Virtude moral e seu papel nas dimensões intelectual e afetiva

O conceito de virtude, tal como o concebiam os moralistas clássicos até o século XIII, é, nos nossos dias, um conceito praticamente esquecido[1]. As poucas pessoas que utilizam o vocábulo atribuem-lhe um significado totalmente distinto do conceito que dele tinham Aristóteles, os Padres da Igreja ou Tomás de Aquino.

Falam de virtude, na maior parte das vezes, como de qualidades temperamentais, no fundo inatas, que alguns privilegiados teriam. Ou, então, como de costumes[2], condicionamentos passíveis de serem adquiridos mediante uma repetição mais ou menos “mecânica” de atos iguais moralmente retos, que facilitariam o cumprimento das leis morais.

Segundo essa concepção, a aquisição de uma virtude levaria a uma diminuição da liberdade e até a uma diminuição do mérito de quem as adquire, porque passaria a agir movido por “automatismos”. Seu agir consistiria em uma série de respostas padronizadas aos estímulos fornecidos pelas diferentes situações.

Essa maneira de se conceber a virtude, levada ao extremo, pode conduzir a conclusões paradoxais que chegam a ser cômicas, como a daquele adolescente que, em certa ocasião, conversava comigo. Dizia-me que o fato de eu me levantar todos os dias a uma hora certa não era meritório porque eu já estava condicionado a isso. Ele, sim, tinha muito mérito por conseguir levantar-se, de vez em quando, na hora prevista, porque isso lhe custava um esforço tremendo, já que sentia muita preguiça. 

É claro que uma avaliação desse tipo decorre sobretudo de uma compreensão equivocada do que possa ser “mérito”, mas indiretamente permite adivinhar um modo igualmente equivocado de avaliar o comportamento virtuoso: o rapaz o via como o fruto de condicionamentos que, ao eliminar a liberdade, suprimiriam o valor moral daquilo que se faz.

O esquecimento da noção de virtude

Isso no que diz respeito às pessoas em geral, mas, entre os moralistas, o conceito clássico de virtude também foi esquecido ou distorcido. Os modernos atribuem um papel muito secundário à virtude, como acontece nos tratados da “manualística”, mesmo quando as suas concepções  não se alinham para nada com as dos autores dos manuais.

Para estes, o fulcro da moral está nas leis e na maneira correta de aplicá-las a cada caso mediante o juízo de consciência. Nos seus escritos, a virtude não passa de força de vontade para ater-se ao mandado pela lei e ocupa pouco espaço.

Se tratam do tema, fazem-no sempre de maneira muito breve e depois de terem discorrido amplamente sobre a lei e a consciência. Bem ao contrário do que faz o Aquinate, que, na I-II da Suma teológica, tratando do que hoje chamaríamos de moral fundamental, explica a noção de virtude antes de falar da lei ou da consciência. E na II-II, que corresponde ao que conhecemos como moral especial, dedica nada menos que 170 questões ao estudo de cada uma das virtudes teologais e morais.

Para os clássicos, a virtude era aretê, excelência que torna o homem capaz de agir bem, e lhe confere altura moral. Algo incompreensível para os modernos. E tinha um papel absolutamente central, tanto do ponto de vista especulativo, como do ponto de vista prático.

Segundo o seu entendimento, eram as virtudes que permitiam a correta identificação do bem e do mal, e não a lei. A prioridade das virtudes sobre a lei era patente, pois as leis morais não passavam de enunciados normativos elaborados a partir da reflexão sobre o bem indicado pelas virtudes[3].

A inversão de papéis promovida na modernidade restringiu grandemente a aplicabilidade da moral. Estuda-se de modo quase exclusivo o âmbito reflexo do agir moralmente relevante, em detrimento do âmbito que poderíamos chamar de direto.

Quando se age, na maioria das vezes, se tomam as decisões mediante a ponderação dos meios cogitados para se obterem os fins pretendidos, sem recurso à verificação fornecida pela lei. Somente quando não se está seguro da avaliação direta da conveniência de se agir de uma determinada maneira nos valemos da instância reflexiva, buscando verificar se a escolha feita de modo direto respeita ou não os limites estabelecidos pelas leis pertinentes, quando aplicadas às condições concretas em que nos encontramos, mediante um juízo de consciência.

