Esperando o Conclave

Amar a Igreja

Alguns dos frequentadores de «Presbíteros»conhecem o livro «Amor à Igreja», breve coletânea de homilias de São Josemaria Escrivá, que reúne três belas homilias sobre a Igreja e o sacerdócio católico. Nestes momentos em que o Povo de Deus, confiante na ação do Espírito Santo, reza e espera, em união de preces com Bento XVI, pela eleição de um novo Papa, creio que pode ajudar a nossa fé e a nossa esperança reler alguns trechos do comentário que há alguns anos escrevi sobre o livro «Amar a Igreja», de São Josemaria.

 «Amar a Igreja». Esta obra é um ato de fé e de amor. Mais exatamente, é um ato de fé amorosa, surgido no meio da dor.

Nele se reúnem duas homilias sobre a Igreja e uma sobre o sacerdócio, que foram pronunciadas por São Josemaria Escrivá em 1972 e 1973. Como é bem conhecido, os anos posteriores ao  Concílio Vaticano II viram surgir, ao lado de frutos esplêndidos de renovação, de santidade e de apostolado, uma onda crescente de interpretações errôneas e aplicações deturpadas do Concílio, que semearam deplorável confusão entre os fiéis católicos, e produziram defecções e crises dolorosas em amplos setores do clero e dos religiosos, e desorientação em incontáveis leigos.

Como alguém dizia, de modo expressivo, ao “autêntico posconcílio” parecia querer sobrepor-se, estrangulando-o, um “falso posconcílio”. De fato, naqueles anos 70, a Igreja, em todos os seus níveis, parecia varrida por um furacão de loucura anárquica, cujas sequelas ainda se deixam sentir hoje em muitos ambientes.

É por isso que o Papa Paulo VI, que encerrara  com tão felizes expectativas o Concílio em 8 de dezembro de 1965, se mostrava desolado. Lamentava, com angústia visível, o que chamava «falsa e abusiva interpretação do Concílio», que ele via como uma  verdadeira “ruptura” com a Igreja eterna, como uma tentativa  − dizia o Papa − de criação de uma «Igreja nova, quase reinventada de dentro da sua constituição, tanto no dogma, como na moral e no direito» (Alocuções, 1970). Em momentos de máxima preocupação, Paulo VI chegou a falar em «autodestruição da Igreja» e a declarar, perante milhares de fiéis, que «a fumaça de Satanás se tinha introduzido dentro da Igreja».

Palavras recentes de Bento XVI

Não falava por falar. Paulo VI não exagerava. Faz poucos dias, em 14 de fevereiro de 2013, o nosso querido Bento XVI dizia, no seu último encontro com o clero de Roma:

«[Durante a celebração do Concílio Vaticano II], havia o Concílio dos Padres – o verdadeiro Concílio – mas havia também o Concílio dos meios de comunicação, que era quase um Concílio aparte. E o mundo captou o Concílio através deles, através dos mass-media. Portanto o Concílio, que chegou de forma imediata e eficiente ao povo, foi o dos meios de comunicação, não o dos Padres. E enquanto o Concílio dos Padres se realizava no âmbito da fé, era um Concílio da fé que faz apelo à inteligência, que procura compreender-se e procura entender os sinais de Deus naquele momento, que procura responder ao desafio de Deus naquele momento e encontrar, na Palavra de Deus, a palavra para o presente e o futuro, enquanto todo o Concílio – como disse – se movia no âmbito da fé, como fides quaerens intellectum, o Concílio dos jornalistas, naturalmente, não se realizou no âmbito da fé, mas dentro das categorias dos meios de comunicação atuais, isto é, fora da fé, com uma hermenêutica diferente. Era uma hermenêutica política: para os mass-media, o Concílio era uma luta política, uma luta de poder entre diversas correntes da Igreja. Era óbvio que os meios de comunicação tomariam posição por aquela parte que se lhes apresentava mais condizente com o seu mundo […].

»Sabemos como este Concílio dos meios de comunicação era acessível a todos. Por isso, acabou por ser o predominante, o mais eficiente, tendo criado tantas calamidades, tantos problemas, realmente tanta miséria: seminários fechados, conventos fechados, liturgia banalizada…, enquanto o verdadeiro Concílio teve dificuldade em se concretizar, em ser levado à realidade; o Concílio virtual era mais forte que o Concílio real. Mas a força do Concílio era real, estava presente e, pouco a pouco, vai-se realizando cada vez mais e torna-se a verdadeira força, que constitui também a verdadeira reforma, a verdadeira renovação da Igreja. Parece-me que, passados cinquenta anos do Concílio, vemos como este Concílio virtual se desfaz em pedaços e desaparece, enquanto se afirma o verdadeiro Concílio com toda a sua força espiritual. E é nossa missão, precisamente neste Ano da Fé, começando deste Ano da Fé, trabalhar para que o verdadeiro Concílio, com a própria força do Espírito Santo, se torne realidade e seja realmente renovada a Igreja. Temos esperança de que o Senhor nos ajudará. Eu, retirado, com a minha oração estarei sempre convosco e, juntos, caminhemos com o Senhor, na certeza de que vence o Senhor!».

