“A alegria do amor” está repleta de porções de sabedoria e profunda compreensão das tensões modernas. Artigo do Rev. Prof. Robert Gahl.
Os conceitos de sexualidade, matrimônio e família enfrentam uma crise no mundo e na Igreja Católica. Uma porcentagem cada vez maior de casais vivem sua segunda, terceira ou quarta relação, com a esperança de que a relação atual por fim seja aquela que funcione.
Contudo, o fato de mais pessoas se casarem múltiplas vezes não significa que o casamento tenha se tornado mais popular. Em muitas regiões, estatísticas mostram pessoas se casando cada vez mais tarde. Há, na verdade, um menor numero de casamentos e muitos destes acabam em divórcio. Mais e mais casais do mesmo sexo recebem licenças de casamento, muito embora estes casais nunca serão capazes de gerar seus próprios filhos e mais pessoas vivem juntas em relações permanentes sem se casar. Consequentemente, mais crianças nascem de mães solteiras, vivendo em lares sem a presença do pai casado com a mãe.
A dicotomia sexual complementar, entre homem e mulher, que sempre foi vista como constituinte do vínculo matrimonial é agora rejeitada, como um componente retrogrado, superado e em determinado momento falsamente fixado à identidade da pessoa. O sociólogo polonês-britânico Zygmunt Bauman expressou esta crescente fluidez da identidade humana ao afirmar que nós estamos agora atravessando uma nova época chamada “modernidade líquida”; onde, a identidade pessoal tem se tornado mais e mais fluida, sem pontos de referência fixos.
Agora, a sexualidade, com sua raiz biológica, é vista como uma escravidão sufocante. Propõe-se entao a identidade de gênero com alternativa preferida por causa de sua inerente fluidez e relatividade. Muito além da estabilidade relativa da “orientação sexual”, a identidade de gênero, seja individual ou social, está constantemente aberta a transições inovadoras.
Suas novas formas de gênero, e sua reconfiguração da família, torna a humanidade convenintemente livre das restrições da sexualidade natas de nossa natureza humana. Subitamente, celebridades jovens tais como Ruby Rose, Jaden Smith e Miley Cyrus tem contribuído à esta tendência entre adolescentes para que se idenfiquem como “flexíveis de gênero” – gender benders. Parece agora haver ainda menos limites no que podemos nos tornar e ainda menos placas de orientação.
Enquanto a instituição do casamento está em rápida transição na sociedade civil, há também uma crise do casamento dentro da Igreja Católica. Católicos de divorciam em taxas similares aos dos seus concidadãos. Católicos se casam mais tarde, de forma crescente, depois de longos períodos juntos ou mesmo vivem em indefinido status de coabitação. Nos países ocidentais desenvolvidos, a maior parte dos católicos discordam do ensinamento Papal sobre moralidade sexual, por exemplo, no que tange à exigência que a atividade sexual seja limitada à marido e esposa e sempre aberto aos filhos.
O Papa Francisco pôs o foco de boa parte de seu Papado em enfrentar esta crise dentro da Igreja e tem tentado aplicar seu compromisso reformista em busca de soluções para tais questões com sua nova estratégia sinodal. Logo após sua eleição, ele convocou um sínodo extraordinário da família em 2014 e então em seguida um sínodo ordinário em 2015.
Estas reuniões dos líderes da Igreja, Cardeais, Bispos, Padres e alguns leigos, ocasionaram fortes discussões relacionadas à natureza do casamento, à continuidade dos ensinamentos de Jesus relativos ao casamento, a moral sexual e de como oferecer soluções nestes temas ao mundo todo. Francisco facilitou a discussão livre de abordagens pastorais inovadoras simultaneamente garantindo a continuidade da fé recebida de Jesus e espalhada por meio dos apóstolos.
Recentemente o Santo Padre publicou suas conclusões finais a partir do longo e convoluto processo do sínodo. Todavia, o debate continua. Dentro e fora da Igreja, esforços para distorcer as conclusões do Papa começaram antes de elas serem anunciadas na Exortação Apostólica Pós-sinodal, Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), com o subtítulo Sobre o Amor na Família, formalmente aprovada em 19 de março e publicada em 8 de abril de 2016.
Enquanto o mundo ansiosamente esperava pela publicação da A Alegria do Amor, a maior expectativa dizia a respeito se Francisco adequaria os ensinamentos da Igreja relativo aos temas candentes da homossexualidade e do divórcio. De fato, alguns cardeais que participaram dos dois Sínodos e que foram consultados pelo Papa na preparação do documento recomendaram mudanças, por exemplo, reconhecendo as relações estáveis entre pessoas de mesmo sexo como algo inerentemente bom, comparável ao casamento, e oferecendo soluções inovadoras ao dilema dos católicos divorciados e casados civilmente que são proibidos de receber a Comunhão enquanto continuarem a manter relações sexuais com parceiros com quem não estejam casados na Igreja.
