Na audiência aos participantes do Encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a promoção da nova Evangelização, para comemorar o XXV aniversário da promulgação do Catecismo da Igreja Católica, o Papa Francisco quis recordar a necessidade de guardar fielmente a doutrina recebida do Evangelho de Cristo e, por isso mesmo, fazê-la progredir sob a acção do Espírito Santo para responder às novas condições da humanidade.
Neste âmbito, o Papa Francisco actualizou a doutrina acerca da pena de morte.
Damos a seguir o seu discurso aos participantes do Encontro.
Papa Francisco
Saúdo-vos cordialmente e agradeço a Mons. Fisichella as amáveis palavras que me dirigiu.
O vigésimo quinto aniversário da Constituição apostólica Fidei depositum, com a qual São João Paulo II promulgava o Catecismo da Igreja Católica, trinta anos depois da abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II, é uma significativa ocasião para verificar o caminho entretanto percorrido. Não foi primariamente para condenar os erros que São João XXIII desejara e quisera o Concílio, mas sobretudo para permitir que a Igreja chegasse finalmente a apresentar, com uma linguagem renovada, a beleza da sua fé em Jesus Cristo. «É necessário – afirmava o Papa, no seu Discurso de abertura – que a Igreja não se aparte do património sagrado das verdades recebidas dos seus maiores; mas, ao mesmo tempo, deve também olhar para o presente, para as novas condições e formas de vida do mundo, que abriram novos caminhos ao apostolado católico» (11/X/1962). «O nosso dever – continuava o Pontífice – não é só guardar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente com a antiguidade, mas dedicar-nos com vontade pronta e sem temor àquele trabalho que o nosso tempo exige, prosseguindo assim o caminho que a Igreja percorre há vinte séculos» (ibid.).
«Guardar» e «prosseguir» é a incumbência que cabe à Igreja por sua própria natureza, a fim de que a verdade contida no anúncio do Evangelho feito por Jesus possa alcançar a sua plenitude até ao fim dos séculos. Esta é a graça que foi concedida ao Povo de Deus; mas é igualmente uma tarefa e uma missão, cuja responsabilidade carregamos: anunciar de modo novo e mais completo o Evangelho de sempre aos nossos contemporâneos. Assim, com a alegria que provém da esperança cristã e munidos do «remédio da misericórdia» (ibid.), vamos ao encontro dos homens e mulheres do nosso tempo para lhes permitir a descoberta da inexaurível riqueza encerrada na pessoa de Jesus Cristo.
Ao apresentar o Catecismo da Igreja Católica, São João Paulo II afirmava que ele «deve ter em conta as explicitações da doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja. É também necessário que ajude a iluminar, com a luz da fé, as novas situações e os problemas que no passado ainda não tinham surgido» (Const. apost. Fidei depositum, 3). Por isso, este Catecismo constitui um instrumento importante não apenas porque apresenta aos crentes os ensinamentos de sempre para crescerem na compreensão da fé, mas também e sobretudo porque pretende aproximar os nossos contemporâneos, com suas problemáticas novas e diversas, da Igreja, comprometida na apresentação da fé como resposta significante para a existência humana neste momento histórico particular. Assim, não basta encontrar uma nova linguagem para expressar a fé de sempre; é necessário e urgente também que, perante os novos desafios e perspetivas que se abrem à humanidade, a Igreja possa exprimir as novidades do Evangelho de Cristo que, embora contidas na Palavra de Deus, ainda não vieram à luz. Trata-se daquele tesouro feito de «coisas novas e velhas» referido por Jesus, quando convidara os seus discípulos a ensinar o novo por Ele trazido, sem descurar o antigo (cf. Mt 13, 52).
Uma das páginas mais belas do evangelho de São João é aquela que nos dá a chamada «oração sacerdotal» de Jesus. Antes de enfrentar a paixão e a morte, dirige-Se ao Pai manifestando a sua obediência na realização da missão que Lhe fora confiada. As suas palavras são um hino ao amor, incluindo também o pedido de que sejam guardados e protegidos os discípulos (cf. Jo 17, 12-15). Ao mesmo tempo, porém, Jesus reza por todas as pessoas que no futuro hão-de acreditar n’Ele, graças à pregação dos seus discípulos, para que também elas sejam congregadas e conservadas na unidade (cf. Jo 17, 20-23). Na frase «esta é a vida eterna: que Te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem Tu enviaste» (Jo 17, 3), toca-se o auge da missão de Jesus.
Como bem sabemos, conhecer Deus não é primariamente um exercício teórico da razão humana, mas um desejo inextinguível impresso no coração de cada pessoa. É o conhecimento que provém do amor, porque encontramos o Filho de Deus no nosso caminho (cf. Carta enc. Lumen fidei, 28). Jesus de Nazaré caminha connosco para nos introduzir, com a sua palavra e os seus sinais, no mistério profundo do amor do Pai. Este conhecimento fortalece-se dia após dia com a certeza, que nos dá a fé, de nos sentirmos amados e, consequentemente, inseridos num desígnio repleto de sentido. Quem ama quer conhecer melhor a pessoa amada, para descobrir a riqueza que se esconde nela e que dia a dia aparece como uma realidade sempre nova.