Com isso, as construções morais modernas não fornecem subsídio adequado para quem queira agir bem na prática. A vida torna-se quase impossível quando se pretende orientar a própria atuação somente por meio de uma aplicação de normas.

Saber que isto ou aquilo não pode ser feito, diz muito pouco sobre o que se há de fazer. Isso nunca poderia ser determinado por leis, por mais minuciosas que elas sejam, devido à multiplicidade infinita de situações diferentes em que nos é dado decidir e agir.

Não se entenda que as leis não tivessem um papel importante nas morais clássicas: tinham-no. Mas esse papel é secundário quando se compara com o papel das virtudes.

Podemos esclarecê-lo mediante uma comparação muito simples, que estabelece uma analogia entre o direcionamento do agir moral com a condução de um automóvel em uma autoestrada. Para percorrer devidamente a estrada, o motorista dispõe basicamente de dois recursos: o volante do seu carro e o guard-rail da estrada.

O guard-rail fixa os limites que não se podem ultrapassar sem risco de se cair em um abismo. É muito útil em dias de neblina, quando não se está enxergando bem, ou quando, por alguma razão, se perde a direção do veículo.

Aumenta muito a segurança ao se dirigir. Mas o carro deve ser dirigido sobretudo mediante o volante de direção. Seria uma loucura prescindir da direção e confiar apenas no guard-rail. Algo parecido ocorre no direcionamento da nossa conduta: as leis podem ser comparadas ao guard-rail e as virtudes à direção.

Portanto, como já dissemos, a falta de um tratamento adequado da virtude, ao transferir para as leis o protagonismo no processo de direcionamento do nosso agir, compromete a aplicabilidade das construções morais modernas. Mas a perda da virtude no horizonte moderno leva também a distorções no âmbito especulativo, uma vez que é insustentável uma descrição do ato humano livre quando se considera que em cada decisão humana reta seja necessária prévia consulta à lei.

A mais rudimentar análise antropológica da estrutura de um ato humano mostra o quão distante da realidade se está. Qualquer um pode percebê-lo quando reflete um pouco sobre o modo como toma decisões.

De qualquer maneira, apesar das distorções, de um modo ou de outro, ainda há uma certa noção de virtude entre os moralistas dos nossos dias. Mas trata-se de uma noção deveras empobrecida.

A virtude clássica transformou-se em uma virtude cega e desumana em que se suprimiu a dimensão intelectual e afetiva. Senão vejamos.

A dimensão intelectual da virtude

Tomemos como paradigma a visão clássica Tomás de Aquino. O que era uma virtude moral para ele? Uma disposição operativa boa[4]. Uma disposição que se adquire na praxis, mediante a reiteração de variados atos humanos bons[5].

Uma disposição que retifica as nossas intenções e que nos torna capazes de conceber ações excelentes como mediação para a realização daquelas intenções, nas mais variadas circunstâncias. Para ele, a virtude é capacidade de “querer”[6] segundo a ordem da razão, tanto no que diz respeito às finalidades pretendidas, como no que diz respeito aos meios escolhidos para realizá-las. É sabedoria prática, inteligência prática.

Os sublinhados das frases que acabamos de enunciar destinam-se  a evidenciar o que se poderia chamar de plasticidade criativa da virtude. A pessoa virtuosa sabe comportar-se bem em qualquer circunstância, “adapta-se” e, neste sentido, podemos falar de plasticidade.

Além disso, as suas ações nunca se limitam a reproduzir algum estereótipo tomado de um etéreo repositório de possibilidades pré-estabelecidas. Não, a virtude concebe e estrutura o objeto de cada ação de maneira única, original. Por isso, falamos em dimensão criativa da virtude.

O homem virtuoso, precisamente porque a virtude tem essa dimensão intelectual, surpreende e causa admiração. Pensemos, por exemplo, no caso de Jesus Cristo. Não é difícil imaginar a sincera admiração causada pelo seu modo de agir naqueles que comentavam espontaneamente “faz tudo bem feito”, referindo-se a Ele.

Mais ainda, devido ao aspecto imanente de todo agir humano moralmente relevante – essas ações, além de produzirem um efeito “exterior”, modificam o próprio sujeito -, agir virtuosamente comunica excelência a quem o faz, tornando-o “moralmente belo” com um tipo de beleza que os gregos chamavam de to kalon[7], a beleza própria da virtude.

