Estou preocupado. Ultimamente, estão surgindo pessoas que, sem a devida preparação doutrinal e pastoral, começam a estudar moral e acabam desenvolvendo transtornos obsessivos. Colegas padres me relatam casos de falta de docilidade e mesmo de julgamento acerca de bons sacerdotes a partir de critérios rigoristas. A situação é alarmante, pois o único meio para sair deste problema é a obediência a experimentados e criteriosos confessores. Mas essas pessoas acabam se erigindo em juízas de si mesmas. Pretendo apresentar alguns apontamentos sobre isso.
Pe. José Eduardo Oliveira e Silva
ESCLARECENDO CONCEITOS EM TORNO DO ESCRÚPULO
Horror ao pecado. Esta é uma disposição habitual em toda alma que busca a santidade. Fruto do dom temor de Deus, o qual, como todos os dons do Espírito Santo, procede da caridade, pela qual Ele inabita em nosso espírito, o horror ao pecado é uma consequência do nosso amor sobrenatural por Deus, de modo que a tônica geral da vida cristã não é negativa (ou seja, uma busca incessante para encontrar pecados), mas positiva (isto é, o desejo de unir-se cada vez mais a Cristo pela fé e pela caridade, exercitadas na oração).
Escrúpulo. A consciência escrupulosa é um estado da mente em que está conjugada uma consciência delicadíssima com uma incapacidade para a prudência, quer dizer, quanto mais se explica para a pessoa um princípio moral, menos ela consegue entender. É um fenômeno muito raro. As pessoas que o sofrem, em geral, são simples e dóceis, querendo verdadeiramente encontrar um confessor criterioso e paciente ao qual obedeçam com toda a confiança. O estudo da moral apenas perturba mais o escrupuloso, pois ele é quase incapaz de prudência, não consegue realmente discernir.
Transtorno obsessivo-compulsivo. É uma psicopatologia que se caracteriza por pensamentos, imagens ou impulsos recorrentes que trazem ansiedade e perturbação. Pode causar uma espécie de escrúpulo, pois o doente, com ideias fixas e contínuas acerca do pecado, acaba por se tornar maníaco em vasculhar pecados antigos ou atuais. É bastante diferente do escrúpulo moral, principalmente porque neste a pessoa se submete a um diretor com tranquilidade, naquele a pessoa não consegue ficar tranquila para se confiar a ninguém, sua mente está sempre perturbada. Um dos piores quadros se dá quando o doente encontra alguém que, ao invés de encaminhar-lhe ao médico, alimenta a fixação psíquica, justificando as suas preocupações. Em muitos casos, é necessário tratamento psiquiátrico com medicação e psicoterapia, além da direção espiritual e da confissão.
A ignorância presunçosa e o hobby dos princípios. Contudo, a maioria dos casos que estão em circulação não é nenhum dos anteriores. Trata-se apenas de sujeitos que mesclaram conhecimento aparente com arrogância espiritual: munidos de alguns princípios que não são capazes de manejar, aplicam-se a ser juízes de si mesmos e dos outros, tentando raciocinar nos termos destes princípios mal aprendidos e aplicá-los a qualquer ação que se lhes apresente. Levianos, acabam transformando numa espécie de hobby a análise de casos morais que decerto dariam debate entre moralistas sérios ou são em si insignificantes, importunando nas madrugadas a sacerdotes com perguntas pueris, tais como se é pecado pentear o cabelo de um modo ou se colocar aparelhos nos dentes é vaidade… E tudo em termos de “princípios”. A consequência desse “exercício” para quem não tem o devido traquejo moral é que, ao invés de terem uma consciência mais clara, vão se tornando cada dia mais confusos e, isso, sem o perceberem direito. Analisam ações a partir de princípios equivocados, aplicam errado os princípios que nem conhecem direito, subordinam princípios superiores a inferiores e terminam por se tornar impermeáveis a todo e qualquer bom senso.
A CONFISSÃO E OS (PSEUDO) ESCRUPULOSOS
O que faz uma pessoa se apresentar com trinta páginas escritas em letra miúda, frente e verso, dizendo que quer fazer uma nova confissão geral, pois a que fez na última semana teria sido inválida? O que a faz, na semana seguinte, chegar com vinte novas folhas, do mesmo modo escritas, alegando serem apenas de pecados esquecidos?
De fato, não é o escrúpulo. É a ignorância presunçosa.
O escrúpulo caracteriza-se por um medo do pecado e pela desorientação de uma consciência flutuante, que necessita de ajuda para sair da insegurança, para entender a moralidade dos próprios atos.
