Comentário Exegético – III Domingo da Quaresma – Ano B

EPÍSTOLA (1 Cor 1, 22-25)

 

(Pe.Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: O partidarismo existente entre os membros da igreja em Corinto [sou de Paulo, sou de Pedro, sou de Apolo] é contrário à natureza do evangelho. Pois este não é uma eloquência humana, nem uma especulação filosófica. Provavelmente Paulo condena aqui determinadas correntes religiosas de tipo gnóstico, que se vangloriavam de sua união estreita com o Cristo celeste, esquecendo e desconectando-se do Cristo crucificado, a quem realmente devemos a salvação e a esperança. A estultícia aparece aqui de forma e sentido negativos. Não é com a ciência e eloquência do homem que devemos olhar a obra da salvação, produto da bondade de Deus, mas é a sabedoria divina a que deve iluminar a história do Universo e a finalidade da ação salvadora do homem, fundada na cruz como elemento da misericórdia e não da justiça de Deus.

SINAL E SABEDORIA: Já que também os judeus pedem um sinal e os helenos buscam sabedoria (22). Quoniam et Iudaei signa petunt et Graeci sapientiam quaerunt. Nos versículos anteriores Paulo pergunta: Onde estão os sábios? Onde estão os doutores das Escrituras? Onde estão os entendidos nas coisas deste mundo? Não mostrou Deus que a sabedoria deste mundo não passa de loucura? (20). E sua primeira resposta é clara: Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação (21). Deus permitiu que os homens não o conhecessem e, portanto, a sabedoria destes não passa de tolice e insensatez. Deus então a tornou insensata [emöranen], sem valor;  insípida seria a melhor tradução, como em Mt 5, 13 o sal deteriorado, que perdeu sua qualidade. De sabedoria se tornou em insensatez ou tolice. Daí o juízo dos homens é tão inútil como o sal que perdeu seu valor. Não podemos confiar, pois, na sabedoria humana para resolver os grandes interrogações do homem. E agora Paulo entra a criticar as conclusões dessa sabedoria. Em primeiro lugar a proveniente dos judeus: Eles pedem um SINAL [sëmeion<4592>=signa] para crer. No grego o encontramos em singular e na tradução da Vulgata em plural. Qual é esse sinal, ou sinais, solicitado pelos judeus? Lemos em Mt 12, 38: Então alguns dos escribas e dos fariseus tomaram a palavra, dizendo: Mestre, quiséramos ver da tua parte algum sinal. Pensavam que era uma descida no templo suave do Messias vindo do céu, como  tentando-o, pediam-lhe um sinal do céu (Lc 11, 16). Isso tudo Jesus descartou com uma resposta decisiva: Uma geração má e adúltera pede um sinal; porém, não se lhe dará outro sinal senão o do profeta Jonas (12, 38). Ou seja, a sua ressurreição que não seria experimentada por todos, mas só pelos que deviam ser testemunhas da mesma e que Deus já tinha escolhido (At 10, 41). E os gregos buscam SABEDORIA [sofia<4678>=sapientiam]. Qual era a sabedoria que os gregos ou helenos buscavam na doutrina de Cristo? Como definição, sabedoria é o juízo correto através do entendimento, pelo conhecimento profundo das ciências e das coisas. Em certo sentido se confunde com a Filosofia antiga que abarcava todo conhecimento, para dar solução aos problemas mais essenciais da existência humana. A Filosofia da época era a de Zenão de Cítio, de origem judaica, fundador do estoicismo, de considerável semelhança em ética e cosmologia com o cristianismo. Um dos seguidores da chamada Estoá Média era Antípatres de Tarso [conterrâneo de Paulo]. De onde passa para a Estoá Nova ou Romana, dominante entre as elites do Império, onde a Filosofia passa a ser principalmente ética com Lúcio Aneu Sêneca (+64 dC), e o nascido escravo Epicteto (+130 dC) para terminar com o imperador Marco Aurélio (180 dC). Qual era a sabedoria desta Escola? O mundo é fundado sobre a justiça: o mal perde, o bom é premiado segundo seus merecimentos. É claro que, nesta ética, a bondade de Deus e a graça de seu perdão, que constituem a base da cruz, nada têm a ver com o orgulho do justo que a si mesmo se justifica. A cruz, como dirá Paulo, é uma loucura para a chamada sabedoria grega, que os rabinos judeus diziam se fundamentar em metáforas ininteligíveis, cujo estudo estava proibido para um verdadeiro israelita. Na realidade, a sofia grega era a destreza em falar ou a maneira grega de chegar a ser um sofista um bom mestre de retórica. De modo que com conhecimentos humanos podia se formar um bom silogismo tão agradável como conquistador. Paulo era todo o contrário, sua figura e argumentos eram tão desprezíveis, de modo que escreve estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor (1 Cor 2, 3) e suas cartas  são graves e fortes, mas a presença do corpo é fraca, e a palavra desprezível (2 Cor 10, 10). Como Apolo era tudo o contrário, bom orador e bom filósofo [eloquente e conhecedor das ciências (At 18, 24)] daí sua fama entre os corintianos (1 Cor 1, 12). Contra essa fama de sábios entre os helenos está a verdadeira sabedoria da cruz, como Paulo explica na continuação.