Uma clara manifestação da perda da dimensão intelectual da virtude é o desprestígio da virtude cardeal da prudência, da recta ratio agibilium, que os clássicos consideravam como a auriga virtutum, a proa inteligente da virtude, no dizer de Paul Claudel. Na verdade, não é possível nenhuma virtude moral sem a recta ratio oferecida pela prudência[8].

Talvez uma reminiscência da percepção de que a virtude é inteligência prática possa encontrar-se na “interjeição” que, algumas vezes, ainda se ouve quando alguém se censura por uma falha moral que cometeu: “Burro!”. De fato, se a falha moral se considera “burrice”, é porque o comportamento virtuoso pode ser visto como certa forma de inteligência, inteligência prática.

A dimensão afetiva da virtude

            Por paradoxal que possa parecer, enquanto a sociedade contemporânea se inclina para o sentimentalismo e para o hedonismo, muitas construções morais ainda em voga têm um cunho nitidamente estoico. Quando se fala em virtude, o que é raro, ocorre com frequência que se pense em uma concepção voluntarista.

A virtude seria – já o dissemos – força de vontade, de uma vontade desapaixonada. Esse desvio se explica pela antiga tentação dualista que ronda a humanidade desde os seus primórdios.

O espírito seria bom e a matéria seria má, para dizer as coisas de um modo simplificado. E a consequência inevitável de se pensar assim é que as paixões, os sentimentos e o prazer, que se desenvolvem no âmbito da  corporeidade –  que é matéria –, passam também a ser considerados maus, e vistos como obstáculos para o agir moralmente elevado.

Os clássicos não encaravam as coisas desse modo. Tanto é assim que Gadamer, ao fazer uma síntese da ética de Aristóteles, chega a dizer que toda ela é uma “ética do bom gosto”.[9]

Se o desenvolver-se das virtudes gera na inteligência uma rede de princípios da razão prática, que podem ser expressos verbalmente como máximas de sabedoria e constituem precisamente a dimensão intelectual da virtude, tal desenvolvimento, nas faculdades apetitivas sensitivas, dá origem a uma “racionalização” das paixões.

Tais paixões são, por assim dizer, penetradas pela racionalidade, impregnadas de racionalidade. O que Gadamer chama de “bom gosto” poderia também chamar-se de gosto impregnado de racionalidade, de gosto razoável.

A virtude não está, portanto, em suprimir os sentimentos, mas em ordená-los. As paixões da irascibilidade[10], por exemplo, não são más quando se dirigem contra o que é mau, do ponto de vista moral.

A virtude clássica da fortaleza consiste precisamente nesse bom encaminhamento da ira. Assim o afirma de forma contundente J. Pieper, citando o Aquinate:  “São Tomás (…) diz: fortis assumit iram ad actum suum, o forte assume a ira no seu próprio ato, principalmente no ataque; é próprio da ira defrontar o mal; por isso, a fortaleza e a ira agem diretamente uma sobre a outra”[11].

Mais ainda, a virtude também não está em “subjugar” as paixões, mas em “educar” a afetividade e a irascibilidade de modo que as apetências sensitivas estejam em consonância com a ordem racional. É claro que mesmo a virtude no mais alto grau não impede que surjam eventualmente paixões desordenadas.

Essas precisam ser dominadas mediante o comando do dever e o controle da consciência, mas é igualmente certo que a virtude produz uma “conaturalidade afetiva” com o bem moral – um “bom gosto” – que permite ao virtuoso agir com alegria. Tanto é assim, que Aristóteles afirma na Ética a Nicômaco, “não é bom quem não cumpre com prazer as ações boas: de fato, ninguém chamaria justo alguém que não cumpre com prazer ações justas, nem liberal, quem não cumpre com prazer ações liberais”[12].

A consequência dessa conaturalidade afetiva com o bem, que constitui a dimensão afetiva da virtude, é que a pessoa virtuosa, via de regra, capta com espontaneidade e segurança aquilo que é o verdadeiro bem. É capaz de avaliar instantaneamente e corretamente as situações e de escolher o bem, porque, em certo sentido, a sua afetividade guia o juízo da razão[13].