As pessoas acima descritas são, ao contrário, munidas de muita segurança: querem confessar cada pecado cometido na vida passada e chegam a passar duas horas aos pés de um padre, muitas fazes fazendo leituras apressadas e até mesmo explicando e repetindo coisas já ditas.
Ora, tais comportamentos se devem apenas à falta de conhecimento da doutrina católica a respeito do modo de confessar-se.
O Concílio de Trento estabeleceu que a confissão dos pecados deve ser pela “espécie” e pelo “número” (De Sacramento Paenitentiae, cc. 7-8 in DS 1707-1708). A mesma referência é tomada na atual Instrução Geral para o Sacramento da Penitência, n. 7. Veja-se também o Catecismo da Igreja Católica, nn. 1456 e 1497).
Deixe-me dar um exemplo hipotético: “Padre, quando eu tinha 19 anos, eu me envolvi com uma moça e fui à sua casa, permaneci duas horas sozinho com ela… Então, começou a surgir um clima entre nós e ela começou a me seduzir. Daí etc. etc.”. Este modo de se acusar está completamente errado e é abusivo. Não interessa ao padre, no caso, um conto erótico. Bastaria dizer: “Cometi um pecado de fornicação (completa ou incompleta)”, esta é a espécie moral.
Estaria igualmente errado alguém confessar os seus pecados pelo “gênero” dos mesmos. Por exemplo, “pequei contra a castidade”. Quantas espécies de pecados contra a castidade existem? Adultério, masturbação, pornografia, fornicação, concubinato, atos homossexuais, etc. Muitos! É nas espécies que se deve confessar, não no gênero nem nos atos individuais.
O Concílio de Trento estabelece, também, que se deve mencionar as “circunstâncias” que podem mudar a espécie do ato. Por exemplo, se uma pessoa diz “padre, cantar é pecado?”, a resposta seria obviamente que “em si, não”. Contudo, se a pessoa cantasse uma música profana para atrapalhar um ato de culto, isso alteraria a espécie moral: a pessoa não estaria propriamente cantando, o culto não seria uma mera circunstância, pois, ao fazê-lo, estaria “interrompendo um ato de culto”, esta é espécie moral.
Portanto, as circunstâncias que interessam são apenas as relevantes para a determinação da espécie do ato. Por exemplo, se uma pessoa diz que cometeu fornicação, mas foi com uma pessoa consagrada, essa “circunstância” alteraria a moralidade do ato, pois, ao invés de cometer apenas uma fornicação, cometeria também um pecado de sacrilégio. No entanto, se isso aconteceu à meia-noite ou ao cantar do galo, estas já não são circunstâncias relevantes.
A distinção numérica, por sua vez, precisaria ser o quanto mais exata possível. Obviamente, isso nem sempre é fácil. No entanto, essa acusação pode ser tanto por ato individual quanto por período.
Exemplificando: seria tão correto dizer “eu disse dez mentiras” como dizer “durante os últimos cinco meses, eu disse cerca de uma mentira a cada quinze dias”. Aqui, mais uma vez, se a mentira, por exemplo, fosse para um padre dentro do sacramento da confissão, essa circunstância alteraria a moralidade do ato, pois não seria apenas uma mentira, mas um sacrilégio que invalidaria a confissão e se constituiria num pecado moral a mais.
Ou exemplo: “durante dez anos de minha vida, faltei todos os domingos à missa”. Pronto! O
pecado está confessado tanto na espécie quanto no número.
Quando uma pessoa confessa os pecados por espécie e por número não consegue encher facilmente tantas folhas… Isso é apenas fruto da ignorância presunçosa. Não é escrúpulo nem muito menos delicadeza de consciência. É tão somente ignorância.
Aconselho aos colegas padres que, em acontecendo tais coisas, mandem a pessoa de volta para casa, após darem essa explicação acima, a fim de que façam uma redução dos pecados à sua espécie e ao seu número. Deste modo, não cooperamos com a ignorância. Ao contrário, ajudamos essas pessoas, muitas vezes egoístas e inoportunas, a ganharem virtudes e a se corrigirem diante de Deus.
A IGNORÂNCIA SOBRE O MODO DE ATUAR DA ABSOLVIÇÃO SACRAMENTAL
Há em circulação certa glamourização de uma delicadeza de consciência encenada, mais fruto da mania de minúcias que de uma reta compreensão doutrinal das devidas disposições do penitente.