 A fé e o amor à Igreja de São Josemaria

Foi precisamente naqueles momentos de confusão evocados agora por Bento XVI, quando o desânimo ameaçava tomar conta de muitos, que São Josemaria, cheio de amor e esperança, se sentiu movido por Deus a lançar-se, até ao limite das suas energias, a um trabalho incansável de pregação, de catequese  – milhares de horas ante milhares de pessoas −, por numerosos  países de Europa e América, tornando-se pregoeiro alegre e esperançoso da doutrina católica, fazendo-se eco fiel dos ensinamentos do Santo Padre, e contagiando milhares de homens e mulheres com a sua fé vibrante e a sua fidelidade inquebrantável.

 «Dói-me a Igreja»- confidenciava o fundador do Opus Dei. Sim, doía-lhe, e muito −  como declarava −, ver que «o clamor da confusão se levanta por todos os lados, e com estrondo renascem todos os erros que houve ao longo dos séculos […]. Rejeita-se a doutrina dos mandamentos da Lei de Deus e da Igreja, tergiversa-se o conteúdo das bem-aventuranças dando-lhe um significado político-social, e quem se esforça por ser humilde, manso e limpo de coração é tratado como um ignorante ou atávico defensor de coisas passadas. Não se suporta o jugo da castidade e inventam-se mil maneiras de ludibriar os preceitos divinos de Cristo […]. Fabrica-se uma imagem da Igreja que não tem a menor relação com a que Cristo fundou» (Homilia O fim sobrenatural da Igreja).

Mas, por cima dessas nuvens de confusão, como já víamos, São Josemaria Escrivá, seguindo o que sempre fora um lema do seu trabalho sacerdotal − «afogar o mal na abundância de bem» − consumiu todas as suas forças, naqueles anos 70 (até a sua morte em 1975), num trabalho positivo, gozoso, cálido, de catequese: de aprofundamento nas verdades da fé católica tal como as ensinou e as ensina o Magistério da Igreja; e no tesouro divino dos Sacramentos, especialmente na Eucaristia e na Penitência; e na divina estrada dos Mandamentos, sinalizações de Deus para a conduta dos homens a caminho do Céu. Ao mesmo tempo, apontando alto, como fizera sempre desde que Deus lhe mostrou a sua missão de fundador, fazia erguer os corações de seus ouvintes para as mais elevadas metas da santidade e do apostolado no meio do mundo; e frisava com alegria que o Concílio Vaticano II acabava de proclamar solenemente, olhando especialmente para os leigos, a validade desses ideais, tão caros para ele.

 «A Igreja é Cristo presente entre nós»

Amar a Igreja. Impressiona ler, nessas três homilias, a clareza teológica, lúcida e incisiva, com que São Josemaria expõe a fé católica sobre o mistério da Igreja, fé que é o fundamento do amor sobrenatural à Esposa de Cristo.

Leiam-se, por exemplo, esses trechos da homilia Lealdade à Igreja: «A Igreja foi querida e fundada por Cristo, que cumpre assim a vontade do Pai; a Esposa do Filho está assistida pelo Espírito Santo. A Igreja é a obra da Santíssima Trindade; é Santa e Mãe, a nossa Santa Mãe Igreja […]».  Uma belíssima visão trinitária da Igreja, que incita a meditar.

Há, no ensinamento de Josemaria Escrivá, um forte eco da doutrina de São Paulo  − recordada pelo Concílio na Constituição Lumen Gentium (n. 7) − sobre a Igreja como “Corpo de Cristo”, cuja cabeça é Jesus glorificado, cujos membros são todos os batizados, e cuja “alma” é o Espírito Santo, que reparte a diversidade dos seus dons entre todos os fiéis. Vós sois o corpo de Cristo − escrevia São Paulo − e cada um, de sua parte, é um dos seus membros […]. Porque, como o corpo é um todo, tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo (cfr. I Cor 12, 4. 12. 27).

Essa fé permitia-lhe dizer, sem hesitações:  «A Igreja é nem mais nem menos Cristo presente entre nós, Deus que vem até a humanidade para salvá-la» (É Cristo que passa, n. 131). Encontramos aqui a mesma convicção singela que levava Santa Joana d’Arc a afirmar, em resposta a uma pergunta capciosa dos seus juízes: «Quanto à Jesus Cristo e à Igreja, parece-me que são uma só coisa e que não se deve fazer objeções a isso» (Actes du procès).

