EPÍSTOLA (1 Tm 2, 1-8)
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Paulo pede que se façam orações em favor de todos os homens, especialmente pelos que têm autoridade, porque deles dependem a paz e o bem-estar de todos. A razão é que Deus deseja a salvação de todos, pois nos deu um único mediador, Jesus Cristo, o qual se entregou em resgate por todos nós. Esta é uma verdade que Paulo prega como essência de seu ministério apostólico. E Paulo dá uma dica de como devemos orar nas assembleias dos fiéis.
ORAÇÃO DO CRISTÃO: Rogo, pois, principalmente que todos façam súplicas, orações, intercessões, ações-de-graças em favor de todos os homens (1). Obsecro igitur primo omnium fieri obsecrationes orationes postulationes gratiarum actiones pro omnibus hominibus. A carta é uma série de recomendações sobre diversos assuntos e o primeiro é de como se deve orar durante a liturgia comum nas assembleias cristãs. Em primeiro lugar, Paulo declara que as orações não devem excluir nenhum homem, formando parte principal das reuniões dos fiéis. Estas orações têm como natureza a SÚPLICA [deësis<1162>=obsecratio] cujo significado é a necessidade, especialmente do mendigo; e daí a súplica própria de quem pede para subsistir. Uma amostra é o Pai Nosso no início da segunda parte. ORAÇÃO [proseuchë<4335>=oratio ou precatio] é propriamente a petição formal [res sacra] dirigida a Deus em termos gerais, que para um caso particular, usaríamos deësis [petitio]. INTERCESSÃO [enteuxesis<1783>=postulatio], intercessão, petição feita por outros. EUCARISTIA [eucharistia<2169>=gratiarum actio] que não aparece em textos hebraicos e só em gregos como 2 Mc 2, 27 e Eclo 37, 11; pois no lugar de ação-de-graças, os judeus usavam o louvor como em Lv 22, 29, com a palavra todah<08426>= confissão, louvor; e daí o sacrifício de louvor, que a Vulgata traduz por gratiarum actio. É a primeira parte do Pai Nosso. Paulo deseja que estas súplicas e intercessões sejam feitas por toda classe de homens, sem distinção. Mas, no meio delas, escolhe as mais necessárias para uma vida sossegada, como vemos no versículo seguinte.
OBJETO DA ORAÇÃO: Pelos reis e por todos os que têm superioridade, para que tranquila e sossegada vida vivamos em toda piedade e dignidade (2). Pro regibus et omnibus qui in sublimitate sunt ut quietam et tranquillam vitam agamus in omni pietate et castitate. SUPERIORIDADE [en yperoche<5247>=in sublimitate] a palavra significa elevação, portanto, será em preeminência, em excelência ou superioridade. Dentre eles, Paulo destaca os REIS. Em Éfeso propriamente, era o imperador de Roma, o único que podia ter o título de Basileus. Os governadores das províncias recebiam o título de Hegemonos; mas Paulo sabia que todos eles eram necessários para a paz entre os cidadãos e que um território sem governo era um inferno; melhor seria ter um tirano que viver num território acrático. Exemplos atuais: Somália e o Afeganistão. Ainda não estourou a primeira perseguição de Nero e a vida dos cristãos era livre dentro dos limites do Império. Unicamente os judeus se tinham oposto à difusão do evangelho. PIEDADE [eusebeia<2150>=pietas] cujo significado é reverência, respeito; e se o considerarmos em relação a Deus, podemos falar de piedade ou religiosidade. Ou seja, do espírito de reverência devido à presença da divindade. DIGNIDADE [semnotës<4587>=castitas] é a qualidade de uma pessoa que a torna distinguida, respeitável, digna, grave e majestosa, honrada e proba, ou de respeito, como em 1Tm 3,4: criando os filhos sob disciplina com todo respeito. É somente usada essa expressão por Paulo três vezes em duas epístolas as de Timóteo e Tito. De fato, devido ao seu sincretismo em que os romanos admitiam os deuses locais, não como vencidos, mas como associados, o cristianismo encontrou facilidades que se tornaram inimizade entre os judeus.
AGRADÁVEL ORAÇÃO: Porque isto é bom e aceitável diante de nosso salvador, Deus (3). Hoc enim bonum est et acceptum coram salutari nostro Deo. Dois ensinamentos aparecem claros neste versículo: que bom e agradável é a reza pelos dirigentes políticos; pois o fim é a paz social e a liberdade de culto dela ou com ela relacionada. E finalmente, que Deus é o Salvador. Dele, pois, dependemos e a Ele devemos dirigir nossas súplicas.