Segundo o Catecismo de São Pio X (preste-se atenção à citação): “Quais são os efeitos do Sacramento da Penitência? O Sacramento da Penitência confere a graça santificante, pela qual são perdoados os pecados mortais e também os veniais que se confessaram com sincero arrependimento” (n. 691).
No imaginário do pseudoescrupuloso existe a necessidade nervosa de uma confissão exaustiva dos pecados, para além da espécie e do número (ou seja, ele tem a necessidade psicológica de contar cada falta detalhadamente para sentir-se aliviado), como se a absolvição fosse conferida individualmente a cada idem do check-list apresentado, como se dependesse mais disso que do poder sacramental mesmo.
Na resposta de São Pio X fica claro que o efeito principal da absolvição sacramental é conferir a graça santificante perdida pelos pecados mortais ou danificada pelos pecados veniais e é mediante a graça santificante que são perdoados os pecados, não o contrário.
A força dessa infusão da graça é tão exuberante que São Pio X afirma: “quem deixou de confessar por esquecimento um pecado mortal, ou uma circunstância necessária, fez uma boa confissão, desde que tenha empregado a devida diligência no exame de consciência” (n. 754), embora com a ressalva de que, “se um pecado mortal esquecido na confissão volta depois à lembrança, somos obrigados, sem dúvida, a acusá-lo na primeira vez que nos confessarmos novamente” (n. 755).
Algumas pessoas, movidas por pura ignorância, querem repetir confissões inteiras por sentirem que as mesmas são invalidadas por causa de um esquecimento.
São Tomás mesmo explica que quem confessa todos os pecados que tem na memória e, de maneira geral, aqueles de que sinceramente se esqueceu não está procedendo dissimuladamente, mas com toda a simplicidade, e, deste modo, alcança o perdão (cf. Suma Teológica, Suplemento, q. 10, a. 5, sed contra), de modo que não há cabimento para considerar como dissimulação aquilo que é apenas um involuntário esquecimento.
Se entendemos bem aquilo que escrevi anteriormente, ou seja, que os pecados se confessam pela espécie e pelo número, e que se deve confessar integralmente aqueles de que se tenha lembrança, não há dúvida de que a graça divina é comunicada pela absolvição sacramental e, portanto, que se recebe validamente o perdão divino dos pecados por força da absolvição mesma.
Quando acentuamos a tônica mais na confissão, e nessa abusivamente detalhada, que na absolvição decaímos em certa tendência protestante, que considera esta última apenas como uma mera declaração de que os pecados confessados são perdoados (cf. Concílio de Trento, Cânones sobre o sacramento da penitência, c. 9) e não como causa instrumental para a infusão da graça.
Em resumo, não quero aqui retirar importância da integridade da confissão, quero apenas mostrar que certa impressão de escrupulosidade é tão somente falta de Catecismo! Para ser íntegra, a confissão precisa ser clara, completa, concisa e concreta: ir direto à espécie do pecado e ao seu número, sem precisar descer a detalhamentos angustiados e a histórias intermináveis.
Assim como um promotor de justiça acusa o réu apenas da espécie do crime, nós devemos sobriamente nos acusar ao sacerdote de nossos pecados. Isto é resultado de uma fé doutrinalmente formada acerca da natureza da absolvição. O que passa disso é ignorância disfarçada de requinte de informação e daí sobra teologia moral mal aprendida e falta o velho e bom catecismo da doutrina cristã.
A VOLUNTARIEDADE DOS ATOS E A CONFUSÃO DOS PSEUDOESCRUPULOSOS
Quando uma pessoa insiste em confessar um a um todos os pensamentos estúpidos de que a mente é capaz ou de relatar todas as imperfeições que cometeu como se fossem pecados consumados, estamos diante de uma ignorância persistente.
Há desde quem se queira acusar pelo fato de ter pisado numa barata aos cinco anos de idade até quem o queria por ter deixado o terço cair da mão, uma vez, na semana passada.
Obviamente, essas pessoas são incapazes de entender que apenas os atos humanos são passíveis de moralidade.
A Teologia Moral tradicionalmente distingue entre os “atos do homem” e os “atos humanos”. Os primeiros são quaisquer atos realizados pelo homem sem voluntariedade (piscar, digerir, os atos reflexos etc.) e os segundos são aqueles realizados com voluntariedade, ou seja, porque se quis.