O divino e o humano na Igreja

Bem sabia Mons. Escrivá que, na Igreja, junto ao elemento divino há o elemento humano, com toda a sua carga de misérias. «A ninguém passa despercebida a evidência dessa parte humana − escreve −. A Igreja, neste mundo, está composta por homens e para homens. Ora, falar de homem é falar de liberdade, da possibilidade de grandezas e de coisas mesquinhas, de heroísmos e de claudicações». Mas é preciso considerar que, «mesmo no caso de as fraquezas superarem numericamente as valentias, ficaria ainda esta realidade mística − clara, inegável, embora não a percebamos com os sentidos −, que é o Corpo de Cristo, o próprio Nosso Senhor, a ação do Espírito Santo, a presença amorosa do Pai» (Homilia O fim sobrenatural da Igreja).

Tinha bem presente a magnífica afirmação que encabeça a Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja: «A Igreja é em Cristo como que sacramento, isto é, sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano» (Const. Lumen gentium, n. 1). Assim como nos sete Sacramentos o próprio Deus – Cristo, pelo Espírito Santo − age e santifica através de elementos materiais, como o pão e o vinho da Eucaristia, a água do batismo, o óleo da Confirmação…, de modo análogo, Deus age por meio do elemento humano, pecador e falível, da Igreja, e serve-se dele como instrumento vivo de Cristo.

A Igreja é a Mãe que nos gera, ensina, alimenta, acompanha, purifica e conduz até o Céu. À vezes, pode dar a impressão − pelos pecados dos seus membros − de ser como uma daquelas pobres mulheres corroídas pela lepra, que a Beata Teresa de Calcutá assistia ao darem à luz; e a Madre sorria ao ver que, daquele corpo desfeito, nascia uma criança sadia, pura, bela. A Igreja é Mãe que, em seus membros, ao lado de exemplos heroicos de santidade, ostenta às vezes a “lepra” do pecado, da fraqueza humana, do escândalo; mas é a Mãe que Deus nos deu, e a doutrina e a vida que nos transmite são e serão sempre puras, belas, divinas. Temos, pois, toda a razão para exclamar, com o poeta Paul Claudel, «Seja louvada para sempre esta grande Mãe majestosa, sobre cujos joelhos eu tenho aprendido tudo».

Uma gratidão como essa levava São Josemaria a escrever: «O mistério da santidade da Igreja…, exclui todo e qualquer pensamento de suspeita ou de dúvida sobre a beleza da nossa Mãe […]. A nossa Mãe é Santa, porque nasceu pura e continuará sem mácula por toda a eternidade. Se, por  vezes, não soubermos descobrir o seu rosto formoso, limpemos nós os olhos;  se notamos que a sua voz não nos agrada, tiremos dos nossos ouvidos a dureza que nos impede ouvir, no seu tom, os assobios do Pastor amoroso […]. Tu és santa, Igreja, minha Mãe, porque foste fundada pelo Filho de Deus, Santo; és santa porque assim o dispôs o Pai, fonte de toda a santidade; és santa porque te assiste o Espírito Santo»  (Homilia Lealdade à Igreja).

Ao amor à Igreja, São Josemaria unia inseparavelmente na sua incansável pregação o amor a todas as verdades da fé católica – que não mudam nem murcham –, aos sete Sacramentos, tão combatidos  naquela época que foi uma verdadeira «noite de sonos e traições» (noite que, em parte, perdura ainda), o amor ao sacerdócio, ao qual dedica uma homilia empolgante (Sacerdote para a eternidade) e o amor ao Papa, pelo qual oferecia diariamente a sua vida, «e mil vidas que tivesse». E, em todos os temas, a doutrina de São Josemaria está impregnada, como pelas águas de uma fonte límpida, pela palavra da Sagrada Escritura, pelo Magistério pontifício e conciliar,  e pelos ensinamentos perenemente válidos dos Santos Padres.

«Eu amo a Igreja com toda a minha alma − confidenciava São Josemaria, no período final de sua vida −; e tenho queimado a minha juventude, a minha maturidade e a minha velhice para servi-la. Não o digo com pena, pois tornaria a fazê-lo se vivesse mil vezes» (Andrés Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. III, Quadrante, São Paulo 2004, pág. 548).

A catequese de São Josemaria Escrivá sobre a Igreja, sobre a sua doutrina, sobre os seus Sacramentos, sobre a entrega inefável de Cristo em seu máximo ato de amor – o Sacrifício da Cruz − em cada Missa que se celebra, sobre a grandeza e santidade do sacerdócio…, naqueles momentos críticos dos anos 70, levantou ânimos decaídos, acendeu fervores apagados, dissipou  dúvidas dolorosas, extinguiu críticas estéreis, incentivou ideais de entrega total e de serviço a Deus e à Igreja, inflamou no amor que procede da autêntica fé católica inúmeros corações, conduzindo-os a uma segurança, a uma alegria e a uma esperança que lhes haviam sido toldadas. Queira Deus, decorridos cinquenta anos após o Concílio, suscitar hoje esses mesmos frutos benéficos em muitos corações.

Pe. Francisco Faus

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