, nem puramente uma lei moral, mas um mistério, no sentido paulino do termo (…). É Deus que se revela a si mesmo por meio de factos e de gestos teândricos dos quais brotam a vida e a força» (“O mistério do culto no cristianismo”, p. 11).
Com o tempo esta intuição de Casel generalizar-se-á, ao ponto do Catecismo da Igreja Católica intitular a parte que se refere ao culto, à liturgia e aos sacramentos precisamente como «A celebração do mistério cristão». Porém, até lá o autor terá de enfrentar grande oposição, desconfiança e prudência, por parte dos colegas e da própria hierarquia, pois é pouco preciso e parece relacionar, de alguma forma, esta noção de mistério com as religiões mistéricas pagãs, enquanto presta pouca ou nenhuma atenção à origem pascal judaica da oferenda de Cristo.
O autêntico espírito da liturgia, de Guardini.
Romano Guardini (1885-1968) ajudou a renovar o conceito de Liturgia, sendo um nome emblemático do Movimento Litúrgico. Na Páscoa de 1918, Guardini publica «O espírito da Liturgia», obra de êxito absolutamente notável e que contribui significativamente para a difusão do Movimento Litúrgico nos ambientes da juventude católica não só alemã, mas também europeia. Este livro era o primeiro de uma nova coleção, «Ecclesia orans», criada pelo abade de Maria-Laach, D. Ildefonso Herwegen (+1946), com o fim de promover a sensibilidade litúrgica dentro da Igreja. Para Guardini, a liturgia era a oração pública oficial da Igreja e, portanto, não só um ato de piedade individual destinado à edificação do individuo, mas sim uma homenagem que a comunidade dos fiéis rende a Deus. A renovação litúrgica era inseparável da redescoberta da Igreja como comunidade mística. Por isso, para Romano Guardini a Liturgia é uma forma de vida capaz de dar forma à vida cristã. O dom total da Graça celebra-se na ação litúrgica: «Viver liturgicamente, é – levado pela Graça e conduzido pela Igreja – tornar-se uma obra de arte viva diante de Deus» (p. 78).
«Produziu-se um processo religioso de alcance imprevisível: a Igreja desperta nas almas», escrevia Guardini numa célebre conferência de 1921 intitulada «O sentido da Igreja». Sublinhava assim a importância fundamental da dimensão comunitária da liturgia.
Pedro Boléo Tomé
Bibliografia consultada:
— J. L. LORDA, El movimiento litúrgico, Palabra, Madrid 2016;
— ID., Odo Casel y la teología de los misterios, Palabra, Madrid 2017;
— F.M. AROCENA, Teología litúrgica, Palabra, 2017
— J.A. ABAD, La celebración del Misterio cristiano, 1996.
— R. GUARDINI, O Espírito da Liturgia, Fátima, 2017.