A aquisição das virtudes segundo G. Abbà

Giuseppe Abbà[14], no seu livro “Felicità, vita buona e virtù”, dedica todo um capítulo[15] à questão da aquisição das virtudes e expõe ideias que podem ser de grande interesse para educadores em geral[16]. O que vamos dizer, a seguir,  inspira-se nas orientações propostas por ele, embora, em várias ocasiões, não as acompanhemos de perto.

Antes, porém, de adentrarmos nas suas propostas, parece-me importante recordar que, segundo Aristóteles, a principal via para a aquisição das virtudes baseia-se na virtude[17] da amizade. Não é difícil entender o porquê disso.

O desenvolvimento de uma virtude decorre principalmente da aquisição de padrões afetivos virtuosos em que o discurso da razão prática possa inserir-se. Ora, a amizade promove justamente uma transferência de padrões afetivos entre os que estão unidos por um vínculo amistoso.

Portanto, quem tem um amigo virtuoso, em certa medida,  acaba por desenvolver as mesmas virtudes que o amigo possui.  A sabedoria popular o confirma: todas as mães apreciam que os filhos tenham bons amigos, amigos virtuosos, porque intuem que isso contribuirá para que eles também se tornem virtuosos.

Esse processo de aquisição de virtudes, por meio de relações de amizade, é um processo não intencional que poderíamos qualificar como “osmótico”. Se dá principalmente quando os amigos não apenas estão juntos, mas também agem juntos, tomam decisões juntos, pois os padrões afetivos que interferem nas virtudes são aqueles que dizem respeito à tomada de decisões.

Parece-me que esse tipo de processo explica que existam “virtudes familiares” ou “virtudes nacionais”, virtudes características de um determinado grupo social. Um fenômeno que a globalização característica dos nossos dias tem reduzido muito por tornar sensivelmente mais tênues os vínculos de amizade. Explica também a conveniência de que a pessoa que quer ganhar virtudes tenha à sua disposição “modelos virtuosos” que possa admirar e aos quais se possa afeiçoar.

Admirar o agir virtuoso de alguém que nos seja caro é, na verdade, condição básica de qualquer processo de crescimento na virtude[18]. Ninguém adquire uma virtude pela simples convicção intelectual da sua excelência.

Por isso, a existência de um ethos virtuoso na sociedade em que se vive favorece grandemente a geração de virtudes nos seus membros. Mas como adquirir virtudes por outro processo que não seja apenas “osmótico”? Aqui chegamos às propostas de Abbà.

Para começar, lembremos que todas as pessoas nascem com uma inclinação natural ao bem e à virtude: as “semina virtutum”, as sementes de virtude, na expressão de Santo Agostinho.  Elas fazem parte da natureza humana na sua racionalidade.

São constituídas por um feixe de disposições que, apesar de não serem suficientes para endereçar bem o agir como as virtudes, representam o germe a partir do qual elas se desenvolverão. Nem o pecado original, nem os pecados pessoais são capazes de anulá-las, ainda que, de fato, as enfraqueçam. Não fossem essas sementes, não haveria possibilidade de desenvolvimento virtuoso.

Para tornar clara a sua proposta, Abbà explica que existem três tipos de disposições pré-virtuosas que se formam sucessivamente no processo de conquista de qualquer virtude a partir das suas sementes, antes de se chegar à disposição propriamente virtuosa. São elas:

– as disposições dos socialmente integrados[19]
– as disposições dos continentes
as disposições dos dóceis

Os socialmente integrados são os que, sob o influxo das sementes de virtude na sua alma e de um ambiente familiar ou social favorável, praticam atos característicos da virtude e adquirem costumes que os levam a esses atos. Mas não os praticam de um modo virtuoso, porque os motivos que os levam a agir corretamente são alheios à virtude.

Agem como agem, pelo desejo de serem aceitos, de serem queridos, de evitar “complicações” ou sanções. São “bem comportados”. O seu “bom comportamento” é pré-virtuoso apenas, mas importante para propiciar-lhes experiências gratificantes, que, mediante uma reflexão posterior, poderão encorajar à prática da autêntica virtude. Seu bom comportamento também evita que adquiram maus costumes que, mais tarde, dificultariam a vida virtuosa.

Os continentes já se encontram em estágio mais próximo da virtude. Agem bem, não por mimetismo como os socialmente integrados, mas porque estão convencidos de que o correto é agir assim. Atuam, geralmente, resistindo a fortes paixões contrárias.