Por este motivo, o nosso Catecismo apresenta-se, à luz do amor, como uma experiência de conhecimento, de confiança e de abandono ao mistério. Ao delinear os pontos estruturais da sua composição, o Catecismo da Igreja Católica retoma um texto do Catecismo Romano; assume-o, propondo-o como chave de leitura e concretização: «A finalidade da doutrina e do ensino deve fixar-se toda no amor, que não acaba. Podemos expor muito bem o que se deve crer, esperar ou fazer; mas, sobretudo, devemos pôr sempre em evidência o amor de nosso Senhor, de modo que cada qual compreenda que qualquer acto de virtude perfeitamente cristão, não tem outra origem nem outro fim senão o amor» (Catecismo da Igreja Católica, n. 25).
Nesta linha de pensamento, apraz-me fazer referência a um tema que deveria encontrar, no Catecismo da Igreja Católica, um espaço mais adequado e coerente com as finalidades agora expressas. Penso concretamente na pena de morte. Esta problemática não pode ficar reduzida a mera recordação histórica da doutrina, sem fazer sobressair, por um lado, o progresso na doutrina operado pelos últimos Pontífices e, por outro, a renovada consciência do povo cristão, que recusa uma atitude de anuência em relação a uma pena que lesa gravemente a dignidade humana. Deve afirmar-se energicamente que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que, independentemente do modo como for realizada, humilha a dignidade pessoal. Em si mesma, é contrária ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e cujo verdadeiro juiz e garante, em última análise, é unicamente Deus. Nunca homem algum, «nem sequer o homicida, perde a sua dignidade pessoal» (Carta ao Presidente da Comissão Internacional contra a pena de morte, 20/III/2015), porque Deus é um Pai que sempre espera o regresso do filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e começa uma vida nova. Por conseguinte, a ninguém se pode tirar não só a vida, mas até a própria possibilidade de um resgate moral e existencial que redunda em proveito para a comunidade.
Nos séculos passados em que se confrontava com uma pobreza dos instrumentos de defesa e a maturidade social não conhecera ainda o devido desenvolvimento positivo, o recurso à pena de morte aparecia como consequência lógica da aplicação da justiça que se devia seguir. No próprio Estado Pontifício, infelizmente, recorreu-se a este remédio extremo e desumano, descurando o primado da misericórdia sobre a justiça. Assumamos as responsabilidades do passado, reconhecendo que aqueles meios eram ditados por uma mentalidade mais legalista que cristã. A preocupação por conservar íntegros os poderes e as riquezas materiais levara a sobrestimar o valor da lei, impedindo que se chegasse a uma maior profundidade na compreensão do Evangelho. Mas, permanecer neutrais hoje perante as novas exigências de reafirmação da dignidade pessoal, tornar-nos-ia mais culpáveis.
Aqui não estamos perante qualquer contradição com a doutrina do passado, porque a defesa da dignidade da vida humana desde o primeiro instante da concepção até à morte natural sempre encontrou, no ensinamento da Igreja, a sua voz coerente e autorizada. O desenvolvimento harmónico da doutrina, porém, requer que se abandone tomadas de posição em defesa de argumentos que agora se apresentam decididamente contrários à nova compreensão da verdade cristã. Aliás, como já recordava São Vicente de Lérins, «talvez alguém pergunte: Não haverá progresso algum dos conhecimentos religiosos na Igreja de Cristo? Há, sem dúvida, e muito grande. Com efeito, quem será tão malévolo e tão inimigo de Deus que pretenda impedir este progresso?» (Commonitorium, 23.1: PL 50, 667). Por isso, é necessário reiterar que, por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa.
«A Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo aquilo em que acredita» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 8). No Concílio, os Padres não podiam encontrar afirmação sintética mais feliz para expressar a natureza e missão da Igreja. Não só na «doutrina» mas também na «vida» e no «culto», é oferecida aos crentes a capacidade de ser Povo de Deus. Com uma sequência evolutiva de verbos, a Constituição dogmática sobre a Divina Revelação exprime a dinâmica resultante do processo: «esta Tradição progride (…), cresce (…), tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus» (ibid.).
A Tradição é uma realidade viva; e somente uma visão parcial pode conceber o «depósito da fé» como algo de estático. A Palavra de Deus não pode ser conservada em naftalina, como se se tratasse de um velho cobertor que é preciso proteger da traça! Não. A Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre viva, que progride e cresce, porque tende para uma perfeição que os homens não podem deter. Esta lei do progresso – segundo a fórmula feliz de São Vicente de Lérins: «annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate – fortalece-se com o decorrer dos anos, cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através das idades» (Commonitorium, 23.9: PL 50, 668) – pertence à condição peculiar da verdade revelada, enquanto transmitida pela Igreja, e não significa de modo algum uma mudança de doutrina.
Não se pode conservar a doutrina sem a fazer progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável, sem humilhar a acção do Espírito Santo. Deus que, «muitas vezes e de muitos modos, falou aos nossos pais, nos tempos antigos» (Heb 1, 1), «dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho» (Dei Verbum, 8). E nós somos chamados a assumir esta voz com uma atitude de «religiosa escuta» (ibid., 1), para permitir que a nossa existência eclesial progrida, com o mesmo entusiasmo dos primórdios, rumo aos novos horizontes que o Senhor pretende fazer-nos alcançar.
Agradeço-vos este encontro e o vosso trabalho; peço-vos que rezem por mim e de todo o coração vos abençoo. Obrigado.