O suspense anterior à publicação foi aumentado pelo fato de parecer que Francisco sinalizava sua simpatia pessoal por algumas mudanças e encorajava o debate livre e sem controle sobre novas propostas pastorais.
Alguns momentos após a publicação da A Alegria do Amor, nas primeiras linhas do texto noticioso com origem na Cidade do Vaticano, a Associated Press declarou “que a doutrina da igreja não pode ser a palavra final em responder complicadas perguntas morais,” “que católicos devem se guiar pelas suas próprias consciências” e que os pastores locais podiam admitir que divorciados recasados comungassem “em análise caso-a-caso no que poderia se tornar uma mudança significativa nas práticas da igreja.”
A CNN e o The New York Times também se precipitaram em publicar pequenos textos deduzindo que Francisco havia realizado grandes mudanças na doutrina e prática da Igreja.
Talvez aquelas respostas da imprensa à carta de amor do Papa não conseguiram levar em consideração o que o próprio Papa advertiu no primeiro parágrafo do documento. “Eu não aconselho uma leitura geral apressada do texto” (n. 7). “O maior benefício” virá, ele escreveu, “se cada parte for lida paciente e cuidadosamente.” De fato, Francisco comenta sobre os debates na sala do Sínodo e na mídia advertindo contra os extemos: por um lado “o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação,” e por outro, “uma atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas” (n. 2).
Como lider da Igreja Católica, o Papa está comprometido em conservar a fé em sua integridade, o que inclui oferecer a misericórdia de Jesus que veio para salvar o mundo. Visto que misericórdia e justiça são ambas encontradas em perfeição em Jesus, que é a própria Verdade, não pode haver oposição entre ensinamento universal e objetivo e as aplicações locais destes ensinamentos. Da mesma forma que Jesus pessoalmente encontrou a mulher Samaritana no poço de Sicar e o Apostolo Pedro depois da tripla negação, todos os Cristãos são hoje chamados a oferecer compaixão e cuidado adequados a cada indivíduo em nossos convites apostólicos e pastorais à conversão do pecado à graça.
1. Matrimônio como uma imagem divina
Nestes tempos de crise, Francisco reafirma a visão do casamento do Evangelho como um compromisso para a vida entre um homem e uma mulher para fundar uma família. Francisco se estende sobre a condenação de Jesus ao divórcio colocando renovado foco nas crianças, ao evocar a dolorosa experiência pastoral de famílias destruídas.
Visto que o amor dos esposos e a vida familiar são imagens do amor de Deus, o rompimento do amor entre os pais torna mais difícil para as crianças crescerem confiantes no amor incondicional e que a tudo abarca, de Deus por eles. A consideração de nossa filiação divina se apoia em nossa experiência do amor fiel de nossos pais. A santidade do matrimônio, vista como uma reflexão dos planos criadores de Deus, que requer nossa participação na vida divina, também serve como base para a consideração do Papa nas diferenças sexuais e sua rejeição das tentativas de reconhecer uniões de pessoas do mesmo sexo como equivalentes ao casamento.
Na A Alegria do Amor, Francisco condena a intervenção política abusiva em assuntos de estado ou em programas educacionais que defendem modelos de sexualidade e gênero que apagam a beleza intrínseca e natural das diferenças sexuais.
2. Teologia do corpo
O Papa se refere em profundidade à teologia do corpo do Papa João Paulo II para mostrar outra vez a beleza da atração sexual e do amor erótico quando vivido dentro do contexto da doação mútua e definitiva, com abertura transcendente ao poder criador de Deus em gerar uma nova vida. No capítulo 4, “Amor e Casamento”, ele analisa realisticamente o amor entre homem e mulher ao descrever o prazer apaixonado e os desafios diários de auto-sacrifício. A vocação matrimonial é uma grande chamada à santidade, que inevitavelmente envolve sofrimento e que ao mesmo tempo que promete uma recompensa infinitamente rica.
O desafio de Francisco para superar a cultura do descartável requer fidelidade aos que estão próximos de nós, especialmente em face a uma cultura de consumo, que trata pessoas como objetos e determina afastar-se dos fracos, dos que sofrem e dos rejeitados.
3. Misericórdia e carinho
A misericórdia e o carinho divinos, temas identificadores de Francisco, oferecem as lentes para entender como começar a resolver a crise do casamento e da família. Antes que amemos a Deus, Ele nos ama primeiro. Jesus demonstra em seu diálogo com a mulher apanhada em adultério e com a mulher Samaritana no poço de Sicar, que Ele não vem para condenar por meio de julgamento severo mas para salvar por meio da misericórdia. Ele levanta o pecador oferecendo-lhe a graça da conversão e a oportunidade de amar.
