Deus criou a morte?
Mons. José Maria Pereira
Os textos bíblicos deste Domingo (Sb 1, 13-15; 2, 23-24) e (Mc 5, 21-43) falam-nos da morte e da vida.
O trecho extraído do livro da Sabedoria começa com estas palavras: “Deus não fez a morte, nem tem prazer com a destruição dos vivos. Ele criou todas as coisas para existirem, e as criaturas do mundo são saudáveis: nelas não há nenhum veneno de morte, nem é a morte quem reina sobre a terra”. A morte é consequência do pecado (Rom 6,23).
Deus, que é o ser vivente por excelência, autodefine – Se da seguinte maneira: “Eu sou Aquele que sou” (Ex 3, 14). Ele não pode ser outra coisa senão o autor da vida. Ao criar o homem à sua imagem e semelhança, não lhe podia dar o destino da morte. A Sagrada Escritura é clara neste ponto: “Deus criou o homem para a imortalidade, e fê-lo à imagem da Sua própria natureza” (Sb 2,23). Qual é, pois, a origem da triste realidade da morte, de que ninguém pode fugir? A Bíblia apresenta-a, desde as suas primeiras páginas, como um castigo do pecado (Gn 3,19), e o trecho de Sabedoria 2,24, aludindo a essa ideia, pormenoriza: ”Por inveja do diabo que a morte entrou no mundo”. O maligno, incitando o homem ao pecado, arrastou-o para a morte total: morte física e morte espiritual, ou seja, separação eterna de Deus.
Jesus, ao remir o homem do pecado, remiu-o também da morte; restitui-lhe plenamente o seu destino de vida eterna. Cristo manifesta este poder com as ressurreições que efetua. O Evangelho de hoje (Mc 5, 21-43) refere-se à ressurreição da filha de Jairo. Tal como no caso de Lázaro, Jesus não diz que ela está morta, mas que apenas dorme. “A criança não morreu, mas está dormindo” (Mc 5, 39); como, que para indicar que na morte, tal como no sono, é admissível despertar e que, para Ele, não é mais difícil ressuscitar um morto do que acordar uma pessoa que está dormindo.
Para quem crê, a morte terrena é como um sono do qual se acorda em Deus. Assim a consideravam os primeiros cristãos. Dizia São Paulo aos cristãos de Tessalônica: “Irmãos, não queremos deixar-vos na ignorância quanto aos que adormeceram, para que não fiqueis tristes como os outros, que não têm esperança” (1Tss 4, 13). Não podemos afligir-nos como os que nada esperam depois desta vida, porque “se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos igualmente que Deus, por meio de Jesus, reunirá consigo os que adormeceram” (1Tss 4, 14). Ele fará conosco o que fez com Lázaro: o nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo. E quando os discípulos pensaram que se tratava do sono natural, o Senhor afirmou claramente: Lázaro morreu (cf. Jo 11, 11ss).
Quando a morte chegar, fecharemos os olhos para esta vida e despertaremos na Vida autêntica, aquela que dura por toda eternidade: “Ao entardecer vem o pranto visitar-nos, mas de manhã vem saudar-nos a alegria”, rezamos no Salmo 29(30), 6. O pecado é a autêntica morte, pois é a terrível separação – o homem quebra a sua união com Deus –, ao pé da qual a outra separação, a do corpo e da alma, é coisa mais leve e provisória. “Quem crê em Mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em Mim, jamais morrerá” (Jo 11, 25-26), disse Jesus.
A morte, que era o nosso supremo inimigo (“o último inimigo a ser destruído é a morte”, 1Cor 15, 26), é agora nossa aliada, converteu-se no último passo, depois do qual encontraremos o abraço definitivo do nosso Pai, que nos espera desde sempre e que nos criou para permanecermos com Ele. “Quando pensares na morte, apesar dos teus pecados, não tenhas medo… Porque Ele já sabe que O amas…, e de que massa estás feito.
— Se O procurares, acolher-te-á como o pai ao filho pródigo: mas tens de procurá-Lo!” ( São Josemaria Escrivá, Sulco, 880 ). Que possamos dizer, com toda a nossa alma: Tu sabes, Senhor, que te procuro dia e noite!
Jesus disse a Jairo: “A criança não morreu, mas está dormindo” (Mc 5, 39). “Estava morta para os homens, que não podiam despertá-la; para Deus, dormia, porque a sua alma vivia submetida ao poder divino, e a carne descansava para a ressurreição. Explica-se assim que se tenha introduzido entre os cristãos o costume de referir-se aos que morreram dizendo que dormem, pois sabemos que ressuscitarão” (São Beda).
Jesus sai das margens do lago à casa de Jairo. Pelo caminho uma senhora O toca e acaba sendo curada de uma penosa doença incurável; ao chegar na casa de Jairo, encontra a menina morta; pega-lhe a mão, “menina, ordeno-te, levanta-te!, lhe diz, como havia dito pouco antes ao mar: Silêncio! Cala-te! (Mc 4,39). De novo, é o estupor; portanto, não só o mar lhe obedece, mas também a morte! O homem, uma vez morto, porventura tornará a viver? – suspirava Jó; agora, eis um sinal concreto de que ele pode tornar a viver.