São Tomás de Aquino explica, na Suma Teológica (cf. I-II, q. 8), que a vontade é um “apetite racional” que segue uma “forma apreendida”. Em outras palavras, ninguém pode querer sem ter ciência do que quer (como diziam os antigos, “nihil volitum nisi præcognitum”, “ninguém pode querer sem ter conhecido antes”). O mesmo princípio é reafirmado por São João Paulo II na Encíclica Veritatis Splendor, n. 78.
Os pseudo-escrupulosos, em sua sanha por inventar pecados, acabam sempre reinterpretando os seus atos involuntários como sendo objetivamente pecaminosos. Por exemplo, “quando eu fiz aquilo eu poderia ter causado aquela consequência ruim” — consideração absurda que no momento da ação ele mesmo não tinha presente.
Quando entram no mundo das “omissões”, então, a coisa se complica infinitamente, pois começam a inventar coisas que poderiam ter feito e não fizeram, não percebendo que a omissão consiste na escolha de não realizar um dever, entendido como tal na hora da escolha. Imaginem a neurose que é ficar investigando tudo que se poderia ter feito.
Por isso, os falsos escrupulosos têm verdadeira fome por tratados de moral, porque os ajudam a encontrar pecados que eles nunca imaginaram que teriam cometido, atribuindo-lhes a posteriori uma voluntariedade que não tiveram no momento em que supostamente realizaram ou omitiram aquelas ações. — Obviamente, eu não incluo aqui os atos “voluntários in causa” ou “voluntários indiretos” (quando uma ação é diretamente querida como meio para alcançar um efeito produzido).
Segundo a doutrina católica, a ignorância do fato exime de culpa (nem sempre a ignorância da lei, pois, às vezes, o interessado teria obrigação de conhecê-la; daí que não tem sentido aquela desculpa de quem diz “prefiro nem saber para não ter que cumprir”). Mas os falsos escrupulosos sempre apresentam situações mirabolantes em que atribuem consciência posterior à sua ignorância anterior, não percebendo que isso mesmo é uma demonstração de ignorância doutrinal. De fato, não são escrupulosos, são ignorantes.
O fulano queria ajudar uma pessoa, fez uma boa obra, mas, a despeito de sua vontade, acabou acontecendo uma consequência ruim… Pronto! Isso já é suficiente para que o pseudoescrupuloso se considere culpado pelo efeito mau, sendo que ninguém pode ser responsabilizado pelos maus efeitos de suas boas ações (por exemplo, um juiz não é responsável pelo suicídio de um condenado porque ele emitiu uma sentença justa de condenação).
A ignorância dessas pessoas as faz analisarem as suas ações como acontecimentos exteriores aos quais elas atribuem, pelo simples fato de serem realizadas, a voluntariedade. Não conseguem observar as ações desde dentro, desde a vontade, ignorando que seu o propósito interior é o que confere a responsabilidade pela ação.
Alguém escuta sem querer uma música estrangeira e, depois, vai conferir a letra e descobre, para a sua surpresa, que é imoral, logo, considera-se em pecado. Uma pessoa não percebe que estava com a blusa levantada na parte de trás, logo, considera ter cometido um pecado de
imodéstia. O sujeito se distrai e fala algo que não deveria ter dito, logo, julga-se em pecado. Outro, enfim, esbarra sem querer numa imagem indecente, à qual não quis nem por um segundo ver, pronto!, já se considera em pecado mortal.
Para que haja culpa de pecado grave, a Igreja ensina que a matéria precisa ser grave (diretamente contra o amor a Deus ou a benevolência ao próximo, contra a castidade ou contra os cinco mandamentos da Igreja; os demais mandamentos admitem parvidade de matéria, quer dizer, podem chegar a ser graves, mas não o são em toda a sua extensão), que deve haver plena advertência e perfeito consentimento.
Ora, ninguém tem plena advertência dormindo ou anestesiado. Os falsos escrupulosos não se cansam, porém, de querer confessar sonhos ou movimentos corporais ocorridos no estado de semissonolência.
Sobre o perfeito consentimento, creio que tudo que disse acima acerca da voluntariedade esclareça o tema suficientemente. Contudo, vale lembrar: ninguém peca mortalmente sem a plena anuência da vontade! Mesmo que a matéria seja grave, para que haja culpa, deve-se querer plenamente realizar aquilo (o que pode coincidir, às vezes, com certa repulsa; como no caso de alguém que comete um crime voluntariamente, mas com certa aversão emocional).
