Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB – XXIII Domingo do Tempo Comum – Ano B

A cura de um homem surdo e mudo

Mc 7,31-37

Caros irmãos e irmãs,

A liturgia da Palavra traz para este domingo o evangelho da cura de um homem surdo e mudo por parte de Jesus. Antes de fazermos uma análise mais detalhada do texto, podemos perceber que, geograficamente, Jesus se encontra “no meio do território da Decápole” (Mc 7,31). A palavra “decápole” significa “dez cidades”, nome dado ao território situado na Palestina oriental, estendendo-se desde Damasco até Filadélfia. As dez cidades que formavam esta liga eram helenísticas, portanto, não estavam sujeitas às leis judaicas, por esta razão, faziam parte de um território tido como pagão e seus habitantes eram considerados pelos judeus como excluídos dos caminhos da salvação. Foi neste ambiente que Jesus encontrou-se com um homem surdo e mudo. As pessoas que o trouxeram suplicaram a Jesus “que impusesse as mãos sobre ele” (v. 32). A descrição do Evangelista São Marcos, enriquecida com um número significativo de elementos simbólicos, é uma catequese sobre a missão de Jesus e sobre o papel que ele desenvolve no sentido de fazer do surdo e mudo um homem novo.

A linguagem é um meio privilegiado de comunicar, de estabelecer relação e o surdo é um homem que tem dificuldades em formar laços, em partilhar, em dialogar, em comunicar. No judaísmo as enfermidades físicas são tidas como consequência do pecado, por isto, o surdo é, de forma notória, visto como um impuro e um pecador. Além disso, não se pode esquecer que o homem surdo e mudo vive no território pagão da Decápole, o que indica ser ele provavelmente um desses pagãos que a teologia judaica considerava excluído da salvação. Mas este homem representa todos aqueles que vivem com os ouvidos fechados às propostas de Deus, incapazes de escutar a sua Palavra e de viver de forma coerente com os outros. Torna-se o símbolo do homem pagão que percorre um caminho novo rumo à fé. 

O encontro com Jesus vai transformar radicalmente a vida desse surdo. Jesus abre os seus ouvidos e solta a sua língua (v. 35), tornando-o capaz de comunicar, de escutar, de falar, de partilhar, de entrar em comunhão. Através deste episódio, o Evangelista São Marcos sublinha a missão de Jesus: Ele veio para abrir os ouvidos e os corações dos homens, quer à Palavra e às propostas de Deus, quer à relação e ao diálogo com os irmãos. Este texto evangélico nos faz lembrar o anúncio do Profeta Isaías feito na primeira leitura: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-vos. Então se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos…” (Is 35,4-5). Jesus é efetivamente o Deus que veio ao encontro de todos, a fim de libertar as pessoas dos preconceitos religiosos que impedem a relação, o diálogo e a comunhão fraterna. 

Pode-se perceber ainda, no texto, que a iniciativa de se encontrar com Jesus não é do surdo: “Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão” (v. 32). O texto não identifica os que conduzem a Jesus o surdo.  No entanto, há de supor que se trate de pessoas que acreditam no poder de Jesus, pois pedem que o Senhor imponha as mãos sobre ele.  Com isto, podemos afirmar ser também esse o nosso papel. Os que já descobriram Jesus, os que se deixaram transformar pela sua Palavra, os que já aceitaram segui-lo, devem dar testemunho dessa experiência e levar outros irmãos para o encontro com ele.

A primeira atitude de Jesus é levar aquele homem para longe da multidão (v. 33). Isto mostra que Jesus não quer fazer publicidade do milagre que está para ser realizado. A situação do homem surdo e mudo é humilhante, pois ele não compreende o que é dito, nem pode responder quando as pessoas lhe dirigem a palavra.  O seu mal está na sua surdez: ele é mudo porque é surdo. Vive instalado nessa vida sem relação, parece acomodado e não sente grande necessidade de abrir o coração para o encontro e para a comunhão com Deus e com os demais. É preciso que alguém o apresente a Jesus, que o leve para uma vida nova de amor e de comunhão.