CRISTO CRUCIFICADO: Nós, porém, proclamamos Cristo crucificado; para judeus certamente escândalo; para helenos, contudo, insensatez (23). Nos autem praedicamus Christum crucifixum Iudaeis quidem scandalum gentibus autem stultitiam. PROCLAMAMOS [këryssomen<2784>=praedicamus] é o termo usado para o anúncio do evangelho [e antes para descrever a pregação do Batista (Mc 1, 4)] e o ministério dos apóstolos em Lc 24, 47: E em seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém. É uma proclamação pública, um anúncio como o que diz Jesus em Mt 10, 27: O que eu vos digo em segredo, digam-no à luz do dia, e aquilo que vos é dito ao ouvido, apregoem-no em cima nos telhados. CRUCIFICADO [estaurömenos <4717>=crucifixus] particípio passivo do verbo stauroö com o significado de pregar na cruz, crucificar, Inicialmente era empalar ou fixar a uma estaca ou poste. A cruz foi adotada pelos romanos nas guerras púnicas e era o suplício mais atroz e mais humilhante. Somente os escravos; e estes se eram revoltosos contra o poder romano, eram pregados na cruz como escarmento e castigo exemplar. Por isso, Paulo acrescenta que esse Cristo [Messias], ungido de Deus, era ESCÂNDALO [skandalon <4625>=scandalum] para os judeus. Materialmente o escandalon era uma armadilha, um ardil, um laço: daí um impedimento no caminho que causa tropeço e queda. Assim Paulo fala da pedra de escândalo em Rm 11, 9. Em sentido figurado é uma tentação ao pecado como sedução e instigação ao mesmo, como foi Pedro para Jesus lhe propondo não aceitar a paixão e morte do mesmo (Mt 16, 23). Também coisa ou pessoa que causa ofensa, revolta, oposição, como pode ser uma conduta imoral, ou uma ação reprovada pela Lei. Esse é o nosso caso. Segundo a Torah todo homem pendurado é maldito de Deus (Dt 21, 23). Paulo acolhe esta tradição e a aplica a Cristo em Gl 3, 13: Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro. Sem dúvida que este texto do Deuteronômio era usado pelos judeus como motivo de escândalo ou impedimento para admitir a fé. Já Josefo, para evitar a cruz, e sua maldição, se entregou aos romanos na guerra dos anos 60, quando era chefe dos sediciosos na Galileia. Morrer como maldito de Deus era a última coisa que se esperava de um judeu e menos ainda do que devia ser seu rei e chefe como Messias. Por isso a cruz era um obstáculo [escândalo] para um judeu ortodoxo. Paulo elimina esse obstáculo afirmando que Cristo se tornou maldito (Gl 3, 13) e se tornou pecado (2 Cor 5, 21) sendo inocente, para que os verdadeiros malditos e pecadores  fossem resgatados da maldição e do pecado. INSENSATEZ [möria<3472>=stultitia] insensatez, asneira, tolice, doidice, loucura: coisa que não tem sentido, coisa de loucos. Como podia ser crível que a salvação viesse de um supliciado na cruz como rebelde e escravo? Não tinha sentido algum para quem buscava beleza e sabedoria, como eram os gregos. Um condenado pela justiça romana não podia ser amigo, quanto menos filho dos deuses. Como adotar como rei quem morreu como pobre e culpável numa cruz, símbolo da ignomínia e infâmia mais aviltada que no tempo se podia pensar? E a sua ressurreição? Quem, senão um doido, podia conceber semelhante mito que insultava o senso comum dos homens? Não foi Paulo rejeitado em Atenas quando começou a falar da ressurreição? (At 17, 32). Tudo isso era ridículo e parecia mito de uma mente transtornada.

PARA OS ELEITOS: Contudo para aqueles mesmos, os chamados, tanto judeus como helenos, Cristo de Deus força e de Deus sabedoria (24). Ipsis autem vocatis Iudaeis atque Graecis Christum Dei virtutem et Dei sapientiam. CHAMADOS [klëtoi <1672>=vocati] são os convidados, como em Mt 20, 16: Muitos são chamados, mas poucos escolhidos. Paulo chama de agioi [sagrados] aos fiéis de Roma (Rm 1, 7) unido ao adjetivo eklektoi [1588>=electi] (Ap 17, 14) constituem os verdadeiramente chamados de Jesus Cristo (Rm 1,6). E para estes escolhidos, que segundo palavras do próprio Jesus são os que o Pai lhe dá, já que todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora (Jo 6, 37). E uma coisa muito importante nesses primeiros tempos do cristianismo que dificilmente foi admitida pelos judeus conversos: que Paulo não faz distinção entre gregos e judeus (Cl 3, 11). Pois a salvação unicamente depende da FORÇA da cruz  com a qual Deus, o Pai reforçou a debilidade da morte de seu Filho, para demonstrar ao mesmo tempo a base da SABEDORIA DIVINA em ordem ao conjunto do Universo. O veremos no EXCURSUS.