UNIVERSALIDADE DA SALVAÇÃO: O qual deseja que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade (4). Qui omnes homines vult salvos fieri et ad agnitionem veritatis venire. DESEJA [thelei <2309>=vult] é o verbo que denota vontade, propósito, determinação de fazer com amor e prazer uma coisa ou ação específica. SALVEM [sözö <4982> salvare] do infinitivo passivo que pode ser traduzido por um reflexivo como é no caso; ou melhor, pelo passivo: sejam salvos, cujo ativo é Deus que fará todo o possível para salvá-los. Essa salvação implica a libertação da condena no dia do julgamento final messiânico e dos perigos e obstáculos que obstruíam a recepção da fé em Cristo. É coisa muito diferente dessa libertação sócio/política que os modernos cristãos pró-socialismo têm pretendido na América do Sul, por exemplo. CONHECIMENTO [epignösis<1922>=agnitionem] o grego epignösis [de epi e gnösis] indica um supra conhecimento como tradução literal; ou seja, um conhecimento perfeito. É a palavra usada por Paulo 15 vezes nas suas epístolas e sempre sobre a matéria de coisas éticas ou referentes à divindade. VERDADE [alëtheia<225>veritas]. Objetivamente é a verdade, ou seja, a conformidade da mente e da palavra com os fatos e coisas que existem. Tratando-se de Deus, e do ponto de vista da revelação, é o conjunto das verdades que as escrituras contêm, opostas às interpretações errôneas como são as dos judeus ou heréticas dos cristãos que eram considerados falsos mestres. Subjetivamente, era a virtude contrária à simulação, engano, falsidade e também podemos falar de fidelidade aos princípios e valores conhecidos. Neste caso, se trata de conhecer a verdade fundamental, ou seja, Deus como Salvador por meio de Cristo como nosso mediador, ao qual acedemos pela fé e a entrega amorosa, obrigada pela gratitude de reconhecê-lo como sacrificado por nossa salvação. Verdade que explicará, sucintamente, Paulo nos versículos seguintes 5 e 6.
CRISTO ÚNICO: Um, pois, Deus; um também mediador entre Deus e homens, o homem Cristo Jesus (5). Unus enim Deus unus et mediator Dei et homo Christus Iesus. Entre as verdades necessárias para a salvação, Paulo cita as duas necessárias e fundamentais: Um só Deus, coincidente na época com a fé judaica; mas também o acesso ao mesmo é único, que Paulo cita como sendo o homem Cristo Jesus. MEDIADOR [mesitës<3316>=mediator] derivado do adjetivo mesos <3319>=meio, entre: é a pessoa que intervém entre duas outras para restaurar a paz e amizade entre elas, ou estabelecer pacto ou convênio entre as mesmas. Paulo usa a palavra com o significado de árbitro e intercessor, três vezes (Gl 3, 19. 20 e esta de 1Tm 2,5), explicando que a proclamação da Torah não foi uma intercessão de anjos, que não foram mediadores, pois o mediador foi Moisés que a transmitiu como sendo a voz de Deus. Mas o novo pacto teve como mediador um outro homem: o Ungido [Messias] Jesus. A noção de mediador, neste caso, está melhor explicada em Hebreus 9, 15 e 12, 24, em que o sangue de Cristo, morto como vítima, foi a aspersão do novo pacto. E temos: Por isso… Considerai atentamente o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão, Jesus (Hb 3, 1). O sacerdote era o mediador escolhido que através do sacrifício tornava a divindade propícia e disposta a perdoar os pecados do povo. E Jesus, como afirma a carta dos hebreus, é o único e verdadeiro sacerdote da nova Lei. Convinha que em todas as coisas [Cristo] se tornasse semelhante aos irmãos para ser misericordioso e fiel, sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo (Hb 2, 17). Neste versículo, vemos como a humanidade de Cristo, o homem Jesus, foi o elemento fundamental para o seu sacerdócio: para que em todas as coisas se tornasse semelhante aos irmãos, dirá o texto aos hebreus. Terminemos finalmente com Hb 4, 14: tendo Jesus, o Filho de Deus, como sumo sacerdote que penetrou os céus, e fez o que no AT era próprio do Yom Kippur, entrar no Santo dos Santos a morada e Deus com seu povo, num ato de propiciação, oferecendo o sangue da vítima. Cristo, entrou no mais alto dos céus (o novo santo dos santos do novo tabernáculo) oferecendo seu próprio sangue (Hb 9, 12), uma única vez, para sempre, quando se ofereceu a si mesmo (Hb 7, 27). E é único, pois os antigos sacerdotes eram muitos porque a morte lhes impedia permanecer em sua função. E Cristo vive no mais alto dos céus o verdadeiro trono divino, para sempre, em perpétua função de seu sacerdócio eterno, como diz Hb 7, 21: feito sacerdote com juramento por aquele que lhe disse: O Senhor o jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre.
