Entre os temas recentemente evidenciados pelo universo midiático, encontra-se aquele do matrimônio e dos processos de nulidade matrimonial na Igreja Católica. A repercussão encontra a sua base em uma última e inovadora lei emanada pelo Papa Francisco, que reformou significativamente o ambiente dos processos eclesiásticos de nulidade do matrimônio. A reforma desejada pelo Pontífice influiu diretamente na ordem processual, alterando leis com o intuito de dar maior celeridade aos processos, e na própria estrutura organizacional dos Tribunais da Igreja. Esta se deu com duas Cartas em forma de “Motu proprio” (leis emanadas diretamente pelo Papa), promulgadas em 15 de agosto e publicadas em 8 de setembro deste ano, dirigidas respectivamente aos fiéis católicos de rito latino e oriental.
O princípio que está na base da reforma, evidenciado pelo Papa no início da Carta Apostólica “Mitis Iudex Dominus Iesus” (nome atribuído ao documento destinado aos fiéis católicos de rito latino) é a indissolubilidade do matrimônio, ou seja, uma vez fixada validamente a união entre um homem e uma mulher por meio do pacto conjugal, o vínculo é para sempre. Tal princípio, radicado nas Palavras de Cristo e portanto irrenunciável, vincula todos os fiéis católicos, incluído o Sucessor de Pedro. Nesta perspectiva é fácil compreender porque na Igreja não existe a anulação do matrimônio, como muitos pensam; o que existe são atos judiciais que declaram nula aquela união matrimonial que nunca existiu, pela constatação de um defeito no momento da sua fundação. Daí o interesse da Igreja em tutelar o matrimônio com leis que disciplinem a sua nulidade, sempre mais coerentes com a verdade e a fé professada. Sem dúvida, a indissolubilidade do matrimônio é um bem que favorece a pessoa, a família e a sociedade.
Impulsionado pelo Espírito de Misericórdia, que não contradiz a verdade e a justiça evangélica, em continuidade com o Magistério de seus Predecessores, o que o Papa Francisco quis, atendendo as propostas apresentadas pelo Sínodo Extraordinário para a Família, foi oferecer um impulso à promoção de processos eclesiásticos de nulidade matrimoniais “rápidos e acessíveis”. Tal reforma materializou-se através de alterações efetuadas em alguns cânones do Código de Direito Canônico.
O primeiro aspecto que emerge do texto normativo, não de tudo inovador, ao menos na sua substância, é o apelo dirigido aos Bispos a fim de que os mesmos, conforme a prática dos primeiros séculos da Igreja, exercitem pessoalmente a função judicial, sobretudo nos casos de processos breves (casos em que a nulidade do matrimônio apareça nos autos com evidência). O apelo, portanto, é que o Bispo diocesano, enquanto juíz natus da porção do Povo de Deus ao mesmo confiada, não deixe completamente descentralizada a função judicial, mas que o mesmo envolva-se diretamente neste serviço. O que exige, em termos gerais, um aperfeiçoamento da ciência jurídica dos Pastores, uma vez que foi a técnica jurídica, somada ao tempo despendido nos processos, requisitos necessários à emanação de justos juízos, os critérios que ofereceram base à previsão normativa que recomendava a descentralização do exercício do poder judicial na Igreja.
Um outro ponto fundamental da reforma é a extinção da exigência de uma dupla sentença conforme, a fim de que as partes interessadas sejam admitidas às novas núpcias. A previsão obrigatória de um segundo grau de juízo, instaurada pelo Papa Bento XIV (1741) com a finalidade de sanar os abusos da época, exigia duas sentenças afirmativas em favor da nulidade do matrimônio a fim de que a decisão pudesse ser definitiva e então executável. Em outras palavras, nas causas matrimoniais a segunda instância era sempre necessária. Com a reforma de Francisco, será suficiente a certeza moral adquirida por um único colégio de juízes, isto é, uma decisão de primeira instância em favor da nulidade do matrimônio que, uma vez não apelada, passa a ser imediatamente executiva.
Com o interesse direto de oferecer uma maior celeridade aos processos, a reforma introduz ainda no ordenamento canônico o já mencionado “processo breve”. Tal processo, de competência do Bispo diocesano, poderá ser aplicado apenas naqueles casos em que a nulidade do matrimônio é sustentada, de forma consensual, por ambos os cônjuges, com argumentos particularmente evidentes. Entre as circunstâncias que poderiam consentir o tratamento da causa por meio do processo mais breve, prevê a normativa: “aquela falta de fé que pode gerar a simulação do consenso ou o erro que determina a vontade, a brevidade da convivência conjugal, o aborto procurado para impedir a procriação, a obstinada permanência em uma relação extraconjugal no tempo do noivado ou em um tempo imediatamente sucessivo, o ocultar doloso da esterilidade ou de uma grave doença contagiosa ou de filhos nascidos em uma relação precedente ou de uma detenção, a causa do matrimônio de tudo estranha à vida conjugal ou consistente na gravidez imprevista da mulher, a violência física aplicada para extorquir o consenso, a falta do uso de razão comprovada por documentos médicos, etc.”. Como se percebe, o leque de aplicação é bastante vasto, sobretudo, considerado o “etc.” final. O que faz parecer que seria a própria evidência da nulidade, fundada em elementos objetivos, a mover a decisão do juiz de percorrer a via judicial “breve”.
Tudo isso leva a crer que o interesse maior do Papa, em consonância com o Sínodo para as famílias e salvo o princípio divino da indissolubilidade do matrimônio, é aquele de promover a celeridade dos processos matrimoniais e o estabelecimento de um iter processual, consonante com a prax da Igreja primitiva, que promova a aproximação entre o Bispo e o fiel (ou os fiéis) interessado em receber da Igreja um justo juízo acerca do seu estado de vida. Tarefa que exigirá o empenho dos Pastores não raramente comprometidos com tantas atividades. Nas palavras de Francisco, o apelo é que aconteça uma “conversão das estruturas eclesiásticas”.
Um outro aspecto, já contemplado pelo Ordenamento da Igreja, porém reforçado pelo documento, refere-se àquelas questões econômicas relacionadas ao ambiente dos Tribunais da Igreja. O apelo de Francisco é que, «salvo a justa e a digna retribuição dos operadores dos Tribunais, que venha assegurada a gratuidade dos procedimentos». Neste aspecto, o Papa parece expressar um desejo a fim de que o serviço seja oferecido, de modo geral, com a isenção de qualquer taxa, considerando que o gratuito patrocínio já era previsto nos Tribunais Eclesiásticos, com referência aos interessados que declarassem a sua não possibilidade de arcar com as despesas processuais.
Apesar da nova normativa entrar em vigor a partir de 8 de dezembro de 2015 (período de vacatio legis), o novo sistema exigirá, certamente, tempo para o estudo e a formação. Contudo, o que se deve considerar pelo momento, nas palavras do atual Decano do Tribunal Apostólico da Rota Romana, Monsenhor Vito Pinto, “é o acolhimento da novidade expressa pelo Papa Francisco: o serviço e a misericórdia em relação a esta categoria de pobres, o grande número de divorciados que esperam, se possível, um novo matrimônio canônico”.
Padre Luiz Carlos Machado de Souza Filho
Arquidiocese da Paraíba
Doutorando em Direito Canônico
Pontifícia Universidade da Santa Cruz – Roma