DIFERENÇA ENTRE DEUS E O HOMEM: Porque o insensato de (o) Deus mais sábio dos homens é; e o débil de (o) Deus mais forte é dos homens (25). Quia quod stultum est Dei sapientius est hominibus et quod infirmum est Dei fortius est hominibus. Paulo admite que o homem não tem a última palavra sobre sabedoria e poder dentro do plano universal das coisas. Como Deus adverte a Jó: Porventura o contender contra o Todo-Poderoso é sabedoria? (40,2). Tens braço como Deus, ou podes trovejar com voz como ele o faz? (40, 9). E passando do poder à sabedoria lemos em 38, 2: Quem é este que escurece o conselho com palavras sem conhecimento?  E em 38, 4: Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Intentaremos ver a sabedoria de Deus de modo especial no seguinte EXCURSUS.

EXCURSUS

A SABEDORIA DA CRUZ: Temos algumas premissas das quais podemos tirar as consequências para descobrir o plano universal de Deus para a salvação dos homens. 1º) O maior atributo externo de Deus é a Misericórdia (Lc 6, 36). Mt em lugar paralelo fala de perfeição (Mt 5, 48). 2º) Essa misericórdia deriva de sua única bondade (Mt 19, 17). Em seguida, em todo caso, devemos perguntar: que é mais conforme a sua bondade e misericórdia: Perdoar ou fazer justiça? Castigar ou esperar pela conversão do culpado? 3º) O universo tem suas regras não só físicas, mas também de ordem ética: o amor é a base das relações humanas e esse amor consiste em dar-se e servir (Mc 10, 45). Esse amor tem como raiz o amor imensurável de Deus: a escolha da salvação dos inimigos através da morte temporal do seu verdadeiro e único Filho. Porque Deus quis elevar o homem à categoria de  sua divindade tornando-o filho no Filho (Jo 1, 12). E para a salvação, santificação e glorificação do homem, criado à sua imagem, escolheu um homem e não um anjo. Esse homem, Jesus, pagou do modo mais doloroso e humilhante com a sua morte pelos pecados do mundo (Jo 1, 39). Não existe uma mais cruel paixão na história da humanidade sobre um condenado que era inocente. Ele se tornou um verme mais do que um homem (Sl 22, 6) devido aos castigos recebidos materialmente podemos afirmar: Desde a planta do pé até a cabeça não há nele coisa sã, senão feridas, e inchaços, e chagas podres não espremidas, nem ligadas, nem amolecidas com óleo (Is 1,6). Foi um castigo exemplar e único. A história de Jesus é a história de um sacrifício por todos que nenhum homem escolheria como parte de sua vida. De que homem poderíamos afirmar como Paulo humilhou-se a si mesmo, obedecendo até à morte, e morte na cruz (Fp 2, 8)? Cristo foi a vítima do holocausto pelo pecado, o pastor que deu sua vida pelas ovelhas e que se alegra mais por ter achado a perdida, que pelas 99 que não se desgarraram. Há uma razão para perdoar o pecado humano e não o pecado angélico: os anjos foram todos criados ao mesmo tempo, mas os homens têm filhos que seriam culpados sendo inocentes. Realmente o pecado de Adão merecia um castigo eterno. E assim foi como foi transmitido a seus descendentes: como deficiência em dons extraordinários, não essenciais a sua natureza, já não transmitidos. Mas o perdão veio pelo sacrifício do homem Jesus, unido pessoalmente a Deus. Deus ofendido tomou como primeiro dever o de perdoar, castigando o filho inocente [daí sua justiça] para salvar os culpados [aqui mostrou sua misericórdia] e manifestar sua bondade. Por isso, a cruz é justiça em primeiro lugar; mas é misericórdia como fim último. E sempre será o símbolo do amor divino que com respeito ao homem se torna misericórdia.

EVANGELHO (Jo 2, 13-25)

(Lugares Paralelos: Mt 21, 12-13; Mc 11, 15-18 e Lc 19. 45-46)

PURIFICAÇÃO DO TEMPLO

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

A PÁSCOA: E estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém (13). Et prope erat Pascha Iudaeórum, et ascéndit Iesus Ierosólymam – dirá a Vulgata. O termo de ilação com o versículo anterior em João é a conjunção kai, geralmente traduzida por e mas que pode, ao ser uma versão do we original hebraico, ser traduzida por depois, então, logo, porque, já que etc. Lucas usa kai egeneto [e sucedeu] como ilação entre duas narrativas. Cremos que este deve ser o sentido que devemos dar a esse e de João, buscando, não uma ilação temporal, senão uma ligação lógica. Talvez desta maneira poderemos entender melhor as diferenças cronológicas que existem entre os 4 evangelistas.  Pois João parece colocar a expulsão dos vendilhões do templo no início da vida pública de Jesus e os sinóticos no fim da mesma. Três vezes ao ano deviam os israelitas comparecer ao templo para oferecer um sacrifício festivo (Êx 23,14 e 17). Uma delas era a Páscoa que correspondia ao 14 de Nissan, ou primeiro mês do ano e começo da primavera. A Páscoa durava sete dias. O dia seguinte ao dia da Páscoa era o Haguigá, dia dos sacrifícios festivos, dos quais a Mishná tem um tratado especial. A Páscoa dos judeus era, pois,  uma dessas três principais festas religiosas nas quais os israelitas estavam obrigados a subir a Jerusalém. Era a festa dos ázimos e da ceia do cordeiro. Até 20 mil eram sacrificados para celebrar a ceia pascal. João evidentemente une a subida de Jesus com a celebração da Páscoa. Como em seu evangelho Jesus sobe para Jerusalém num mínimo de seis vezes, (cap 2, 5, 6, 7, 10 e 12) daí que sua cronologia seja mais ajustada à realidade. Enquanto os sinóticos, que somente descrevem uma subida para Jerusalém, a última, devem inserir a purificação do templo no fim da vida do Mestre. João a coloca no início da mesma. O evangelista fala de subir para Jerusalém. Efetivamente, o último trecho dos três dias desde a Galiléia era uma subida dos quase 400 metros abaixo do nível do mar de Jericó, até os mais de 400 metros sobre o nível do mesmo em que se encontra Jerusalém. Daí a subida, que era o termo tradicional pelo qual era conhecida a peregrinação.