Mesmo os pecados por pensamento, sem consentimento, não possuem plena razão de pecado. Aquilo que se chama tradicionalmente de “delectatio morosa” é o pensamento consentido, ou seja, querer pensar ou imaginar algo. A simples passagem de uma imagem ou ideia tosca pela nossa mente, se for refutada imediatamente (caso seja passageira) ou se for insistentemente combatida (caso seja persistente) não é consentir em pecado, mas simplesmente sentir uma tentação e resisti-la (o que é até meritório). O ignorante, porém, confunde tudo e, por sua falta de doutrina, acaba por adscrever como pecados um monte de bobagens que a sua mente fértil acabou excretando.
Se a sua tia está assistindo uma novela indecente na sala ao lado, você não é culpado por estar ali. Se você usa um computador alheio no qual há um programa ilicitamente adquirido, você não é culpado de cooperação. Isso não passa de aplicação errada de princípios que você não sabe utilizar. Pare com isso agora mesmo e seja obediente a um criterioso confessor!
DISPENSANDO-SE DA PRUDÊNCIA
Segundo São Tomás, a prudência é a condutora das virtudes morais e ele mesmo a define
como a “recta ractio agibilium”, “a reta razão no agir”.
Um dos motivos que me levou a escrever essa breve série sobre os pseudoescrupulosos foi a compreensão para com vários irmãos sacerdotes que ultimamente se têm queixado justamente desse problema.
Um dia desses, um me dizia: “o que eu faço?, um rapaz me mandou um áudio de meia-hora pelo WhatsApp, angustiado por conta de uma questão moral insignificante”, outro colega me reclamou: “passei quarenta e cinco minutos ao telefone, resolvendo a dúvida moral de uma pessoa, sendo que o caso era de simples solução, mas, quanto mais eu explicava, mais ela complicava”. As reclamações são muitas, desde pessoas que mandam contínuas e longas mensagens pelas redes sociais até aquelas que procuram desesperadamente o padre várias vezes no mesmo dia, sempre com “urgência”.
Um dos agravantes para a situação é que frequentemente encontram pessoas que, ao contrário de as ajudarem a sair desse estado mental, ajudam-nas a aprofundar o problema, alegando que o fulano é de uma sutileza impressionante ou que é de uma capacidade de penetração agudíssima. Por fim, respaldadas por tais orientadores, as criaturas vão se sentindo importantes, especiais, inteligentes, a vaidade se vai inflando e a pessoa vai enlouquecendo, não sem antes enlouquecer meia dúzia de pessoas, incluído aí o pobre confessor.
Essas pessoas acabam por substituir a prudência pela consulta contínua acerca dos temas mais banais, elevados sempre à categoria de princípios. Dispensam-se de ser prudentes e criam uma dependência ansiosa, perdendo completamente a chance de formar a sua própria razão prática.
São Tomás dizia que a prudência é a “reta razão no agir”. Para mim, este é o primeiro problema. As pessoas não entendem que a moral é uma ciência prática, com uma metodologia prática.
Não adianta estudar moral e não desenvolver a inteligência prática. Dou um exemplo ilustrativo: de pouco adianta você estudar livros de culinária de todos os países e nunca passar um dia na cozinha; no final, você saberá tudo sobre culinária, mas, diante de uma multidão de ingredientes, de um fogão de cinco bocas, de sete panelas, forno, água, micro-ondas e oito convidados cheios de fome você se sentirá perdido e desorientado, vai queimar a comida e colocar tudo a perder, por fim, irão todos para o self-service do shopping.
É isso que acontece com boa parte dos “orientadores” morais e desses falsos escrupulosos. Muitas vezes, por um defeito mental, esses sujeitos são muito teóricos: sabem lidar com livros, mas não com pessoas; tentam formar seres humanos como quem escreve sobre um papel, sem perceberem que o homem não foi criado para se encaixar numa tese, ele precisa praticar o bem entendendo-o profundamente para conseguir perceber que o bem é bom mesmo.
Isso se percebe na própria arquitetura com que São Tomás escreveu a Suma Teológica. As duas partes centrais dessa obra são relativas à moral fundamental (primeira seção da segunda parte) e à moral especial (segunda seção da segunda parte).