Jesus age com discrição, levando o homem à parte, longe da multidão.  Jesus não busca o sucesso; ele quer apenas fazer o bem.  É silencioso e discreto. A sós com o surdo, Jesus realiza gestos significativos: coloca os dedos nos seus ouvidos, e com a sua saliva toca a língua daquele homem (v. 33). Tocar com os dedos significava transmitir poder (cf. Ex 8,15); a saliva transmitia, pensava-se naquele tempo, a própria força ou energia vital, o que equivalia ao sopro de Deus que transformou o barro inerte do primeiro homem em um ser dotado de vida divina (cf. Gn 2,7). Além disso, a propriedade terapêutica da saliva, sobretudo, cicatrizante, já era conhecida na antiguidade. Assim, Jesus transmitiu ao surdo a sua própria energia vital, dotando-o da capacidade de ser um homem novo, aberto à comunhão com Deus e à relação com os outros.  O gesto de Jesus de levantar os olhos ao céu (v. 34) deve ser entendido como um gesto de invocação a Deus. Para Jesus, os grandes momentos de decisão e de testemunho são sempre antecedidos de um diálogo com o Pai.

De acordo com o texto, Jesus teria pronunciado a palavra “efatá” (“abre-te”), quando abriu os ouvidos e desatou a língua do surdo. É a palavra que dá significado aos gestos de Jesus. O evangelista conservou a palavra aramaica original que Jesus então pronunciou, nos transferindo assim diretamente para aquele momento. O que ali foi narrado não pertence a um passado distante: Jesus realiza a mesma coisa de modo novo e repetidas vezes também hoje. No Batismo ele realizou sobre nós este gesto do tocar e disse: “Efatá!”, para nos tornar capazes de ouvir a voz de Deus e para nos dar de novo a possibilidade de falar com ele. Aquele surdo, graças à intervenção de Jesus, “abriu-se”. A cura para ele foi uma abertura aos outros e ao mundo, uma abertura que, partindo dos órgãos da audição e da fala, envolveu toda a sua pessoa e a sua vida: finalmente podia comunicar-se e, por conseguinte, relacionar-se de modo novo.

No ritual do batismo, já entre os gestos finais da celebração, o celebrante toca os ouvidos e os lábios do batizando, e diz estas palavras: “O Senhor Jesus, que fez os surdos ouvirem e os mudos falarem, te conceda que possas logo ouvir a sua palavra e professar a fé, para louvor e glória de Deus Pai”.  Antes de ser batizado o ser humano está surdo para a palavra de Deus e mudo para oração.  A fim de falar a linguagem sobrenatural e conseguir a salvação, precisa ser curado dessa surdez e dessa mudez.

O Batismo abre um caminho, nos introduz na comunhão com o próprio Jesus, mediante a fé. Jesus quer partilhar conosco o seu ver a Deus, o seu ouvir o Pai e o seu falar com Ele. O caminho do ser batizado deve tornar-se um processo de desenvolvimento progressivo, no qual nós crescemos na vida de comunhão com Deus, alcançando assim também um olhar diferente sobre o homem e sobre a criação.  É um convite à vida nova. É um convite ao surdo a sair do seu fechamento, do seu comodismo, para fazer da sua vida uma história de união com Deus e de partilha com os irmãos.

O Evangelho ainda nos convida a tomar consciência de que existe em nós uma deficiência em relação à nossa capacidade de percepção, uma carência que inicialmente não sentimos como tal; porque aparentemente tudo procede de modo normal, mesmo se já não temos ouvidos nem olhos para Deus e vivemos sem ele. Com a debilidade dos ouvidos ou até com a surdez em relação a Deus, perde-se naturalmente também a capacidade de falar com ele ou dele. 

O texto evangélico deste domingo também deve falar a cada um de nós.  Muitas vezes estamos fechados em nós mesmos e também para Deus; criamos dificuldades para abrir o nosso coração ao Criador.  Peçamos hoje ao Senhor que Ele pronuncie de novo o seu “Efatá!” sobre cada um de nós, que cure de novo a nossa debilidade dos ouvidos à sua palavra, nos faça enxergar nossas falhas e nossos erros e nos possibilite crescer na fé.  A ele dirigimos a nossa súplica para que possamos, com o nosso falar e o nosso agir, comunicar ao mundo a razão da nossa esperança (cf. 1Pd 3,15).  Assim seja. 

Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ

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