O MERCADO: E encontrou no lugar santo os que vendiam bois e cordeiros [e também cabritos] e pombas, e os cambistas assentados (14). Et invénit in templo vendéntes boves et oves et colúmbas et nummulários sedéntes. Temos traduzido probata [gado menor, ou seja, ovelhas e cabras] por cordeiros, contrariamente ao que fazem as traduções vernáculas que falam de ovelhas, pois os animais de sexo feminino não eram próprios para o sacrifício. A palavra cambista kermatistës<2773> recebe em Mateus e Marcos o nome de kollybistës <2855>, tendo ambas uma mesma origem ideológica embora não filológica. Derivam de palavras que significam pequenas moedas ou, como dizemos em português, trocados. O próprio João usa também o kollybistês no versículo 15. O significado de ambos os termos é cambista. Os cambistas eram necessários porque o templo não admitia outras moedas que o shekel judaico, equivalente a dois denários com o qual se pagava o imposto pessoal do templo. Como havia muitos que vinham de fora com moedas nas quais efígies e inscrições de cunho idolátrico abundavam, tendo efígies de deuses ou imperadores, e como não eram permitidas dentro do recinto sagrado, daí que o cambista era um intermediário importante para as compras e vendas de artigos próprios para os sacrifícios e oferendas do templo. Eles sempre cobravam o Kolbon, um dezesseis avos do shekel. Por isso, estes cambistas eram chamados de Colibistas [Kolobos em grego significa moeda pequena], como indica o grego de João (2, 15). As suas mesas estavam abertas desde o dia 25 do mês de Adar, pouco antes do mês de Nissan, mês da Páscoa. Jesus encontrou muitas mesas desses colibistas no templo. No pátio dos gentios estavam as bancas dos cambistas junto aos estabelecimentos dos vendedores de gado e animais, de incenso e azeite. Como vemos o latim traduz por nummularius da palavra nummus moeda; seria o contador de moedas ou caixa atual. Com esta mesma palavra traduz a vulgata os termos correspondentes gregos em Mateus e Marcos.

O TEMPLO: Era precisamente o terceiro templo, o de Herodes, que fundamentalmente foi construído em 8 anos, mas que em detalhes só foi terminado no ano 63. Na época de Jesus, realmente o tempo da sua construção era de aproximadamente 46 anos. O NT usa duas palavras para templo: Ieron [lugar sagrado] e Naos [nave]. A primeira abrangia todo o conjunto, com os pátios dos gentios e das mulheres. A segunda era o tabernáculo propriamente dito [mishkan] descrito em Êxodo 25-31 e 35-40, onde entravam os sacerdotes e compreendia o santo e o santíssimo. Em termos metafóricos, Jesus é o santuário onde habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 2,9). Por isso Paulo também fala aos cristãos dizendo: Não sabeis que sois templos [naós] de Deus que habita em vós (I Cor 3,16)? Tema que repete em II Cor 6,16.