Na primeira seção, São Tomás recomeça metodologicamente o seu raciocínio. Partindo da consideração do fim último do homem, ele mostra como para o homem, criatura racional, “é necessário chegar à bem-aventurança por alguns atos”, então, estuda “os atos humanos, afim de que saibamos com que atos se chega à bem-aventurança ou quais impedem o caminho para ela”. Daí parte para a consideração dos princípios destes atos, “primeiro, os princípios intrínsecos; segundo, os princípios extrínsecos. Os princípios intrínsecos são a potência e o hábito”, sendo que os hábitos bons são as virtudes e os maus são os vícios, que lhes são opostos; em seguida, considera “os princípios exteriores dos atos. O princípio exterior que inclina exteriormente ao mal é o diabo. Já o princípio exterior que move exteriormente ao bem é Deus, que nos instrui pela lei e ajuda pela graça”. Aí está toda a arquitetura da primeira seção da segunda parte. A segunda seção tratará de cada uma das virtudes e dos vícios.
Em outras palavras, São Tomás não explica a Teologia Moral através da consideração teórica das leis morais, ele vai à raiz das nossas próprias potências operativas e as enxerga a partir da razão prática, extraindo delas a sua própria orientação racional para o seu bem equivalente, que são as virtudes. Por isso, a prudência é a “reta razão no agir” e não na consideração teórica, pois, para isso, existe a razão especulativa.
Às vezes, vejo alguém especulando sobre a moralidade de uma ação de modo tão teórico que me parece quase irrealizável na prática. A ação só pode ser considerada desse modo a posteriori, fotograficamente, com quem analisa a cena de um filme, a não ser que o agente seja um moralista muito bem treinado. De fato, isso vai muito bem para os confessores, mas não vai bem para praticar ao longo da vida. Ensiná-lo desse modo a calouros não é ajudá-los, mas apenas aumentar a sua insegurança e perplexidade.
Do mesmo modo, treinar as pessoas para raciocinarem a partir das leis, abstratamente, não é formar a sua prudência, mas, de certo modo, impedi-la. Por isso, essas pessoas ficam perplexas e desesperadas, porque não estão aprendendo a ser virtuosas, mas apenas a cumprirem preceitos abstratamente apreendidos.
Por isso, a exposição de São Tomás é a partir das virtudes, porque, diante desse objetivo, fica muito mais claro o fim prático da conduta humana.
Quando se raciocina abstratamente a partir da lei, a mente fica como que em suspense, carente de entender o fundamento racional dessa lei. Por exemplo, quando se raciocina a partir do dever de “honrar os pais” e daí se extraem as obrigações concretas decorrentes, o intelecto se pergunta implicitamente o porquê de “honrar os pais”, buscando o verdadeiro princípio racional que está por trás desse mandamento. A resposta para essa pergunta só pode ser entendida a partir da “razão de virtude” que lhe dá suporte: nós temos para com os nossos pais deveres de justiça que são impagáveis e, por isso, devemos-lhes certa veneração; ora, a formulação positiva desta é o mandamento de honrá-los, a lei.
Notem que São Tomás extrai a lei das virtudes, e não o contrário. Em outras palavras, na medida em que o homem aprende a praticar o bem percebe que este é verdadeiramente bom, ou seja, que é racional, que é lógico, que é lei.
O homem virtuoso não é aquele que simplesmente pratica o bem porque é lícito e evita o mal porque é ilícito, ele realmente é prudente, ele sabe que o bem é bom e o ama.
Quando descreve as partes que integram a prudência (cf. I-II, q. 49), que são como os elementos a partir dos quais ela está construída, São Tomás mostra como ela requer um verdadeiro exercício prático-intelectual: é necessário desenvolver a memória (1) de experiências morais muito bem vividas, sobre as quais a inteligência (2) se aplica para apreender sua lógica profunda, de modo que pela docilidade (3) a pessoa se vá ajustando à realidade e aprenda a ter sagacidade (4), isto é, certa perspicácia moral, e raciocine (5) concretamente sobre suas ações, exercendo previsão (6) sobre as suas consequências, circunspecção (7) para analisar a sua conveniência moral relativamente às circunstâncias e cautela (8) quanto aos possíveis males eventualmente decorrentes de sua ação.
Os pseudoescrupulosos, ao contrário, não querem pôr a sua cabeça para funcionar, querem um “manual do escoteiro mirim”, querem um guru que esteja sempre à sua disposição, querem todas as respostas prontas em um livro. O melhor dos mundos para eles seria um aplicativo em que simplesmente perguntariam e obteriam a resposta, sem perceberem que, assim, estariam apenas atrofiando a sua capacidade de ser prudentes.
Os escrupulosos verdadeiros são pessoas incapazes de prudência, e o reconhecem com humildade e docilmente, esses pseudoescrupulosos, ao contrário, são preguiçosos, inconvenientes, infantis e arrogantes.
