Pe. Françoá Costa
1948. Festividade de São José, 19 de março. Douglas Hyde[i] se convertia à Igreja Católica. Por ocasião da sua conversão recebeu umas 900 cartas manifestando diversas opiniões e felicitando-o. Esse gentleman fora um dos principais dirigentes comunistas ingleses. Não obstante, vivia numa duplicidade: fervor intenso pelo partido comunista e atração ao extremo pela Idade Média. Paulatinamente, as suas leituras levaram-no a autores como Chesterton e Hilarie Belloc. Devido à influência desses dois autores, Hyde passou do comunismo à aceitação da propriedade privada.
Certo dia lhe encarregaram a redação de uma crítica à Igreja Católica como instituição que se opunha ao século XX. Não conseguia escrever! As leituras feitas já influenciavam assaz sobre a sua maneira de pensar. Uma noite, sua esposa, também do Partido Comunista, desabafou, numa verdadeira explosão, tudo o que pensava sobre o Partido. Hyde, pensando de maneira semelhante, fez simplesmente uma pequena repreensão: “o que você pensa que está fazendo? Por acaso você vai se converter à Igreja Católica ou algo semelhante?” Ao que ela respondeu: “Eu não me importaria de que assim fosse”. E ele interiormente: “Eu também não me importaria”. Os dois resolveram, então, manifestar o que pensavam um ao outro.
Pouco tempo depois, Hyde assistiu sua primeira Missa, compreendia o significado do Sacrifício. Inclusive antes da sua conversão, manifestou sua opinião sobre um debate interno da Igreja Católica. Uma Encíclica de Pio XII, a Mediator Dei, se referia ao incremento das línguas vernáculas na liturgia da Igreja. Hyde mostrou-se em pleno desacordo. Posteriormente, Hyde também participaria da teologia da libertação. Que pena que esse mesmo homem, convertido em 1948, escrevia em 1996: “Há muito não pratico o catolicismo (…) contribuiu a isso o fracasso do Vaticano II em responder às esperanças e legítimas expectativas de muitos, sobretudo, depois da morte de João XIII.” Também foi penoso o fato de que Hyde faleceu cinco semanas depois de escrever essas palavras, aos 19 de setembro de 1996. O funeral dele foi concluído com a reprodução da canção de protesto socialista. Patética ambigüidade: o livro que tinha relatado sua conversão, Eu acreditei, acabou relatando também o final da sua vida.
Do comunismo à propriedade privada, de uma visão popular à defesa do medievalismo mais forte, da revolução à defesa do latim na Liturgia Católica a tal ponto de não entrar em sintonia com Pio XII, do Concílio Vaticano II à uma teologia da libertação, da fé à “incredulidade”. Como a vida humana é complexa e como é importante ser humildes à hora de emitir os nossos próprios juízos!
Como é maravilhoso deixar-se guiar pela Igreja em cada momento e da maneira como ela quer viver a fé de sempre. Já dizia Aristóteles que a virtude, fugindo dos extremos, encontra-se no meio. Os extremismos sempre fazem mal às pessoas: comer demais ou comer nada, ambos extremos podem levar-nos ao hospital. Virtus in medio!
Às vezes nós também, na Igreja, tendemos a esses extremismos: uns poucos casos de pedofilia (sempre lamentáveis!) passaram a ser motivos para culpar o celibato e querer eliminá-lo. Ora, será que não leram suficiente história da Igreja? Alguns abusos litúrgicos (todos lamentáveis!) foram motivos para cair em outros extremos em se tratando de liturgia. E o curioso é que a Igreja Católica tem dentro dela uns vinte ritos que se saúdam em liberdade! O fato de que algum membro de uma paróquia em algum lugar do planeta mostrar-se um pouco cheio de si mesmo (defeito humano bastante desculpável!), talvez fosse suficiente para que a sensibilidade levada ao extremo induzisse um cristão a afastar-se da Missa dominical. Sejamos sinceros: afastar por isso manifesta pouca maturidade na fé e um desconhecimento da natureza humana caída e levantada, mas propensa a cair sete vezes ao dia.