MINISTÉRIO ATUAL: O qual se deu a si mesmo redenção para todos, o testemunho em circunstâncias oportunas (6). Qui dedit redemptionem semet ipsum pro omnibus testimonium temporibus suis. E Paulo, na continuação, descreve qual é atualmente o ministério de Jesus, sacerdote, que foi outrora pagamento por alforria de escravos e agora testemunho do mesmo para evitar a ira divina pelos pecados atualmente feitos. REDENÇÃO [antilytron <487>=redemptio] constitui um dos dogmas centrais do cristianismo: Cristo redentor, pois com sua morte salvou a humanidade da morte e da escravidão do pecado, pagando com o preço de seu sangue, o resgate destinado a satisfazer a justiça divina. De modo que a morte de Cristo foi o sangue derramado para remissão dos pecados (Mt 26, 27). Da fórmula honor est in honorante, injuria in injuriato, é prova de que o pecado chamado mortal, em certo modo, tem uma malícia infinita devido ao objeto pessoal do mesmo que é o próprio Deus, que é desprezado e subvalorizado pela opção desordenada do pecador. Logo, somente uma pessoa com valor infinito é capaz de elaborar completa reparação. Não poderia ser um anjo, mas um homem com valor infinito, como diz Paulo: o Homem Cristo Jesus (Vers. 5), porque em Hb 2, 11 se afirma que quem santifica e os que são santificados são todos um. Assim só um homem que fosse ao mesmo tempo Deus, podia ser o verdadeiro Redentor. O modo da redenção é declarado no credo: desceu dos céus [era Deus] se encarnou [feito homem], padeceu [imolação] e foi sepultado [morte sacrifical]. Foi uma operação teândrica [de theos, divina e de andros, humana], pois sem a participação do homem não haveria satisfação, e sem a dignidade do Deus não seria suficiente. As duas passagens de Isaías: Traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele e pelas suas pisaduras fomos sarados (53, 5) e o meu servo, o Justo justificará a muitos porque as iniquidades deles levará sobre si (53,11), claramente o indicaram no AT; e no NT lemos que não veio a ser servido [como Senhor] mas para servir [como escravo] e dar sua vida em redenção por muitos [lytron anti pollön] (Mt 20, 28); coisa que Paulo ratifica como fé da primitiva igreja: Justificados gratuitamente [döreran] por sua graça [të autou chariti] mediante a redenção [dia tës apolytröseös] que há em Jesus Cristo (Rm 3, 24). S Anselmo refletindo em Deus homo pode ser considerado como o autor que fez a primeira apresentação sistemática desta doutrina que é chamada realista da redenção. A idealista, inicialmente proposta por Abelardo Socino (1562) é a restauração da vida humana a uma vida imortal divinizada, preferível a considerar a redenção como expiação dos pecados através da morte de Cristo. Mas sempre a realista predominou dentro da tradição da Igreja e inclusive entre os reformadores, de modo que a satisfação vicária é a seguida pelo catecismo da Igreja, contra a Escola Racionalista que vê um espírito de vingança, indigno de Deus, na redenção tradicional. Mas confundem pecado de vingança com virtude de justiça. A voluntariedade do oferecimento de Cristo satisfaz a justiça e tira toda vingança como motivo da Redenção, colocando esta dentro da virtude do amor e da gratuidade, como diz Paulo: me amou e se entregou por mim (Gl 2, 20). O qual pode ser dito de todo fiel cristão. Modernamente há uma redução da redenção, segundo a Teoria da Libertação, a luta entre oprimidos e opressores, reduzindo a paixão e sofrimentos de Cristo a um exemplo e paradigma em favor da justiça social a ser alcançada pela luta de classes dos injustamente tratados pelos que têm o poder e o dinheiro.
PAULO ARAUTO E MESTRE: Para o que fui, eu fui posto anunciador e apóstolo, digo a verdade em Cristo e não minto, mestre das gentes em fé e verdade (7). In quo positus sum ego praedicator et apostolus veritatem dico non mentior doctor gentium in fide et veritate. ANUNCIADOR [kërix<2783>=praedicator] O Kërix era o arauto, mensageiro ou precursor, no sentido de anunciar a vinda ou as mensagens oficiais de reis, magistrados príncipes e comandantes militares. Aqui Paulo, como os arautos das autoridades civis e militares, diz possuir pública autoridade que o constitui o anunciador primeiro e oficial e ao mesmo tempo apóstolo, e MESTRE [didaskalos <1320> =doctor] dos gentios. Isto último ele afirma com um juramento em que põe como testemunha de sua verdade, Cristo, dando a este o lugar que no AT correspondia a Jahveh. Com este final, Paulo retifica todo o dito anteriormente como verdade fundada naquele que a si mesmo se disse ser a Verdade (Jo 14, 6). E não esquece a parte humana de seu trabalho ou ministério: a fidelidade [en pistei<4102>=in fide], acepção primitiva de pistis ou fides e que Paulo considera também em Gl 5, 22 como fruto do Espírito [tradução de RA]. Uma outra interpretação seria ver a fé como a palavra que prega Paulo junto com a verdade (vide Rm 10, 8 e Gl 3,2).