Aconselho aos irmãos no sacerdócio que não alimentem nada disso: não atendam a telefonemas intermináveis e não respondam a mensagens inoportunas, não ouçam áudios insuportavelmente gigantes e não leiam mensagens desproporcionalmente longas, atendam no dia marcado, com tempo determinado e não sejam complacentes com este tipo de pessoa. Tratem-nos com firmeza, pois é isso que precisam. No atendimento, não deem a resposta que
eles facilmente querem, respondam com outras perguntas, façam-nos pensar, mesmo que seja no tranco, e eles começarão a desenvolver a prudência. Caso contrário, não formaremos adultos virtuosos, mas pessoas psicologicamente frágeis, que não conseguem ter desenvoltura moral, mas apenas aquela honestidade formal, de quem cumpre uma regra e que não sabe responder a uma simples pergunta: “por que você está fazendo isso”?
UMA FALSA NOÇÃO DE SANTIDADE
Certa vez, estava com um grupo, de carona num carro. De repente, um rapaz disparou a contar com euforia uma história; pelos modos e pela tonalidade, parecia algo maravilhoso, como um grande feito: “esses dias sonhei que estava casado e chegava com minha esposa para a lua-de- mel. Quando entramos no quarto, pensei comigo: ‘meu Deus!, eu vou perder no céu a coroa da castidade da qual falava Santo Afonso!’ Então, eu peguei uma faca e comecei a matá-la, mas com tanta, com tanta felicidade que eu acordei rindo! Nossa! Ainda bem que foi só um sonho”, e disparava a rir.
Àquela altura, eu quase pulei pra fora do carro em movimento. Nunca tinha ouvido narração tão macabra, mas o que mais me impressionou foram as reações espontâneas de alegria. Tenho pra mim que aquela boa alma não se dava conta do disparate escandaloso que dizia e talvez hoje nem pense mais naquele assunto.
Contudo, coisas do tipo acontecem com frequência. Um colega padre me disse que, quando precisa dar os avisos paroquiais no fim da missa, uma alma muito “devota” que está em ação de graças após a comunhão, costuma levantar a cabeça e fulminá-lo com um olhar de raiva. Decerto não entende a necessidade pastoral de dar um aviso antes que o povo se disperse e pensa apenas em sua própria edificação pessoal. Mas, sendo a Eucaristia o Sacramento da caridade, como se justifica que alguém possa querer fazer atos de amor a Cristo e lançar um olhar de ódio no mesmo instante? Há algo de errado nisso!
Quando vejo pessoas maníacas por vasculhar pecados no lixo do passado ou inventar-se uma centena deles desde os últimos dias, é indissimulável que elas jamais conseguirão crescer no caminho de santidade antes de abaterem esse tipo de espiritualidade narcisista, em que o olhar do indivíduo está demasiadamente concentrado sobre si mesmo.
É evidente que todos devemos lutar contra o pecado, mas isso em função de um bem infinitamente maior: desenvolvermos em nossa alma a fé, pela qual nos unimos a Jesus Cristo, a quem amamos, juntando, assim, à fé a caridade.
Em alguns casos, a ênfase em limpar-se de pecados é similar à compulsão de algumas pessoas por lavar as mãos. O transtorno higiênico não é fruto de uma verdadeira sujeira, mas da sensação de sentir-se sujo e precisar lavar-se a cada cinco minutos. São casos psiquiátricos, tratados com medicação e psicoterapia.
O mais habitual, porém, é a velha vaidade de quem se considera importante ao ficar verificando no espelho de suas próprias ações se usar uma camisa com a gola aberta seja pecado mortal ou se assistir um jogo da copa também o seja. O olhar permanece concentrado sobre o próprio eu, não há o sacrifício do amor próprio, o egoísmo ainda prevalece e, com ele, aquela trava que nos impede de crescer na contemplação.
Frequentemente, essas pessoas começam a estudar tratados de mística e se embriagam com uma linguagem espiritual. Contudo, não praticam as virtudes verdadeiramente, não se mortificam com verdadeira humildade, não servem os outros com espírito de abnegação e, por isso, adquirem apenas uma santidade aparente, um disfarce de caridade sobre a bruteza dos próprios vícios não superados.
Eles não entendem que moral, ascética e mística não são assuntos teóricos, em que basta ler alguns textos profundos para deslanchar na oração contemplativa. São práticos! É preciso viver e sofrer uma adaptação psicológica para que a mente seja suscetível à psicologia da graça. Isso demora, leva anos de perseverança, até que a fé desponte em nós e percebamos a ação divina movendo o nosso ser até assumi-lo por completo.
