Lugares sagrados para os cristãos

No dia 9 de novembro a Igreja Universal vai celebrar como Festa litúrgica a Dedicação da Basílica de S. João de Latrão (Catedral de Roma). Com esse pano de fundo podemos levantar a questão: Não foi instituído por Cristo um culto em Espírito e Verdade? Não são santos todos os lugares e próprios para essa adoração? Por que será que existem, então, lugares sagrados para os cristãos? Faz sentido falar de templos quando os cristãos formam parte, como pedras vivas, do templo espiritual de Deus?

Quando estudava em Roma recordo ver uma gravura representando a grande festa da dedicação da basílica do Santíssimo Salvador. Uma explicação esclarecia que esse era o nome inicial da Basílica mais conhecida agora pelo nome de S. João de Latrão. Na gravura percebia-se a enorme festa vivida por toda a cidade de Roma. Não era difícil ligar os acontecimentos históricos: os tempos tinham mudado. De perseguida a Igreja de Cristo podia agora professar a sua fé. E podia fazê-lo de forma solene. Podia, inclusive, possuir os seus próprios templos! Ali estava, no coração do império uma magnífica Basílica, no Monte Célio, no lugar do antigo Palácio de Latrão, que servira de quartel à própria guarda do imperador. Aliás, o próprio Imperador Constantino doara o terreno e o Papa Silvestre I dedicara a igreja ao Santíssimo Salvador (318 ou 324). Mais tarde, na época medieval, construiu-se uma capela dedicada a São João Batista, que servia de batistério e no século IX, o Papa Sérgio III confirmou a dedicação a João Batista. Por fim, no século XII, o Papa Lúcio II também a dedicou a São João Evangelista. Daí a denominação da Basílica Papal do Santíssimo Salvador e dos Santos João Batista e Evangelista de Latrão. Durante muitos séculos, até ao período de Avignon, a cadeira papal esteve aí, razão pela qual esta basílica mereceu o título de «cunctarum mater et caput ecclesiarum», mãe e cabeça de todas as igrejas, que ainda pode ser lido numa inscrição junto à entrada. Justifica-se, por isso, a celebração litúrgica universal da dedicação de uma igreja tão relevante para toda a cristandade.

Porém, voltemos a levantar a questão: não havia Cristo instaurado um culto em Espírito e Verdade? Não tinha sido abolido o Templo de Jerusalém? Não eram os corações dos cristãos os novos templos de Deus?

Efetivamente, com a Nova Aliança e a adoração em Espírito e Verdade (Jo 4, 24) revoluciona-se o lugar sagrado. Cristo retoma a vocação de Adão, sacerdote de Deus no Templo da Criação. Assim, por um lado, o cristão sabe que todos os lugares são santos, no sentido de que em todo o lugar está chamado a oferecer o sacrifício da sua existência e dirigir a sua oração ao Senhor.

Por outro lado, quando os fiéis se reúnem num mesmo lugar eles sabem que são «pedras vivas» para a «edificação de um edifício espiritual» (1Pe 2, 4-5). Sabem-se membros do Corpo de Cristo. Ora o corpo do Ressuscitado é o templo espiritual donde brota a fonte de água-viva. Assim, incorporados em Cristo pelo Espírito Santo, todos os cristãos podem dizer: «nós somos o templo do Deus vivo» (2 Cor 6, 16).[1]

E, no entanto, ali era levantado aquele templo, aquela basílica, mal os cristãos se sentiram em paz e deixaram de ser perseguidos. Que aconteceu?

Se olharmos com atenção, vemos que não se deu nenhuma rutura. Os cristãos já tinham as suas casas dedicadas à oração. Havias as chamadas «domus ecclesiae», casas de família, geralmente, de cristãos mais abastados e que permitiam, pelo seu tamanho e disposição, receber os irmãos e celebrar a Eucaristia com decoro e à vontade. Com o tempo, e a morte dos seus proprietários, muitas delas foram doadas à Igreja e ficaram de dedicadas, exclusivamente, para esse fim, isto é, para a administração dos sacramentos e, em especial, para a celebração da Eucaristia. Foi algo natural. Os cristãos sentiram necessidade de ter um espaço de oração, um espaço cuidado, pensado, ordenado a facilitar o encontro com o seu Senhor na Eucaristia e nos demais Sacramentos.

Colocar em primeiro lugar a transcendência de Deus e a importância da interioridade no nosso relacionamento com Ele não contradiz, portanto, o facto de que os homens precisem de lugares onde a proximidade do Senhor connosco se manifeste mais claramente. E a isso se acrescenta a realidade de que não nos salvamos individualmente, mas como Igreja, como povo de Deus. Não por acaso, a palavra igreja, na sua origem grega, significa assembleia ou reunião. Com efeito, na igreja, grande ou pequena, encontramos outros fiéis cristãos e Cristo está presente entre nós, especialmente na Eucaristia. «A minha casa é uma casa de oração» (Mt 21, 13). [2]

Efetivamente, na condição em que nos encontramos, como caminhantes, necessitamos de elementos físicos que nos ajudem a colocar-nos diante de Deus. O cardeal Ratzinger assinalava neste sentido que a Redenção não aboliu a barreira entre o sagrado e o profano, entre a vida ordinária com as suas pequenas realidades quotidianas e o âmbito do «santo»:

«Esqueceu-se que este mundo não é o reino de Deus e que «o Santo de Deus» (Jo 6, 69) continua a existir em contradição a este mundo; que necessitamos de purificação antes de nos aproximarmos d’Ele; que o profano, mesmo depois da morte e ressurreição de Jesus, não chegou a transformar-se no «santo».[3]

Sabendo-o, o próprio Deus nos deixou os Sacramentos (sinais físicos que realizam a graça que significam). Em concreto, ficou Ele próprio, velado, na Eucaristia, para nos fazer participar, como antecipação, da liturgia celeste.

Ora, para celebrar a Eucaristia (e os demais sacramentos) de forma ordinária e continuada, surge a conveniência, como dissemos, de dispor de um espaço adequado. Um espaço onde tudo esteja ordenado a essa celebração. Um espaço pensado para o encontro com o nosso Deus. Isto explica porque, desde as primeiras gerações cristãs até aos nossos dias, exista uma cadeia ininterrupta de edifícios cultuais, especialmente destinados a celebrar a eucaristia.

Assim, embora o culto em «espírito e verdade» (Jo 4, 24) não esteja ligado a nenhum lugar exclusivo, existem lugares sagrados para os cristãos. Precisamente porque precisamos deles, como dizia o cardeal Ratzinger:

«Sim, necessitamos, precisamente para aprendermos, através de «imagens» e de sinais, a ver o Céu aberto, para adquirirmos a aptidão de reconhecer o segredo de Deus no coração trespassado do crucificado».[4]

Por isso, é em clima de festa e como sinal de amor e unidade para com o Romano Pontífice que no dia 9 de novembro celebraremos a dedicação da Igreja de Latrão.

Pedro Boléo Tomé


[1] Cfr. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nº 1179.

[2] Meditação de 9 de novembro, opusdei.pt

[3] J. Ratzinger, Intorno al caso Lefebvre, in LÓPEZ ARIAS, F., Il contributo di Joseph Ratzinger alla teologia dello spazio liturgico, p. 89.

[4] RATZINGER, J. Introdução ao Espírito da Liturgia, p. 46.

Fonte: Celebração Litúrgica

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