A EXPULSÃO: E tendo feito de cordas [schoinion <4979>] um azorrague [fragellion <5416>] expulsou todos do lugar santo, tanto os cordeiros, como os bois e derramou os trocados dos cambistas e virou suas mesas (15). Et, cum fecísset quasi flagéllum de funículis, omnes eiécit de templo, oves quoque et boves, et nummulariórum effúdit aes et mensas subvértit. Estava proibido qualquer bastão, bordão  ou vara no templo, por não se permitirem armas no mesmo, a menos que estivessem nas mãos dos guardas, armados com bastões. Por isso Jesus teve que fazer um azorrague com as cordas que seguravam os animais do sacrifício. Embora os evangelistas falem de espadas e cacetes quando da prisão de Jesus, pelos guardas do templo, João, a única testemunha do fato, fala de lanternas, tochas e armas (18, 3). Foi com um bastão que segundo o mesmo João, Jesus foi golpeado diante de Anás por um servidor do mesmo (19, 22). Mas vejamos o que Jesus fez. O fragellum era um instrumento tremendo de castigo. Os romanos usavam vários instrumentos de castigo como açoites. Varas de olmo usadas para açoitar homens livres. Como castigo militar os centuriões usavam bastões de parreira, louro ou murta, que portavam como símbolo de seu cargo para impor sua autoridade. No castigo aos escravos usavam-se vários tipos de açoites. Entre estes a férula, que era uma correia de couro. O lorum ou scutica, ou seja, um látego com caudas feitas de pergaminho retorcido. O Flagrum com dois ou três apêndices com pequenos halteres metálicos nas pontas. O Flagellum é o diminutivo de flagrum.   Variações do flagrum eram o astrágala com ossos de carneiro no lugar dos halteres e o scorpion, com pontas ou puas metálicas, próprias para desgarrar a carne. Existiam três formas de açoites judiciais: a fustigatio, menos severa, para ofensas leves e acompanhada de severa advertência, a flagellatio um forte castigo para crimes mais sérios e a verberatio, a mais severa, usada geralmente como prelúdio a outros castigos como, por exemplo, a crucifixão. A lei não determinava o instrumento nem o número de golpes, que estavam sujeitos à vontade do lictor que comandava a execução. Os castigados pela justiça eram amarrados a uma coluna baixa ou deitados no chão para poder açoitá-los de ambos os lados das costas. Geralmente o condenado era açoitado por vários lictores [cornifex ou carrasco] até que estes ficassem exaustos ou eram detidos pelo oficial em cargo. Segundo a Vulgata, as cordas eram pequenas, ou seja, não grossas, daí o funiculus diminutivo de funes [corda]. Com isso compreenderemos melhor o castigo infligido a Jesus por Pilatos, e entendemos por que a Vulgata traduz o fragellion grego por um quase flagellum [uma espécie de flagello] latino. São duas as ações relatadas pelo evangelista: a expulsão de animais por meio de um látego, feito de pequenas cordas, e a reviravolta de moedas e mesas dos cambistas. Precisamente o latim fala de aes que significa cobre, ou moedas de pequeno valor, que eram as usadas como troco; pois uma dracma grega era igual em valor a um denário do templo. Só que, no câmbio, se cobravam alguns centavos [como diríamos em linguagem moderna] e daí os trocos necessários nas bancas dos cambistas. Esses trocos de pequeno valor estavam à vista e parece que as moedas de maior preço como eram as de prata estavam nos cintos dos cambistas. O 4o evangelista nos oferece, pois, uma série de detalhes que, contrastados com os outros três, apontam a uma testemunha ocular, frente a estereotipados relatos de segunda mão, como vemos em Mateus o mais detalhado dos três restantes: e expulsou todos os vendedores e compradores dentro do lugar sagrado e virou as bancas dos cambistas as cadeiras dos vendedores de pombas (Mt 21, 12). Marcos parece uma cópia de Mateus empregando quase os mesmos léxicos e a mesma sintaxe, com a única exceção de  colocar o verbo virou em último lugar da frase.  O relato de Lucas é muito mais breve.

