O que Deus uniu
Mc 10,2-16
Caros irmãos e irmãs,
As leituras bíblicas, que compõem a Liturgia da Palavra deste domingo, nos apresentam o projeto de Deus para o homem e para a mulher, e sinalizam o tema do matrimônio presente no Evangelho e na primeira leitura. A mensagem da Palavra de Deus pode ser resumida na expressão contida no livro do Gênesis e retomada pelo próprio Jesus no Evangelho: “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne” (Gn 2,24, Mc 10,7-8), cujo objetivo é formar uma comunidade de amor, estável e indissolúvel.
Lançando um olhar inicial para a primeira leitura (cf. Gn 2,18-24), observa-se que Deus colocou o homem no Jardim do Éden, um ambiente de felicidade material, onde todas as exigências da vida humana se supriam. Contudo, o homem não estava plenamente realizado, pois lhe faltava alguém com quem pudesse compartilhar a sua vida. E ao constatar a solidão do homem, Deus quis encontrar para ele uma companhia adequada e apresentou diante dele “todos os animais do campo e todas as aves do céu”, a fim de que os chamasse pelos seus respectivos nomes (v. 19). O fato de “dar um nome” indica um ato de domínio e de posse. O fato de Deus ter conduzido os animais para que o homem lhes desse um nome era, na perspectiva do texto bíblico, o reconhecimento por parte de Deus da autonomia do homem e a sua associação à obra criadora do Senhor Deus. No entanto, o homem não encontrou, nesse mundo animal que Deus lhe confiou, “uma auxiliar semelhante a ele” (v. 20), Diante disso, Deus reconhece que “não é bom que o homem esteja só” (v. 18).
A nova ação de Deus começa com um “sono profundo” do homem. Depois, Deus tirou uma de suas costelas para criar a mulher. Em seguida o Senhor Deus a conduz ao homem. O homem, ao despertar do “sono profundo”, acolhe a mulher com uma expressão de alegria e a reconhece como a companhia que lhe faltava, o seu complemento, o seu outro eu: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v. 23). O homem (v. 23) dá à sua companheira o nome de “mulher” (em hebraico: ‘ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: ‘ish). A proximidade das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a sua igualdade fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu parentesco. E o texto termina com uma frase que diz: “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne” (v. 24).
Pode-se observar que Deus criou o homem e a mulher para ser auxílio mútuo e para partilhar a vida no amor. É no amor e não na solidão que o homem encontra o sentido para a sua existência. O Homem e a mulher são iguais em dignidade. Eles são “da mesma carne”, em igualdade de ser participantes do mesmo destino; completam-se um ao outro e, na perspectiva de uma ajuda mútua, chegam à plena realização. São, portanto, iguais em dignidade. Esta realidade exige que homem e mulher se respeitem um ao outro.
O texto do evangelho nos apresenta mais um ensinamento de Jesus, desta vez respondendo a uma pergunta dos fariseus sobre o matrimônio e o divórcio. Os fariseus eram os fanáticos observantes da lei e, a Lei de Israel permitia o divórcio (cf. Dt 24,1); mas não era totalmente clara acerca das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. A mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante. É nesta discussão de contornos pouco claros que os fariseus procuram envolver Jesus. A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões para eliminar Jesus.
Diante da questão posta pelos fariseus “pode um homem repudiar a sua mulher?” (v. 2), Jesus começa por recordar-lhes o estado da questão na perspectiva da Lei: “O que vos ordenou Moisés?” (v. 3). Não significa que Jesus está se identificando com o posicionamento da Lei a propósito da questão do divórcio. Efetivamente, a Lei de Moisés permitia o divórcio, contudo, essa condescendência da Lei não resulta do projeto de Deus para o homem e para a mulher, mas é o resultado da “dureza do coração” dos homens. Em contraste com a permissividade da Lei, Jesus vai apresentar o projeto primordial de Deus para o amor do homem e da mulher. Fazendo referência ao Livro do Gênesis, Jesus explica que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão “uma só carne”. A separação será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projeto original de Deus. Jesus reitera que a relação entre o homem e a mulher deve se enquadrar no projeto inicial de Deus. A perspectiva de Deus é que marido e mulher, unidos pelo amor, formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel. Ambos, em igualdade de circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade familiar.
A vocação para o matrimônio está inscrita na própria natureza do homem e da mulher, tais como saíram das mãos do Criador, e ao criá-los Deus os fez imagem do amor. E este amor, que Deus abençoa, está destinado a ser fecundo e a realizar-se na obra comum do cuidado da criação, conforme podemos ler na própria Sagrada Escritura: “Deus abençoou-os e disse-lhes: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’” (Gn 1,28).
A união matrimonial do homem e da mulher é indissolúvel: foi o próprio Deus que a estabeleceu: “Não separe, pois, o homem o que Deus uniu” (Mt 19,6). É seguindo a Cristo, na renúncia e nas provações que os esposos poderão compreender o sentido original do matrimônio e vivê-lo com a ajuda de Cristo. E o Apóstolo São Paulo exorta: “Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela, a fim de a santificar” (Ef 5,25-26): e acrescenta imediatamente: “É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja” (Ef 5,32).
E este é também o amor oferecido aos esposos no Sacramento do matrimónio. É o amor que alimenta o seu relacionamento, através de alegrias e dores, de momentos tranquilos e difíceis. É o amor que suscita o desejo de gerar filhos, de os esperar, acolher, criar e educar. É o próprio amor que, no Evangelho, Jesus manifesta às crianças: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham” (Mc 10, 14).
O vínculo matrimonial é, portanto, estabelecido pelo próprio Deus, de maneira que o matrimônio ratificado e consumado entre batizados não pode jamais ser dissolvido. Este vínculo, resultante do ato humano livre dos esposos e da consumação do matrimônio, é, a partir de então, uma realidade irrevogável. Pela sua própria natureza, o amor dos esposos exige a unidade e a indissolubilidade e são chamados a crescer sem cessar na sua comunhão, através da fidelidade quotidiana à promessa da mútua doação total que o matrimônio implica (cf. CIgC, n. 1644). Esta é uma consequência da doação de si mesmos que os esposos fazem um ao outro.
O matrimônio está ligado à fé e, nos tempos atuais, somos capazes de compreender toda a verdade desta afirmação, em contraste com a dolorosa realidade de muitos matrimônios que, infelizmente, acabam mal. Há uma clara correspondência entre a crise da fé e a crise do matrimônio. E, como a Igreja afirma e testemunha, o matrimônio é chamado a ser o sujeito da nova evangelização, testemunho da unidade querida por Deus em cada circunstância da vida, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença”, como prometeram no rito sacramental.
Possamos pedir a intercessão da Virgem Maria e do seu esposo São José pela estabilidade conjugal de todos os casais. E com eles, invocamos uma especial efusão do Espírito Santo, para que ilumine do alto todos os cônjuges, tornando fecunda a relação conjugal e, desta união, tendo como base o amor e o bem, possam no mundo, ser um testemunho eficaz da partilha, da unidade e da paz. Assim seja.
Anselmo Chagas de Paiva, OSB
Mosteiro de São Bento / RJ