OS HOMENS: Quero, pois, que os varões orem em todo lugar levantando santas mãos fora de ira e disputa (8). Volo ergo viros orare in omni loco levantes puras manus sine ira et disceptatione. Neste parágrafo, Paulo fala só de homens no sentido sexual de VARÕES. Possivelmente a oração é pública dentro da assembleia, como ele recomenda em 1 Cor 14, 24 que as mulheres calem, pois não lhes é permitido falar, devem estar submetidas aos seus maridos, segundo o que lemos em Gn 3, 16: teu desejo te arrastará a teu marido que te dominará. Paulo, que afirma a Lei [o Pentateuco] como sendo inútil para a salvação, não obstante, dela toma a palavra de Deus como ainda válida na nova Lei. O versículo diz respeito ao oráculo de Malaquias: desde o nascente do sol até o poente é grande entre as nações o meu nome e em todo lugar lhe é queimado incenso e trazidas ofertas (1, 11) e a palavra de Jesus: vem a hora quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai… em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade (Jo 4, 21-23). Contrariamente ao que os judeus afirmavam: As portas do céu só se abrem na terra de Israel. As preces sem terra [israelita] não têm como subir ao Senhor, mas se os israelitas as enviam de terra não pertencente a Jerusalém, unicamente quando chegam a Jerusalém são enviadas ao santuário e daí ascendem ao céu (Shaare Ors). E tem muitas normas para as preces particulares de modo que não devem ser dirigidas de lugares sujos ou fedorentos (Maimônides). LEVANTANDO AS MÃOS, seguindo o exemplo de Abraão que respondeu ao rei de Sodoma: Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra (Gn 14, 22). Este gesto era também comum entre os gentios. Os judeus só podiam levantar as mãos em oração, embora pudessem orar sem levantar as mãos. Jesus orava levantando os olhos ao céu, como vemos em Mt 14, 29. As mãos deviam ser puras e sem nenhum crime ou pecado. Dirá Isaías: Quando estendeis as mãos escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade dos meus olhos; cessai de fazer o mal (Is 1, 15-16). O costume, além das mãos estarem em conformidade com o coração, é que deviam estar limpas, de modo que os judeus as lavavam antes de orar, e como sempre, o ato externo de lavar era mais importante que o interno de purificar o coração. Segundo Maimônides, antes de orar as mãos devem ser lavadas até o cotovelo com água e se não existir água, dentro de uma área de 4 milhas, deve o orante esfregar as mãos. E antes da oração da manhã, não só as mãos, mas a cara e os pés devem ser lavados e só então devem ser recitadas as preces. Paulo não se importa com a limpeza externa, mas com a purificação interior: sem IRA NEM DISPUTA [chöris orgës <3709> kai dialogismou<1261>=sine ira et disceptatione]. IRA: Orgë é ira, cólera, raiva. Paulo está na linha de Jesus, o Mestre, que manda: se ao trouxeres ao altar a tua oferta te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferenda; vai primeiro reconciliar-te com teu irmão (Mt 5, 23-24). E que em termos familiares, Pedro afirma pedindo aos maridos que tenham consideração para com as mulheres como parte mais frágil, tratando-as com dignidade, porque sois juntamente herdeiros da mesma graça de vida, para que não se interrompam as vossas orações (1Pd 3, 7). DISPUTA: Dialogismos: raciocínio, deliberação, questionamento; ou hesitação, dúvida; ou disputa e controvérsia. Pela primeira palavra ira devemos ter um significado correspondente. De Maimônides, o grande comentarista de ritos e leis judaicas, temos esta nota esclarecedora: Os homens não devem orar de pé, nem com riso, nem de modo leviano, conversas, contenções ou ira: mas com as palavras da lei. E rabi Chanina: Num dia de ira um homem não deve rezar. Tudo isto está claro na grande oração de Jesus, o Pai Nosso: Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os nossos ofensores (Mt 6,12), que também Lucas repete em 11, 4. O perdão do inimigo é uma condição necessária para que a oração tenha a eficácia que Jesus prometeu: Pedi e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á (Mt 7, 7).