Falta-lhes ainda o reto apetite do fim; não se comprazem passional e volitivamente com a prática do bem. Se agem bem, é em função de um juízo de consciência[20] que os leva a fazer a uma escolha correta apoiada apenas na autoridade da lei moral ou divina.

Como ainda não têm a virtude propriamente dita, os seus atos, embora bons, costumam ser faltos de perfeição, ou excelência. Além disso, em geral, praticam o bem sem alegria.

Os dóceis vão além. São os que praticam atos virtuosos perfeitos porque já possuem o reto apetite do fim e se comprazem no que fazem. Mas, como a dimensão prudencial das suas virtudes morais ainda não está suficientemente desenvolvida, ainda dependem demais do conselho recebido de pessoas de virtude madura.

Não são capazes de conceber a ação adequada a cada situação. Quando o bom conselho lhes indica qual seja ela, percebem a sua justeza e a escolhem com alegria. Mas não teriam sido capazes de encontrá-la sem ajuda.

Nos dóceis, o papel do juízo de consciência já se torna secundário. A consciência, na maior parte do tempo, assume apenas o papel de um espectador que exerce uma serena vigilância e aprova, comprazido, o juízo direto da razão prática[21].

Da fase da docilidade, passa-se diretamente à virtude propriamente dita, à virtude madura, à virtude de “varão perfeito, (com) a estatura da maturidade de Cristo[22], no dizer do Apóstolo.

A partir dessa descrição das etapas do processo de aquisição das virtudes, o nosso autor esboça um quadro de recomendações práticas a respeito das atitudes corretas que devem ter educadores e educandos, recomendações que, a seguir, exporemos muito resumidamente, como conclusão desta aula, distanciando-nos bastante do seu estrito teor.

            1ª) A presença de modelos virtuosos é, como já dissemos antes, importantíssima ao longo de todo processo de aquisição das virtudes. O bom exemplo dos que já possuem virtudes consolidadas é fundamental. A boa literatura, em que se destacam as virtudes de pessoas de valor, também pode ajudar muito.

            2ª) Quando o educando, normalmente de pouca idade, se encontra na fase de busca de uma integração social, é importante que esteja inserido em um ambiente disciplinado. E essa disciplina há de ser exigida de modo razoável – sem contradições ou concessões ao arbítrio dos educadores. Estes hão de esmerar-se no carinho com os educandos e estabelecer um nítido regime de recompensas para os comportamentos desejáveis e sanções para os indesejáveis.

            3ª) Quando o educando já passou à fase da continência – muitas vezes no período da adolescência – é preciso manter a disciplina, tornando-a, no entanto, um pouco menos rígida. Além disso, é importante o papel da inculcação da lei moral e a frequente explicação das razões subjacentes a essa lei.

Aqui se nota a conveniência de que os educadores tenham tido uma atitude carinhosa na fase anterior: isso leva os educandos a confiarem neles e aceitarem as leis que lhes são propostas, como experiência válida de quem já “sabe mais”. Também importa que aqueles que estão a caminho da virtude aprendam a desconfiar dos próprios critérios, pois assim é possível a formação da sua consciência.

É nesta fase que eles devem adquirir o desejo de conquistar as virtudes e começar com as práticas ascéticas necessárias para isso. Convém ainda que sejam acompanhados  e estimulados na sua ascese. Por fim, é também nessa fase que se torna necessário encorajar os formandos a fazerem amigos e exercer vigilância sobre o nível moral dos amigos de que se aproximam.

            4ª) Já na última fase pré-virtuosa, a da docilidade, deve-se cuidar especialmente o desenvolvimento da dimensão prudencial das virtudes. Aqui é interessante que os formadores passem a ser amigos dos que se encontram aos seus cuidados.

Devem estar disponíveis para que possam pedir conselho com frequência, e ao aconselhar devem evitar as respostas prontas, ajudando os formandos a ponderar por conta própria. Nessa fase convém afrouxar ainda mais a disciplina e ajudá-los a adquirir experiência por meio de uma praxis rica e variada.

Como é óbvio, as recomendações que acabamos de apresentar constituem apenas um rudimentar esboço, que, no entanto, acreditamos possa ser útil para fomentar a reflexão dos que têm responsabilidades formativas.