Jesus diz ao chefe da Sinagoga: “Não tenhas medo; basta ter fé” (Mc 5, 36), leva-o consigo onde estava a menina e exclama: “Menina, levanta-te!” (Mc 5, 41). E ela levantou-se imediatamente e começou a andar. São Jerônimo comenta estas palavras, ressaltando o poder salvífico de Jesus: “Menina, levanta-te para mim: o fato de te teres curado não depende da tua virtude” (Homilias sobre o Evangelho de Marcos, 3).
Hoje somos convidados a renovar nossa fé em Jesus Senhor da vida e da morte; em Jesus que salva, porque esta é a nota dominante hoje: a salvação. Uma salvação que não se limita à mente, ao coração ou à alma, mas que abraça o homem por inteiro, tanto sua carne como seu espírito. Também a “saúde” faz parte da “salvação”.
Chama a atenção, na cena do Evangelho de hoje, dentre a multidão que se comprime ao redor de Cristo, surge de maneira humilde e discreta uma mulher. A doença ( enferma com hemorragias há doze anos! ) a fazia sofrer física e moralmente. A sua fé é enriquecida por uma manifestação de humildade: a consciência de ser indigna de tocar o Senhor. Atreve-se a tocar o manto de Jesus, apesar da lei de Moisés proibir o contato com outras pessoas. Pensa: apenas em tocar seu manto, ficarei curada. Demonstra ter uma grande fé, uma fé audaz, que não busca nenhuma manifestação exterior, mas se contenta com um simples toque. De fato, depois de haver tocado o manto de Jesus, percebe em seu corpo que está curada. Jesus se dá conta desse toque, volta-se à multidão e pergunta sobre quem o tocou. Da multidão que O oprime, uma só pessoa lhe tocou de verdade: esta doente; e não apenas com um gesto, mas com a fé do seu coração. Comenta Santo Agostinho: “Ela toca, a multidão oprime. Que significa “tocou” senão que creu?”. Necessitamos do contato com Jesus. Ao receber na Santíssima Eucaristia Jesus Cristo, realiza-se este contato físico através das espécies sacramentais. Pela nossa parte necessitamos de avivar a fé para que sejam proveitosos estes encontros em ordem à nossa salvação (Mt 13, 58).
Os discípulos dizem a Jesus o óbvio, que estão apertados pela multidão e muitos o tocaram. Só que Jesus sabe não se referir a um toque qualquer, mas a um toque que provocou uma emanação de força espiritual capaz de curar.
Então, ao mostrar-se, ocorre a cura completa da mulher. O Senhor confirma a sua fé e o efeito positivo da mesma. Chamando-a ternamente de filha diz: “tua fé te salvou, fica curada de tua enfermidade”. Curada e salva.
Assim nós, se queremos ser curados e salvos, toquemos com fé em Nosso Senhor.
O que significam a cura da mulher enferma e a ressurreição da filha de Jairo? Significam que Deus, em Jesus Cristo, tomou nas mãos a sorte do homem, que voltou a se manifestar por aquilo que é realmente, isto é, o Deus dos vivos e não dos mortos ( cf. Mt 22, 32 ); o Deus que faz triunfar a vida e que preserva a existência de suas criaturas. Tudo isto faz, sem eliminar a doença, o enfraquecimento e a morte, mas resgatando-os, abrindo neles um caminho para a vida. Um dia não haverá mais morte, nem luto, nem lamento, nem desprazer: todas estas coisas terão passado (cf. Ap 21,4). O último inimigo – a morte – será aniquilado (1 Cor 15, 26). Haverá vida e vida eterna! Eis a promessa contida naqueles sinais e que faz dos milagres de Jesus outros sacramentos da esperança.
Quem diz que isso é de verdade uma esperança e não uma ilusão? O fato de que pelo menos um percorreu aquele caminho por inteiro: Jesus! Ele passou pela morte e agora – nós o sabemos – está vivo. Esse trecho do Evangelho de hoje ( Mc 5, 21 – 43 ) é um prólogo da Páscoa de Cristo. Revela-lhe antecipadamente o sentido.
Tudo isto não faz sentido a não ser na fé: “a tua fé – disse Jesus à mulher – te salvou” (Mc 5, 34). Também hoje, o que pode nos salvar é a nossa fé vivida na esperança: nós somos salvos na “esperança” (cf. Rm 8, 24). Somente a fé pode ir além e guiar o homem pela mão para aquele passo extremo pacificando seus pensamentos. Paulo exclama: “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada? Mas em tudo isso somos mais que vencedores (Rm 8, 35 – 37). Jesus nos libertou do medo da “segunda morte” (Ap 20, 14); a morte eterna.
Peçamos à Virgem Maria que acompanhe o nosso caminho de fé, ela que acreditou, que é a Virgem fiel!