Evangelho (Lc 16, 1-13)
O ADMINISTRADOR INCOMPETENTE [Negligente]
INTRODUÇÃO: Dizia também a seus discípulos: Certo homem era rico, o qual tinha um administrador e este lhe foi denunciado como defraudando os seus bens (1). Dicebat autem et ad discipulos suos homo quidam erat dives qui habebat vilicum et hic diffamatus est apud illum quasi dissipasset bona ipsius. ADMINISTRADOR [oikonomon <3623>=vilicum] é o mordomo ou despenseiro de casa, também tesoureiro, que em geral era um liberto ou escravo, a quem o dono da casa entregava a gerência da casa, os recibos e gastos, junto com a direção dos empregados e até dos filhos ainda pequenos. A terra era nos tempos de Jesus a base da riqueza de modo que os soldados romanos recebiam como prêmio após sua aposentadoria (25 anos) terras para cultivar. Ou recebiam 12 anos de paga como compensação. A mão-de-obra era barata, constituída pelos escravos de guerra; e a maioria dos novos amos, que nada ou pouco sabiam de agricultura, deixavam suas propriedades nas mãos de administradores. Como exemplo, temos, nos tempos do Imperador Trajano, após as guerras da Dácia [Romênia ocidental], que teve em suas mãos 500 mil escravos que podiam servir nos novos assentamentos dos soldados e somas consideráveis de ouro e prata. Para comemorar a conquista mandou esculpir a coluna trajana com 200m de esculturas nas quais ele mesmo saia 70 vezes. Por essa vitória, o Imperador recebeu o nome de Dácio e os romanos tiveram 123 dias de espetáculos no anfiteatro. A palavra oikonomos significa um administrador-superintendente de modo que todos os problemas da casa e dos bens estivessem dirigidos a uma economia tanto de mercado como de supervisão de comidas e criados dentro da casa. Geralmente os administradores eram escravos de confiança ou libertos, já que um romano considerava o ofício indigno de um cidadão do império. Esperava-se dos administradores um bom rendimento dos bens a eles confiados. O pago dado ao administrador era um tanto por cento dos bens envolvidos nos negócios. Como não era permitida a usura existia um método para burlar a lei e os fiscais. O produto vendido era quantificado com um valor superior ao real. Exatamente como hoje se acostuma fazer com os orçamentos públicos para engordar os funcionários desonestos. DEFRAUDANDO [diaskorpizo <1287>=dissipare] A tradução do verbo diaskorpizo é espalhar ou dispersar; portanto o administrador não é um ladrão, que se aproveita para se enriquecer, ou seja, infiel, mas um irresponsável ou negligente em suas funções de modo que o lucro que esperava o dono não foi obtido. Lembra a parábola dos talentos em Mateus (25, 15) ou das minas em Lucas (19, 13). Traduzir por infiel predispõe a uma interpretação errônea da parábola. Mais: temos que estudar os costumes da época para saber quem eram os administradores e qual o seu ofício e então entendermos melhor o sentido da parábola, e portanto, a conclusão da mesma, que é o importante em todo exemplo bíblico.
AS CONTAS: E tendo-o chamado, lhe disse: Que (é) isto que ouço de ti? Presta contas de tua administração. Pois não poderás administrar mais (2). Et vocavit illum et ait illi quid hoc audio de te redde rationem vilicationis tuae iam enim non poteris vilicare. A competência em nosso caso era deficiente. O dono não estava contente e decidiu substituí-lo. Temos o exemplo de S. Calisto, Papa, que foi um escravo a quem seu dono Carpóforo, alto funcionário do palácio imperial, colocou à frente de uma banca. Calisto perdeu o dinheiro do amo e o que os cristãos lhe confiaram. Foge; mas, encontrado, é encerrado no xadrez de onde seu amo o tira reconhecendo a probidade do escravo. Calisto recobra os bens que os judeus, enganando-o, tinham maldosamente se apropriado. Os judeus se vingam denunciando-o como cristão e o Imperador Cômodo o manda para as minas da Cerdanha. Daí saiu por um edito de liberdade que Márcia, a favorita do imperador, conseguiu. De volta a Roma foi para Anzio para evitar a vingança dos judeus. O Papa Zeferino em 198 o torna seu secretário, conselheiro e administrador dos bens da Igreja, que defendeu através do artifício das catacumbas [daí a de S. Calisto], pois o novo imperador Septímio Severo reconhecia as funerárias como corporações legítimas, independentemente de sua religião. Calisto foi considerado como um gênio administrador e organizador. Precisamente por ser um ex-escravo, os fiéis o escolheram como Papa em lugar de Hipólito, escritor e grande de Roma, pelo qual este último se rebelou, formando um partido cismático. Hipólito é por isso considerado o primeiro anti-papa. Ambos se distanciaram na doutrina em que o rigorismo de Hipólito não perdoava os apóstatas, os adúlteros e os homicidas, e Calisto se inclinava por perdoar o pecado, mas impor uma severa penitência. Calisto assim como Hipólito, terminaram suas vidas como mártires. Calisto foi deposto e lançado ao poço da casa.