Texto de Rafael Stanziona de Moraes


[1] Esse abandono do conceito clássico de virtude foi amplamente “denunciado” por A. MacIntyre, no seu já célebre “After Virtue”.

[2] Para se compreender que a noção clássica de virtude não tem nada a ver com costume ou condicionamento é muito útil a leitura de um artigo de Servais Pinckaers, OP, La virtud es todo, menos una costumbre, publicado em ‘La renovación de la moral’, Verbo Divino, Estella 1971, pp. 221-246.

[3] S. Pinckaers, o explica magistralmente na sua obra magna “Les sources de la morale chrétienne”

[4] Pareceu-me preferível traduzir a palavra “habitus” constante na definição de Santo Tomás por “disposição” em lugar de “hábito” para evitar a confusão com a ideia de “costume” a que ficou associada a palavra “hábito” em português. O simples fato de o santo utilizar a mesma palavra  “hábitus” para referir-se a “hábitos entitativos” pode confirmar-nos  que a ideia de “costume” era totalmente alheia à sua mente já que não tem nenhum sentido pensar-se em “costumes” entitativos.

[5] O Aquinate fala aqui de “repetitio”, mas creio que não seria conveniente traduzi-la por repetição, porque a palavra repetição em vernáculo sugere a ideia de repetição mecânica de atos idênticos, capaz de gerar um condicionamento. Ora, essa ideia precisa ser afastada, sob pena de não se captar a dimensão intelectual da virtude. Que Tomás de Aquino não encare “repetitio” dessa maneira fica evidente quando se tem em conta a componente prudencial de todas as virtudes morais a que ele atribui grande importância.

[6] Talvez fosse melhor dizer “desejar” em lugar de “querer” desde que com essa expressão se esteja considerando a volição dos apetites sensitivos volitivos, além da volição da vontade livre.

[7] Cfr. M Rhonheimer, La prospettiva della morale, Armando editore 1994, p. 44

[8] Para uma aguda análise do papel desempenhado pela virtude da prudência, pode-se ler J. Pieper, As virtudes fundamentais, Ed. Aster

[9] H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen 1972, p. 37

[10] A psicologia experimental costuma usar “agressividade” em lugar de “irascibilidade”

[11] Pieper, J, o. c., p. 190

[12] Citado por M. Rhonheimer, o. c. pp. 170-171.

[13] Cfr. M. Rhonheimer, o. c. p. 171

[14] Abbà, professor de filosofia moral na Pontifícia Universidade Salesiana em Roma, é um dos mais representativos membros da corrente de pensamento que propõe  um retorno à “ética do ponto vista do sujeito agente” nos moldes da moral de Aristóteles ou de Tomás de Aquino. Aliás, a sugestiva expressão “ética do ponto de vista do sujeito agente” é de sua lavra e foi recolhida, quase ipsis verbis  na Encíclica Veritatis Splendor no n. 78.

[15] Capítulo VII.

[16] De qualquer modo, o autor precisa bem o alcance da sua proposta:  explicará “apenas os princípios de uma teoria filosófica sobre a aquisição das virtudes e da educação para a virtude, que indicam a direção a que aponta a teoria das virtudes” por ele elaborada (G. Abbà, o. c. p. 286). E observa que essa teoria filosófica sobre a aquisição das virtudes, para tornar-se verdadeiramente aplicável, precisaria ser confrontada com “as recentes teorias psicológicas sobre o desenvolvimento moral, com as filosofias da educação, com a filosofia da literatura” etc. (ibidem)

[17] Aristóteles considera a amizade uma virtude!

[18] Nesse sentido nunca se insistirá bastante na importância de se meditar sobre a vida de Cristo e a vida dos santos.

[19] Abbà fala de “hábitos de uma vida moral convencional” em lugar de “disposições dos socialmente integrados”

[20] Consciência é tomada aqui no preciso sentido que lhe atribuem os que propugnam uma ética sob a perspectiva do sujeito agente. É o juízo que nasce de uma reflexão sobre a adequação à lei moral do ato a ser praticado e não o juízo preliminar direto que a razão prática faz a respeito da apetecibilidade daquele ato. No caso do continente esses dois juízos são, via de regra, opostos.

[21] Esta imagem está tomada de M. Rhonheimer, no seu já citado livro “La prospettiva della morale”.

[22] Efésios, 4-13

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