Da mesma forma, na Igreja hoje, todos nós devemos procurar aqueles que sofreram alguma forma de ruptura no casamento para convidá-los a experimentar a graça da conversão e procurar os dons da vida sacramental atraves da: Confissão para o perdão dos pecados,da Comunhão para nutrição divina e do Casamento, se possível, para sustentar o amor nupcial e a vida familiar.
4. Feminismo e gênero
Francisco avalia os aspectos positivos e as deficiências do feminismo. Ao rejeitar algumas formas de feminismo, ele afirma que O Espírito Santo pode ser visto nos ingentes esforços para promover a total dignidade e direitos da mulher. Centrando-se no feminino, Francisco escreve:
“Aprecio o feminismo, quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade. Com efeito, a grandeza das mulheres implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade humana inalienável, mas também do seu génio feminino, indispensável para a sociedade. As suas capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade – conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de todos” (n. 173).
5. Modelos inovadores da masculinidade
Para complementar suas visões positivas do feminismo, Francisco observa a importância da promoção de masculinidade saudável:
“O problema nos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias realizações individuais que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos” (n. 176). …
“Deus coloca o pai na família, para que, com as características preciosas da sua masculinidade, «esteja próximo da esposa, para compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja próximo dos filhos no seu crescimento… pai presente, sempre. Estar presente não significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam os filhos»” (n. 177).
O Papa se serve das recomendações do Sínodo para promover virilidade autêntica e ver São José como modelo da masculinidade gentil e paternal.
6. Novas abordagens pastorais
No capítulo 8, o penúltimo capítulo da A Alegria do Amor, “Acompanhando, Discernindo e Integrando a Fraqueza”, propõe novas abordagens pastorais para oferecer misericórdia e carinho às situações irregulares e outras situações familiares anômalas. Em parte anterior do documento, Francisco cita extensivamente partes de um sermão de Martin Luther King, Jr. para oferecer um profundo modelo mental cristão para encontrar soluções para situações que parecem ser destinadas a se tornar “uma cadeia do mal”.
“Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode quebrar a cadeia do ódio, a cadeia do mal. (…) Alguém deve ter bastante fé e moralidade para a quebrar e injetar dentro da própria estrutura do universo o elemento forte e poderoso do amor» ” (n. 118, citação do Sermão feito do Martin Luther King, Jr. na Igreja Batista na Dexter Avenue, Montgomery Alabama Nov. 17, 1957).
Estas palavras de Martin Luther King ajudam a explicar a abordagem do Papa a situações irregulares de casais. Com seu coração carinhoso e paternal, Francisco quer que os pastores abordem estas situações imperfeitas com um olho no que é bom nelas e com uma proposta amorosa de conversão. Francisco repete a doutrina de João Paulo II no que tange à lei de gradualidade (e não a gradualidade da lei) sugerindo que os pastores ajudem indivíduos e casais encontrando-se com eles em sua presente situação, com compaixão, tentando entendê-los e ajudando-os a entender e discernir, acompanhando-os em seu caminho de conversão auxiliando-os a lutar pelo ideal mais alto, ao mesmo tempo encorajando-os em cada passo do caminho.
O Papa distingue tal abordagem do método de simplesmente declarar o padrão objetivo e atirando-o nos feridos como uma espécie de pedra de condenação. Ao contrário, o bom pastor ajuda as pessoas a conseguir um entendimento da verdade de sua situação em consonância com sua consciência bem formada.
O tratamento da subjetividade, consciência e do foro interno dado neste capítulo causará certamente controvérsias dentro da Igreja, porque, mesmo que o Papa afirme que sua abordagem pastoral da misericórdia propõe-se a implementar o ensino tradicional, alguns continuarão tentar usá-lo, como o fizeram durante o Sínodo, para criar falsas pretensões de exceções para a indissolubilidade do casamento e a condenação universal do adultério. Nada aqui justifica a pretensão de, por exemplo, autorizar a recepção do sacramento sem qualquer objetivo de arrependimento ou de dissolver o vínculo matrimonial no foro interno.
7. A Sagrada Família como um modelo
Ao mesmo tempo que segue estritamente Paulo VI, Concílio Vaticano II e João Paulo II, Francisco explica como o mistério da Encarnação, manifestado na Sagrada Família, serve como modelo e luz para todas as famílias. Deus mesmo cresceu em uma família. Na pessoa de Jesus Cristo, Deus feito homem, foi criado por pais humanos. “Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e dá aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, impregnando toda a sua vida com a fé, a esperança e a caridade” (n. 67).
A citação que Francisco tira de Bento XVI condensa o cerne do desafio às famílias oferecido pela A Alegria do Amor: “o matrimônio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano” (n. 70, da Deus Caritas Est, n.11).
Rev. Robert A. Gahl, Jr., Professor Associado de Ética, Pontifícia Universidade da Santa Cruz, Roma.
Fonte: Mercatornet
Tradução: Oscar Rotava e Rafael Loreiro.