A DECISÃO: Então disse para si o administrador: Que farei, porque o meu dono me tira a administração? Não posso cavar. Envergonho de mendigar (3). Ait autem vilicus intra se quid faciam quia dominus meus aufert a me vilicationem fodere non valeo mendicare erubesco. O administrador demitido pensou nas duas coisas que na época existiam como meio de sobreviver: um emprego no campo como simples camponês ou recorrer à esmola como faziam muitos cidadãos em Roma. Desde a República existia a annona ou distribuição de trigo aos necessitados. Era uma prática considerada como dever do Estado que não só protegia os setores mais desfavorecidos economicamente, mas também prevenia as revoltas sociais. Os ediles realizavam o aprovisionamento e até se encarregavam de importar o trigo suficiente para a distribuição que era vigiada pelos curatores frumenti de modo a corrigir os abusos. A instituição se conservou até o final do império Romano. Não sabemos se existia alguma coisa parecida na Palestina, mas parece que houve situações em que o governo distribuiu alimentos em tempo de fome, pois Herodes o Grande até vendeu seus talheres de prata para comprar trigo. O Nosso administrador ao ser revogado de seu ofício se transformava em pedinte comum.
O ARDILOSO COMPORTAMENTO: Conheço que farei para que quando for removido me recebam em suas casas (4). Scio quid faciam ut cum amotus fuero a vilicatione recipiant me in domos suas. E tendo chamado cada um dos devedores do seu dono, disse ao primeiro: quanto deves ao meu amo? (5). Convocatis itaque singulis debitoribus domini sui dicebat primo quantum debes domino meo. Mas ele bolou um plano inteligente: tornar-se-ia cliente de seus ricos devedores. Os clientes eram as pessoas que após a salutatio de manhã recebiam o pão e a cebola para o dia ou uma cesta de comida no lugar do mesmo. Ou talvez pretendesse o cargo de administrador dos novos amigos assim ganhos à sua causa. Para isso mandou vir os que eram devedores do seu dono e da dívida retirou suas ganâncias que ele já não podia receber por ter perdido o emprego. O salário era próprio dos trabalhadores manuais. Este não era o caso dos administradores; mas existia uma retribuição que compensava as horas dedicadas. Um exemplo era o que sucedia com os professores ou pedagogos. Sem salário fixo, eles recebiam uma compensação porque poderiam ter trabalhado em outros menestréis e receber um salário apropriado. Eram as perdas que eram pagas e não o trabalho. O modo de proceder do administrador não era pois, um roubo, mas um estratagema bem bolado. Por isso podia ser admirado pelo seu senhor sem que pudesse ser acusado de ladrão.
UMA IDEIA RADIANTE: Ele então disse: cem bats de azeite. E disse-lhe: toma a tua conta e sentado, logo escreve cinquenta (6). At ille dixit centum cados olei dixitque illi accipe cautionem tuam et sede cito scribe quinquaginta. Depois a um outro disse: Tu pois, quanto deves? Ele então disse: Cem coros de trigo. E diz-lhe: toma a tua conta e escreve oitenta (7). Deinde alio dixit tu vero quantum debes qui ait centum choros tritici ait illi accipe litteras tuas et scribe octoginta. AS QUANTIDADES PERDOADAS: Parece que perdoa mais ao que deve 100 bats de azeite, aproximadamente 4 mil litros; pois o bat era uma medida de capacidade de líquidos que equivalia a 40 litros, igual a metreta latina. A medida de sólidos era o coro equivalente a 400 l de modo que os cem coros de dívida equivaliam a 40 mil litros. O perdão do azeite era de 200 l e o de trigo de 800 l, quatro vezes mais em quantidade; mas considerando que os preços eram diferentes, temos que os 800 l de trigo equivaliam aos 200 l de azeite. Era provavelmente o dinheiro correspondente ao que o administrador deveria ganhar. Por isso o comentário do dono é só de louvor ante a perspicácia do seu antigo empregado, sem taxá-lo de ladrão. Aliás, a palavra latro latina era como se designava os soldados de suas legiões, que pelos saques e tropelias por eles cometidos, teve depois um significado restrito aos que se apropriavam dos bens alheios.