A ADVERTÊNCIA: E disse aos que vendiam pombas: Tirai estas coisas daqui. Não façais da casa de meu Pai, casa de comércio (Jo 2, 16). Et his qui colúmbas vendébant dixit: Auférte ista hinc et nolíte fácere domum Patris mei domum negotiatiónis. Segundo João, Jesus unicamente adverte aos vendedores de pombas, pedindo que retirassem as gaiolas de pombas, sem virar as mesmas. Talvez por serem voláteis e de difícil expulsão com um látego, como era o caso dos outros vendedores. Jesus apela à casa de meu Pai. Evidentemente essa casa é o lugar sagrado onde especialmente no naós [santuário] Jahveh habitava, assentado sobre os querubins da arca, dentro do Santo dos Santos [Santíssimo] (1 Sm 4, 4). Com esta frase, casa do meu Pai,  que repete a dita por ele com idade de 12 anos (Lc 2, 49), Jesus expressa a ideia que tem de sua personalidade, como verdadeiro Filho de Deus.  O templo, pois,  para Jesus era a casa do Pai. Daí seu zelo por mantê-la limpa do que ele considerava a maior das impurezas, o ídolo do dinheiro, a mammona (Mt 6,24). A cena que Jesus contemplava era a de um verdadeiro comércio: As grandes fortunas de Israel tinham seu dinheiro nas arcas do templo, que como em outras nações servia de banco. Também servia de centro de informação, de modo que todas as famílias e clãs tinham sua estirpe de pertença às suas respectivas tribos. Na derrota do ano 70 o ouro das fortunas foi tomado pelas tropas romanas, mas os documentos das diversas pessoas foram perdidos. Por isso hoje não se pode saber a tribo dos judeus atuais. À parte esse inciso do Pai só narrado por João, precisamente para indicar que Jesus era o Logos encarnado, contrariamente ao que afirmavam do Logos os gnósticos (ver sobre Logos Spermatikós dos estóicos em www.presbiteros.org.br, exegese número 68), completamente diferente do demiurgo, o quarto evangelho coincide com os outros evangelistas ao citar Is 56, 13: a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos [apontando ao pátio dos gentios] e Jr 7, 11: este templo, onde meu nome será invocado, será por ventura um covil de ladrões aos vossos olhos? Mateus dirá: está escrito a minha casa será chamada casa de oração; vós a fizestes cova de bandidos [salteadores] (Mt 21, 13). Segundo Marcos, Jesus não permitia que ninguém carregasse um utensílio [vaso] através do templo. E ensinava dizendo-lhes: não está escrito que a minha casa será chamada casa de oração para todas as nações? Vós a fizestes toca de bandoleiros [Mc  11, 16-17]. Lucas é o mais breve e coincide com Mateus dando como razão da expulsão a mesma de Mateus. Era célebre o grande mercado da Páscoa que começava três semanas antes da festa, onde se vendiam pombas e trocavam moedas no pátio dos gentios e que se abrigava aparentemente sob o pórtico real. O importe das licenças revertia ao sumo sacerdote. Como antes temos dito, toda moeda, devido às inscrições, tinha que ser cambiada por moedas cunhadas no templo. Nessa troca havia um ganho importante [3 centavos por denário], de modo que um tanto por cento elevado ficava nas mãos dos  sacerdotes chefes, tornando-os ricos. Os templos antigos eram verdadeiros açougues, já que a maioria das vítimas eram em parte queimadas e em parte vendidas como idolotitos [= carnes oferecidas aos ídolos]. O templo de Jerusalém não era alheio a este costume. Os sacrifícios pacíficos eram uma prova do mesmo. Nem toda oferenda era admitida, devido às razões de pureza. Só as puras deviam ser aceitas, e para isso deviam morar durante um mês em Jerusalém, por isso as vindas da Galileia, terra de gentios, eram excluídas. (Mt 5,15). Os peregrinos vendiam seus animais nos seus respectivos lugares e com o mesmo valor compravam no templo de Jerusalém os substitutos, livres de toda impureza. Para comprar uma vítima devia-se comprar primeiro um vale de um dos 15 presidentes da compra. Com o vale na mão escolhia-se a vítima correspondente. No fim do dia o número de vales devia corresponder ao dinheiro arrecadado. Por isso não havia mais dinheiro que os trocados devidos aos juros da compra-venda. Sobre as vítimas mais numerosas, as pombas, sabemos que em certas épocas, devido aos partos das mulheres,  o pedido era grande e, portanto, os preços disparavam. Nos edifícios circundantes ao naós estavam as 13 bocas de recipientes em forma de trombetas com a parte mais estreita dentro da parede interna para as diversas contribuições. Uma dessas bocas, a primeira, era para receber os shekels da contribuição pessoal anual do ano em curso. A segunda era para a contribuição do ano anterior. Sabemos que numa delas a viúva pobre introduziu dois leptons (dois centavos) (Lc 21,2). Os cambistas eram necessários porque o templo não admitia outras moedas que o shekel, equivalente a dois denários com o qual se pagava o imposto pessoal do templo. Já que as outras moedas tinham efígies de deuses ou imperadores, não permitidas dentro do recinto sagrado. As grandes fortunas de Israel tinham seu dinheiro nas arcas do templo que como em outras nações servia de banco. Era um roubo e os ladrões eram os chefes dos sacerdotes principalmente; especialmente porque a lei impedia a cobrança de juros dos que pertenciam à religião judaica. O templo era, pois, transformado num banco de comércio. Contra esta utilização mercenária do templo, Jesus se indigna e resolve a questão por meios violentos. Sabemos também de um mercado no Monte das Oliveiras, lugar por onde entravam em Jerusalém os galileus. As disputas entre os dois mercados deviam ser frequentes, e por isso o caso da expulsão dos vendilhões do templo nada tem de inverossímil, referendado aparentemente pelos numerosos galileus da festa.

A EXPLICAÇÃO: Lembraram-se, pois, os discípulos dele que está escrito: o zelo pela tua casa me devorou. (17). Recordáti sunt vero discípuli eius quia scriptum est: “Zelus domus tuae comédit me. [katesthiö < 2719> devorar, consumir apoderar-se totalmente de alguém]. É a citação do Salmo 69, 10: Pois o zelo por tua casa me devora, e os insultos dos que te insultam recaem sobre mim. Sem dúvida que a ação violenta de Jesus contrastava com sua pregação de misericórdia e sua atitude de mansidão e acolhimento para com os publicanos e prostitutas. Por isso eles tiveram que recorrer à Escritura para explicar sua conduta, em si nada edificante, pois declarando-se manso e humilde (Mt 11,29), agora apela ao uso da força. Esta conduta só pode ser compreendida à luz do AT como se Jesus tivesse um dever que obrigatoriamente devesse realizar: O Zelo de tua casa me consumiu e as injúrias dos que me ultrajam caem sobre nós (Sl 69,9).

A PERGUNTA: Em reposta, por isso, os judeus disseram-lhe: Que sinal tu nos mostras, já que realizas estas coisas? (18). Respondérunt ergo Iudaéi et dixérunt ei: Quod signum osténdis nobis quia haec facis? Como toda a tradução feita neste evangelho, decidimos preferir a literalidade muito mais do que a sintaxe. Qual é o sinal que os judeus pedem? O poder em forma de violência denotava em Jesus uma autoridade que o ligava com o futuro Messias. Existia nos tempos de Jesus a opinião de que o Messias devia se apresentar como vindo do céu e descendo suavemente no átrio dos gentios, à maneira que o diabo tentou Jesus a pôr em prática (Mt 4, 5-6). Seria este o sinal provindo do céu esperado pelos judeus (Mt 16, 1), os dirigentes da nação, para acreditar em Jesus?

