Sobre o suicídio dos sacerdotes

Quero tratar de um assunto muito sensível para os padres. Há alguns dias tivemos mais uma notícia de um padre que tirou a própria vida. E também mais comentários, de diversos padres e leigos buscando entender o porque isso possa ter acontecido, até com acusações à Igreja, aos bispos, aos padres, à formação, etc.

Naturalmente, uma realidade como essa choca bastante. Afinal, o padre tem como vocação “dar a vida” a Deus, pelos irmãos, nunca a de tirar a vida, seja a dele ou a dos outros. É muito difícil entender as motivações que levam alguém a uma atitude assim tão drástica.

Certamente, as razões são, antes de tudo, de ordem interna, dada a fragilidade psicológica gerada em uma sociedade que produz pessoas instáveis, que não possuem estruturas alicerçadas na capacidade de enfrentar dificuldades. Nós padres, queiramos ou não, gostemos ou não, somos homens do nosso tempo.

Não é à toa que se diz que os filhos destes tempos difíceis formam uma geração “almofadada”, ou seja, incapaz de enfrentar-se (defeitos, maus hábitos, tendências etc.) e menos ainda de enfrentar situações externas marcadas por problemas, confrontos e o enfrentamento de necessidades. E quantas vezes, infelizmente, estas são as realidades que vivemos no dia a dia de nosso ministério, no meio de incompreensões, críticas veladas ou abertas, perseguições por questões humanas, políticas, religiosas etc.

Quanto sofrimento as pessoas que não nos entendem, ou não querem nos entender, até por razões de interesse próprio, nos causam. Há razões também de ordem espiritual. Hoje, muitos caminhos de espiritualidade na Igreja fundamentam-se e salientam tão somente o aspecto sentimental, alicerçando a vida espiritual, que deve ser o fundamento do ministério ordenado, em puro emocionalismo, sem a consistência da razão iluminada pela fé, da exigência da necessária luta ascética para, ajudados pela Graça, obter virtudes que estruturam a necessária entrega em que consiste a vida de um padre.

Todos sabemos o quanto é duro e exigente o ministério de um sacerdote. Também os modelos pastorais hoje em voga consistem muito na ideia do fazer… tantas reuniões, tantas Assembleias, tanto tempo gasto em planejamentos e em revisões, que acabam envolvendo os padres, os bispos e muitos leigos na construção de edifícios que na realidade não existem. São construções abstratas de realidades inexistentes. Ninguém vive e pode ser feliz fundamentando a existência em utopias que tão só existem em mentes e realidades burocráticas.

O ativismo em si, já é um mal… pior ainda, o ativismo que se fundamenta na construção do nada, em ações pastorais que existem só para preencher o vazio interior de um pastor generoso, que tem reta intenção no sentido de servir a Deus e aos irmãos, e que embarca em projetos pastorais que, na verdade, são puramente burocráticos, nunca realizáveis e realizados. Assim, em muitos casos, a pastoral de hoje, mal e mal sustenta a manutenção do que já existe.

Os projetos que garantem milagrosamente fazer ressurgir a missionariedade da Igreja ou reconstruir as Comunidades, por exemplo, acabam no nada ou produzem efeitos bastante limitados. Quem quiser, com a ajuda de Deus, transformar a realidade onde vive, precisará trabalhar muito.

O que sobra de concreto para muitos padres? O preencher o coração e a alma, esvaziados de um autêntico amadurecimento humano, psicológico, espiritual e pastoral, com fugas e subterfúgios: espiritualismo emocional, relativismo teológico, inércia pastoral, álcool, imersão exagerada no mundo digital, excentricidades manifestadas em querer ser diferentes, ser notados e valorizados não pelo ser padre, mas por ser alguém “simpático” aos olhos do mundo, amizades não relacionadas ao ministério, que tiram o padre do foco de sua vida, preocupações com a estética pessoal, alimentando uma excessiva vaidade, traições aos compromissos assumidos no dia da ordenação, preocupação com si mesmo, outorgando-se direitos e desvinculando-se dos deveres.

Infelizmente, a distorção das razões pelas quais alguém se torna padre acabam impondo-se, levando especialmente ao abandono da oração, daquele amor primordial a Cristo e à sua Igreja. Não se reza mais. A Liturgia das Horas perde seu lugar. Celebra-se a Eucaristia só e quando se tem que celebrar, por obrigação. Abandona-se a Confissão e a Direção Espiritual.