O LOUVOR DO DONO: E louvou o dono o administrador da iniquidade porque fez sensamente; já que os filhos deste tempo (são) mais sensatos que os filhos da luz, em sua geração (8). Et laudavit dominus vilicum iniquitatis quia prudenter fecisset quia filii huius saeculi prudentiores filiis lucis in generatione sua sunt. O antigo empregador comentou elogiosamente a conduta que apontou como prudente [fronimos], sensata, judiciosa ou sábia, por previdente. CONCLUSÃO 1ª): OS FILHOS DESTE SÉCULO [aion <165> =saeculi]] são mais sábios que os filhos da luz em sua geração. A palavra aion designa tempo, duração, vida, século, idade, geração. As diversas traduções como a latina dizem: os filhos deste século são mais prudentes que os filhos da luz nesta geração. A tradução da bíblia de Jerusalém: os filhos deste século são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz. A espanhola: Os filhos do mundo são mais sagazes em suas relações que os filhos da luz. Que se entende por filhos deste século, ou mundo? A frase filhos deste século [aion] sai duas vezes em Lucas. Uma aqui e outra em Lc 20, 34. Segundo Lc 18, 30 o século [aion] é oposto ao tempo presente [kairós]. Podemos afirmar que aion significa uma etapa, uma era. Os filhos desta etapa são os que mais tarde são descritos como os que escolheram a maimona (13). Os outros são os filhos da luz, que têm uma conotação parecida com os que descrevem os essênios como opostos aos filhos das trevas. A frase sobre a luz como unida a Cristo, sai em Jo 8, 12 quando Jesus afirma que ele é a luz e quem o segue não andará nas trevas, pelo contrário terá a luz da vida. Paulo fará uma distinção entre o homem psychikós [natural] e o homem pneumatikós [espiritual] que é a mesma distinção que Lucas faz neste evangelho. Vemos nesse trecho como o administrador prepara seu futuro, fazendo amigos de modo a ter uma aposentadoria por assim dizer garantida. Como prepara seu futuro o seguidor de Cristo? A isso dá resposta a segunda conclusão.
OS AMIGOS: Pois eu vos digo: Fazei para vós amigos da mamona da iniquidade para quando falharem vos recebam nas tendas eternas (9). Et ego vobis dico facite vobis amicos de mamona iniquitatis ut cum defeceritis recipiant vos in aeterna tabernacula. CONCLUSÃO 2a): FAZER AMIGOS: Do modo que o administrador fez amigos para um futuro tranquilo, devem também os filhos da luz, seguidores de Cristo, fazer amigos para que seu futuro seja o mais seguro e ditoso possível. Devem procurar fazer amigos da riqueza [Mamona] da iniquidade [tes adikias]. A palavra mamona não é grega, mas sua origem é semita. É usada no grego em singular e aparentemente indeclinável. A vulgata não traduz a palavra, a usa também em singular e a declina como da 1a declinação. As traduções das diversas línguas traduzem por riquezas em plural ou dinheiro em singular. A mais fiel é a inglesa que conserva o mammon. É uma palavra de origem aramaica mamon ou mamona. Seu significado primitivo seria objeto ou pessoa em que se pode confiar. Daí que Lucas diga confiar [pistoi] em objeto [de adikia = injusto de confiança] (11). Em Eclo 42, 9 significa riqueza. E no Targum se traduz por fazenda, ganância. S. Agostinho dirá que também era usado em fenício como o dinheiro de resgate de um escravo. O apelativo de iníquo é devido ao influxo contrário com que disputa o coração do homem para afastá-lo de Deus. Em Coelet 5, 8 lemos: A riqueza [traduzido por abundância] da terra pertence a todos. Marcos vê nas riquezas uma sedução, um engano quase impossível de se evitar (4, 18). O Coelet diz em 27, 2 Muitos pecam por amor ao lucro. Aquele que procura enriquecer-se se mostra implacável. A expressão riquezas injustas é de Sirac 5, 8: Não confies nas riquezas injustas, porque não te servirão para nada no dia da desgraça. O grego dos setenta diz epi chremasin adikois. Pois a palavra chremata, em plural, indicava riquezas. Daí provém a palavra castelhana crematística que pode ser traduzida ao português por pecuniário. A palavra adikiais [maldosas] é traduzida por mal adquiridas ou injustas como se a causa da obtenção fosse uma injustiça social, quando na realidade se trata mais de riquezas enganosas, pois não podem salvar o homem na hora mais angustiosa como é a da morte. Em que sentido elas são descritas como mammona tes adikias [bens da iniquidade] por Jesus, pois aparentemente a frase é uma autêntica palavra do Mestre? São riquezas mentirosas que iludem os homens e, portanto iníquas, maldosas. Basta esta mentira que em si encerra para titularem as mesmas como riquezas iníquas. Em Marcos 4, 19 são chamadas enganosas [apate]. É delas que se servem os prudentes do reino para adquirir amigos que à semelhança dos agradecidos pela ação do administrador incompetente, receberão os seus benfeitores nas suas tendas que são as eternas.