O TEMPLO: Respondeu Jesus e disse-lhes: Demoli este santuário [naós<3485>] e em três dias o levantarei (19). Respóndit Iesus et dixit eis: Sólvite templum hoc, et in tribus diébus excitábo illud. Como vemos, Jesus fala de naós, que seria propriamente a parte mais sagrada do amplo edifício conhecido como templo. O templo em tempos de Jesus era o terceiro templo, reconstruído por completo por Herodes o Magno. Em tamanho e materiais era uma maravilha no mundo antigo. O primeiro templo construído por Salomão sob os planos de Davi, seu pai, era em grande parte de madeiras nobres forradas de ouro. O segundo templo após a volta do cativeiro da Babilônia era minúsculo e pobre. Foi Herodes o Magno que em 9 anos, desde o ano 19 dC, construiu o templo, ou seja, a naós [=nave] própria e suas dependências, de modo que em anos sucessivos só houve necessidade de retoques e terminações. E foi assim até o ano 62, ano em que se deu como terminada a grandiosa obra. Oito anos depois ele foi destruído pelas tropas romanas. Era um edifício escalonado em que o lugar mais alto e sagrado, era o DERBI [o santo dos santos ou santíssimo], donde não havia janelas externas, nem estátuas ou figuras internas, tal e como o encontrou Pompeu, o único profano que a História revela como visitante do mesmo. Fora do recinto sagrado, existia o pátio chamado dos gentios, rodeado por pórticos de colunas. Dois deles eram famosos: o Real do sul, e o de Salomão do leste. Neste último elevavam-se duas fileiras de colunas, mantendo um teto que propiciava uma estrutura ao abrigo dos ventos, do sol e da chuva, própria para servir como sala de aula contínua ao modelo das madrasas muçulmanas. Nesse pórtico escutou Jesus pela primeira vez os doutores da lei (Lc 2,46) e ensinou o evangelho, principalmente na festa dos Tabernáculos (Jo 7,14) e na última semana de sua vida (Jo 8,2 e 10, 23). Ou seja, além de ser o santuário, morada exclusiva de Deus no  meio de seu povo, o Templo era a escola universitária do Israel bíblico em tempos de Jesus. O culto, com os sacrifícios, os cantos dos salmos, as orações dos fiéis, transformava o lugar em verdadeiro recinto sagrado (Jo 2,13-25). O templo onde se desenvolvia a conversa tinha nesta época, aproximadamente 46 anos desde o início de sua construção por Herodes o Grande. A resposta de Jesus é um tanto ilógica, como veremos, ao estudar a refutação feita pelos judeus.

A RÉPLICA: Disseram, portanto, os judeus: Em quarenta e seis anos foi edificado este santuário e tu em três dias o levantarás? (20). Dixérunt ergo Iudaéi: Quadragínta et sex annis aedificátum est templum hoc, et tu in tribus diébus excitábis illud? A dúvida e a correspondente ironia dos judeus eram claras do ponto de vista humano. Ou Jesus estava louco ou ele falava de outra coisa que os judeus não entendiam bem. Do tempo citado, poderemos saber mais ou menos a idade de Jesus. Nascido no ano -7  teríamos que tirar 12 anos aos 46 e chegaríamos à idade de 34 anos. Caso seu nascimento fosse no ano –4 [ano da morte de Herodes] teria na época 31 anos. Sua idade estava, pois compreendida entre os 31 e 34 anos.

O CORPO, TEMPLO DO ESPÍRITO SANTO: Ele, porém, falou sobre o santuário do seu corpo (21). Ille autem dicébat de templo córporis sui. Jesus falou abertamente de seu corpo como sendo um verdadeiro templo (20). O comentário do evangelista é descrito no versículo 22: Quando, pois, foi erguido dos mortos, lembraram-se os seus discípulos que disse isto e creram na Escritura e na palavra que disse Jesus. Cum ergo resurrexísset a mórtuis, recordáti sunt discípuli eius quia hoc dicébat, et credidérunt Scriptúrae et sermoni quem dixit Iesus. Nem os judeus nem os discípulos entenderam as palavras de Jesus. Estes últimos as compreenderam ao vê-lo ressuscitado. Realmente o poder de Jesus estava ao nível do poder de sua ressurreição. Desta metáfora do corpo como sendo naós do Espírito, servir-se-ão os apóstolos para ver no corpo dos cristãos o verdadeiro templo que não depende de mãos humanas.  Assim Paulo fala dos corpos dos cristãos consagrados pelo batismo como sendo templos do Espírito Santo, que está em vós e que vos vem de Deus, e que vós não vos pertenceis (I Cor 6,19). Ele também tem uma expressão difícil, que considera o homem como um conjunto tripartido: Espírito, alma e corpo (I Ts 5, 23) Autores há que comparam esta tri-divisão com a de Plutarco: Corpo, alma e razão. Mas podemos dar uma solução mais cristã: o espírito na realidade é o Espírito, ou seja, o sopro divino que nos acompanha desde o batismo e forma parte de nossa natureza como cristãos, como filhos de Deus, à semelhança de Cristo, que o recebeu plenamente no seu batismo (Mt 3,16). Por isso se compreende a sentença de Jesus de que o homem, para formar parte do Reino, deve nascer de novo, tendo um novo Pai [tenhamos em conta que o único que verdadeiramente contava na antiguidade para a nova criatura era o pai]. E esse nascimento se dá na água através do Espírito que se comunica. (Jo 3, 3-6). Entenderemos, pois, melhor o significado desse nascimento, se considerarmos que os filhos eram produtos do pai e que a mãe era só a terra fértil que os alimentava. A água batismal é a mãe junto com a Igreja, e Deus é o Pai do qual nascemos e nos tornamos, como Jesus, verdadeiros templos de Deus ao qual adoraremos em Espírito e verdade (Jo 4, 23).