A monstruosidade gerada por esta situação produz o efeito de sacerdotes sem fé na prática, cumpridores de ações sacerdotais às quais se vê coagido a cumprir, ou então com fé simplesmente sentimental, desfocada da entrega generosa da própria vida, fé desvinculada do ascetismo, fé paganizada e dominada pelo efeito da duplicidade de vida. Em uma situação dessas pode-se até viver a liturgia, mas sem alma, como puro ritualismo.

O ritualismo não existe só entre aqueles que se deixam dominar pelo rubricismo litúrgico ou o gosto pelo antigo só pelo fato de que é antigo, mas também por aqueles que usam o rito atual (ou tem seus ritos inventados por si…). Quando falta a interioridade de uma autêntica vida de oração e de comunhão amorosa com o Senhor, nos transformamos em robôs, tenhamos ou não qualquer tipo de “ismos” em nossa vida.

O efeito de toda essa problemática não tarda em aparecer. E se manifesta na perda do sentido do próprio sacerdócio, que acaba transformando-se em um simples fazer, sem alma, sem interioridade. Tudo muda de sentido. Deus, será alguém distante a quem eu sirvo, mas não obedeço. Sei o que Ele quer de mim, mas me recuso a entregar a Ele meu ser, minha vida, minhas decisões, meus hábitos, meu tempo. Ele é alguém de quem eu falo, alguém para quem eu trabalho. Mas não é alguém a quem eu amo e a quem entrego TODA a minha vida. Acabo tendo minhas reservas intocáveis, nas quais ninguém e nem Deus podem tocar.

Como neste mundo ninguém vive sem amor, deixando o amor primordial a Deus, busca-se preencher o vazio deixado pela ausência deste amor com os falsos amores, que buscam preencher as carências, as fragilidades, as necessidades: amor ao dinheiro, amor à vida cômoda, amor à um vício (álcool, drogas, uso da internet, etc.), amor humano a algúem (mulher, homem, à própria família), amor ao próprio prestígio, necessitado de reconhecimento humano, amor carreirista e tantas outras formas desordenadas do amor. E desse desregramento no amor, surgem as consequências desastrosas para a própria vida e para o ministério.

Além do desvirtuamento do sacerdócio no que diz respeito ao amor a Deus, produzido por um excessivo amor a si mesmo, vendo no sacerdócio não um seguimento de Cristo com a cruz às costas, mas a busca desregulada de si mesmo, dos próprios interesses, submetendo tudo o que se é e o que se faz à regra de se viver para sí, e não para Deus, há também como resultado, o descuido com os demais. As pessoas só valem por aquilo que eu posso tirar delas…

O resultado deste princípio de vida é o de comunidades cristãs abandonadas, igrejas e pessoas descuidadas, toscas, de um cristianismo rude. Devemos nos perguntar a razão pela qual (no caso do Brasil, 10% da população total ao ano) tanta gente abandona a Igreja. Quem são os responsáveis por isso, por essa sangria violentíssima que afeta a Igreja em nossos tempos? Como prever e evitar essa situação?

Não penso que existam receitas. Cada um é um. No entanto, só mesmo um grande amor poderá dar sentido à nossa vida. Só mesmo um grande e profundo amor a Deus poderá manter acesa em nós a chama do ardor ministerial. É só o cuidado com a vida de oração que poderá nos manter sempre intimamente unidos a Deus, como filhos amorosos.

Só o amadurecimento produzido pela oração é que poderá nos fazer enfrentar com generosidade e dedicação, em primeiro lugar, a nós mesmos, com nossas deficiências pessoais, sejam elas de origem psicológica, afetiva, cultural, de saúde etc.

Só o cultivo a um amor sincero Àquele que nos chamou à vocação ao ministério sagrado poderá potencializar a nossa entrega generosa ao querido povo, que nos ama e que espera tanto de nós.

Desejo a todos que vivamos esta Quaresma com um autêntico sentido penitencial, com uma melhoria em nossa vida de oração e com um incremento na caridade para com os irmãos. 

D. Antonio Carlos Rossi Keller

Bispo da Diocese de Frederico Westphalen

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