DO POUCO PARA O MUITO: O fiel em mínimo também em muito é fiel; e o em mínimo iníquo também em muito iníquo é (10). Qui fidelis est in minimo et in maiori fidelis est et qui in modico iniquus est et in maiori iniquus est. Se pois, não fostes fiéis quanto ao mammona enganoso, quem vos confiará o verdadeiro? (11). Si ergo in iniquo mamona fideles non fuistis quod verum est quis credet vobis. E se não fostes fiéis quanto ao alheio quem vos dará o vosso? (12). Et si in alieno fideles non fuistis quod vestrum est quis dabit vobis. 3a) DO POUCO PARA O MUITO: parece que esta sentença de quem é fiel no mínimo será fiel no muito etc. é uma frase que foi acrescentada e tomada da parábola das minas (19, 17). É uma tese para deduzir a conclusão imediata: Se não fostes fiéis quanto ao mammona enganoso, quem vos dará o verdadeiro [como administradores] (11)? Como vemos, existe uma oposição entre o falso e o verdadeiro dinheiro; por isso a nossa tradução de enganoso ou falso da palavra adikias tem uma base real. O relativo Quem indica muito provavelmente Deus. Deus olha o comportamento atual para dar uma recompensa futura e total. Se não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o próprio (12)? É uma frase difícil de interpretar. À vista do administrador da parábola que gerencia bens alheios, podemos dizer que a frase é uma reflexão sobre como a gerência de bens temporais da frase anterior determina a gerência última de bens que são inatos e acompanham sempre a pessoa, como a pele rodeia o corpo. Estes bens são evidentemente a fé e a pertença ao Reino. Somente os verdadeiros ricos, que não se deixam envolver pela sedução das riquezas, serão dignos de entrar no Reino.
MORAL DA HISTÓRIA: Nenhum empregado pode servir a dois senhores. Pois odiará a um e amará o outro ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao mammona (13). Nemo servus potest duobus dominis servire aut enim unum odiet et alterum diliget aut uni adherebit et alterum contemnet non potestis Deo servire et mamonae. Jesus explica quem são esses senhores: Deus e Mammona. Todo o anterior serve para esta conclusão que é definitiva. Também Mateus nos apresenta a mesma declaração em 6, 24. O grego em ambas as passagens só se diferencia porque Lucas fala de nenhum empregado devido ao qual é feito a conclusão de uma parábola, enquanto Mateus generaliza a afirmação com o absoluto, ninguém. De uma situação puramente humana e racionalmente lógica, Lucas tira uma conclusão que é absoluta em termos de contradição. Deus e as riquezas, estas sem distinção de procedência, são termos opostos. Ou servimos a Deus ou servimos às riquezas, mas as duas coisas ao mesmo tempo não são possíveis.
PISTAS: 1) Dizia um padre num de seus sermões: Ou abraçamos a pobreza ou abraçamos os pobres. Para a grande maioria a pobreza é o caldo de cultivo de suas vidas. Entendemos por pobres aqueles que devem trabalhar para poder viver. Os que não querem trabalhar não comam, dirá Paulo em 2 Ts 3,10. Então teremos que dizer: Bemaventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino. A eles devemos pregar para que não se deixem iludir pela sedução das riquezas (Mc 4, 19).
2) Os ricos têm no evangelho de hoje um exemplo para, quando a aposentadoria da vida chegar a termo, encontre amigos que os recebam nas moradas eternas: fazer bom uso das riquezas. Elas não formam parte íntima do homem. Devem ser abandonadas e os ricos são meros administradores das mesmas. Um dia teremos que dar conta da administração. Assim como o administrador deu parte ou tudo do que era seu para adquirir amigos, da mesma forma devemos também fazer amigos com essas riquezas que não nos pertencem, mas que administramos.
3) O que não é necessário para uma vida digna segundo nossa classe social da qual fazemos parte, pertence aos pobres. O luxo é uma afronta e um pecado. Porque esse luxo precisamente como supérfluo pertence aos necessitados e estamos roubando o que estamos esbanjando. E estamos dando um péssimo exemplo que causa inveja, um vício, e não admiração ou uma virtude.