A virtude dos filhos de Deus é equilibrada, inclusive o nosso amor que, paradoxalmente, pode crescer sem limites. Quem ama de veras a Deus e ao próximo se sente livre, com a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. O cristão é um seguidor de Cristo. É muito edificante contemplar a Cristo nas páginas do Evangelho: come e bebe com pobres e ricos, passa 40 dias de jejum no deserto, trabalha tanto, reza pela noite, convida os discípulos para descansar, tem sentido de humor. Que equilíbrio tão grande vemos na vida de Jesus. Aprendamos! Tampouco se poderia dizer que o equilíbrio nesse caso seria viver o cristianismo pela metade. A vida de Jesus nos mostra santidade total e, ao mesmo tempo, otimismo e realismo.
A virtude é uma força (virtus), uma disposição, uma energia interior que nos dispõe a fazer o bem evitando o seu oposto. Ter uma boa disposição habitual nos levará a colocar-nos sempre no nosso lugar. Santo Tomás de Aquino dá uma definição de virtude que até nas palavras é de um equilíbrio impressionante: “virtude é aquela qualidade da alma pela qual se vive bem, ou seja, corretamente, e que não serve para nenhum mal”, se falamos das virtudes sobrenaturais da fé, esperança e caridade, há que acrescentar à definição que “Deus as infunde em nós sem a nossa ajuda” (S. Th. I-II, 44, 4, arg. 1).
Como conseguir ser uma pessoa virtuosa? À base da repetição de atos virtuosos. Uma pessoa que procura fazer sempre o bem, não é que ela tenha uma soma de atos bondosos, mas ela mesma acaba sendo uma pessoa boa. Um empresário que sempre atua prudentemente, não tardará em que se lhe reconheça como um homem prudente. Uma pessoa que sempre come com moderação, segundo a quantidade que lhe é necessária, sem avançar no prato nem fazer cara feia diante do que lhe põem, é uma pessoa sóbria, moderada, temperada. Quem sabe se divertir com moderação é eutrapélico (a eutrapelia é virtude que nos dispõe a divertir com moderação!). Não se trata, portanto, de ter virtude, fazendo uma espécie de coleção de virtudes, mas de ser virtuoso, ou seja, prudente, justo, temperado e forte. Quando se trata das virtudes sobrenaturais, trata-se de ser fiel, esperançoso e caridoso.
Todas as virtudes podem crescer. Ambas, virtudes humanas e sobrenaturais crescem ou pelo menos se dispõem a ser aumentadas quando realizamos vários atos virtuosos. No caso das sobrenaturais, ademais, é preciso pedi-las na oração: “Senhor, aumenta a minha fé, a minha esperança e a minha caridade”. Estas virtudes são importantíssimas. Por quê? Pelo simples e grandioso fato de que são elas que nos conduzem a Deus. Deus alcançou-nos com a sua graça e infundiu em nós as virtudes sobrenaturais ou teologais para que, com elas, possamos alcançá-lo.
Uma pessoa virtuosa é sempre agradável, alegre e simpática. Essa pessoa não só é equilibrada, mas deixa a elegância da virtude, com o seu tom de equilíbrio, por onde passa. Vem à minha memória uma das narrações que Charles Dickens, naquele delicioso romance titulado David Cooperfield, faz sobre Inês, a amiga do protagonista do relato, Cooperfield. Inês era uma senhorita gentil, sincera, amável, com uma capacidade de sofrer sem sentir-se vítima. Ela “falava de tal maneira que se percebia a sinceridade que ela transmitia ao expressar-se. Eu chorei tentando ocultar o rosto entre as mãos sem poder compreender a que se devia o bem-estar que eu experimentava ao seu lado. Inês, com a sua maneira plácida de falar, o seu olhar doce e risonho ao mesmo tempo, a sua serenidade cheia de paz, fazia – a meu ver – sagrado o lugar onde ela pisava. Ela acabou com a minha tristeza, fazendo com que eu lhe dissesse tudo o que tinha acontecido comigo desde a última vez que nos tínhamos visto”.
Apresentemos sempre o rosto amável da virtude e convidemos os outros, através do nosso próprio testemunho, a praticá-la. As pessoas do nosso entorno verão que a beleza está sempre no equilíbrio que dá a virtude e não na desarmonia causada pelo vício. Este sempre é algo feio e desumanizador. A virtude, com a sua nobre e simples presença, domina discretamente, e belamente.
[i] Sobre Douglas Hyde, pode ler-se em J. Pearce, Escritores conversos – la inspiración espiritual de uma época de incredulidad, Madrid: Palabra, 2006, págs.310-319.