Isso não depende tampouco de cumprirmos freneticamente uma agenda de práticas de devoção, se, com isso, queremos apenas nos “livrar” logo das obrigações contraídas com Deus. Também não se evapora numa espécie de recomendação genérica à oração, ao modo pietista, em que o empenho por rezar se perde num oceano de indefinições.
É a junção da doutrina espiritual e da prática da mesma, numa mescla de oração mental e orações vocais, exames e leituras, realizados com humilde simplicidade, com perseverança
heroica e paciente, com amor intenso à cruz, que vagarosamente nos vai levando à união divina, deixando para trás o nosso eu, como um barco que se afasta progressivamente do cais.
A moral cristã não é como uma clínica de estética em que a pessoa vai para sentir-se mais bonita. Ao contrário, é o único meio para nos esvaziarmos de nós mesmos e nos enchermos da beleza de Deus, de sermos fascinados por ele.
Do outro lado, porém, os pseudoescrupulosos leem tratados de moral como doentes mentais que se dedicam à leitura de bulas de psicotrópicos: além das próprias doenças, acabam desenvolvendo sintomas por puro reflexo; a criatividade do pecado se aguça e, porque não têm o devido preparo, acabam se tornando obsessivos e, pior!, acabam tornando outros vítimas de sua própria obsessão. Certa vez, um rapaz me disse que nunca teve problemas com a guarda da vista, até assistir uma aula de moral em que se detalhou de tal modo os problemas de castidade, que ele passou a ver o que não via e a pensar no que não pensava…
A formação da consciência moral é arte muito delicada. Causa medo ver tanta gente enlouquecendo a si mesmo e aos outros por se comportarem como cirurgiões pelo único motivo de portarem um bisturi. Muita informação sem bom senso apenas é ferramenta de desorientação. De pouco vale muita lei sem prudência e muita mística sem ascética, é como entregar a constituição nas mãos de um juiz louco ou como tratar um canceroso com maquiagens.
A preocupação obsessiva por apresentar listas exaustivamente minuciosas de pecados esconde, muitas vezes, um arrependimento pouco teologal. Em outras palavras, o remorso causado pelo orgulho ferido é muito diferente da contrição por ter ferido o amor divino fluente em nossa alma. Confessar-se para apenas declarar maus atos como quem passa por um pedágio para comungar é muito diferente de confessar-se para uma genuína e profunda conversão.
Quantas pessoas pecam em previsão de uma confissão no dia seguinte? Quantos comungam prevendo o pecado que cometerão daqui a pouco? Quantos se confessam de picuinhas estúpidas e escondem faltas de caridade gigantescas, folga com as pessoas de sua casa, descuido por uma oração profunda e constante, vaidade imensamente manifestada na incapacidade de reconhecer os próprios erros, insensibilidade com quem sofre e verdadeiros e graves descuidos na castidade? Há muitas pessoas preocupadas com erudições morais e o que deveriam fazer é parar de ver pornografias e outros que sabem tudo sobre as “Moradas” e nem rezam direito o terço.
O pior de todos os pecados capitais é a soberba, ao menos segundo as Sagradas Escrituras e a Doutrina da Igreja. Assim como as monjas de Port Royal, das quais se dizia que “eram puras como os anjos e soberbas como os demônios”, há muitos desses pseudoescrupulosos cujo eu está entronizado devidamente no altar de sua própria devoção, como um bezerro de outro, como um ídolo que precisa ser pulverizado para tornar-se pó, terra, o húmus da humildade.
Esses breves artigos sobre os pseudoescrupulosos são uma tentativa de devolver o bom senso e aliviar a perturbação mental com a qual tantos têm sofrido. Nesses dias, uma pessoa escreveu- me em privado que a leitura de um desses textos a impediu de suicidar-se por causa do desespero moral. É nesse nível que estamos! Isso não é uma brincadeira, não é um mero debate…
Encerro essa série por aqui, lembrando a todos que o estudo da Teologia Moral é sempre muito salutar, desde que tenhamos equilíbrio psíquico e nos preparemos para ele conhecendo intimamente o Catecismo da Igreja, integralmente a filosofia e a teologia de São Tomás em sua inteireza, todos os documentos magisteriais, inclusive aqueles mais atuais, especialmente os sobre a doutrina moral e os que modificam leis eclesiásticas, sem descurar a própria metodologia prática dessa disciplina, pois uma coisa é estudar receitas de pão e outra, completamente diferente, trabalhar numa padaria.