ATIVIDADE SOBRENATURAL DE JESUS: Como, pois, estivesse em Jerusalém na Páscoa, na Festa, muitos creram em seu nome vendo seus (sic) sinais que fazia (23). Cum autem esset Ierosólymis in Pascha in die festo, multi credidérunt in nómine eius vidéntes signa eius quae faciébat. Esta parte do relato é própria de João e introduz o diálogo com Nicodemos do capítulo 3. Como podemos ver, o latim traduz com bastante literalidade o grego do quarto evangelho. Quais foram esses sinais ou milagres? O evangelista não os narra. Mas logicamente eram coisas extraordinárias; em geral, curas impossíveis com os remédios e médicos da época, e de forma instantânea, feitas sob o comando de sua voz (ver Mt 8, 16). Por isso, dirá Nicodemos, que vens da parte de Deus como um mestre porque ninguém pode fazer o que tu fazes se Deus não estiver com ele (Jo 3, 2). O que sabemos é o comentário do evangelista que,  diferente dos outros três, gosta de uma reflexão teológica após um fato que, geralmente, é um dos sinais portentosos feitos por Jesus.

O CONHECEDOR DOS CORAÇÕES: Mas o próprio Jesus, ele mesmo, não acreditava neles, por ele conhecer todos (24). Ipse autem Iesus non credébat semetípsum eis, eo quod ipse nosset omnes. Logicamente é um parágrafo próprio do evangelista como se fosse um comentário em voz alta, de uma pessoa que tinha convivido por longo tempo com Jesus e que testemunhava esse conhecimento dos corações, próprio de um homem inspirado por Deus. Desse conhecimento não se livrava ninguém, fato que indica a universalidade do conhecimento sobrenatural de Jesus. Portanto, João nos adverte: e porque não tinha necessidade de que alguém testemunhasse acerca do homem já que ele conhecia  o que estava dentro do homem (25). Et quia opus ei non erat ut quis testimónium perhibéret de hómine; ipse enim sciébat quid esset in hómine. Como vemos, a tradução latina uma vez mais é literalmente exata. O evangelista, além de narrar os fatos com detalhes de uma testemunha presente neles, nos dá uma reflexão sobre a ciência infusa de Jesus que nos leva a um plano transcendente como é o profético, ou melhor, o divino. Talvez seja esta palavra do evangelista uma recordação de Jeremias: Não vos fieis em palavras mentirosas, dizendo: este é o templo de Jahweh, Templo de Jahweh, templo de Jahweh! (Jr 7, 4).

PISTAS: 1) No relato evangélico temos um testemunho da autoridade de Jesus em matéria religiosa. Sabíamos por Marcos (1, 22-28) da autoridade de Jesus para interpretar a Lei e instituir novos mandatos. Agora ele declara a dignidade do templo como impossível de compaginar com o comércio de compra e venda, feito dentro do recinto sacro. Será que isto não se repete hoje em dia em certos lugares que chamamos de peregrinação?

2) A venda de cargos, relíquias ou indulgências, que podemos chamar de simonia foi, em outros tempos, escusa para uma divisão dentro da Igreja. Temos aprendido alguma coisa quando em programas modernos de TV vemos objetos e peregrinações oferecidos como desejáveis a preços aparentemente de rebaixa comercial?

3) O templo material de Jerusalém é substituído pelo corpo [ou seja, a humanidade] de Jesus ressuscitado. Ele está presente na Eucaristia. Essa presença é a que consagra o templo material e purifica toda ação humana, por menos digna que esta apareça nas figuras do sacerdote e dos ministros que a servem e distribuem.

4) Nós somos templos do Espírito Santo segundo S Paulo (1 Cor 6, 19). De vez em quando convém deixar Jesus entrar neles para limpar os mesmos, que o mundo moderno tem maculado. O lucro, o hedonismo, o bem-estar são a nova Tríade Capitolina, que domina a política e a sociedade e que subjuga também a vida familiar e particular.

5) O templo era considerado tão sagrado que uma palavra contra ele era considerada como ofensa grave, espécie de blasfêmia, castigada até com a morte. Assim a ação de Jesus foi entendida como uma provocação, segundo vemos no julgamento. Pois colocaram na boca de Jesus: Posso destruir este templo e reedificá-lo em três dias (Mt 36, 51). Esta era uma das acusações principais e pela discrepância entre as testemunhas, parece que o tempo em que foi dito por Jesus era tão antigo, como relata João, ao início da vida pública de Jesus. Ele não foi julgado, mas criticado na época e, só depois de alguns anos, a frase, deturpada, veio à tona.

6) A ciência infusa de Jesus é como um referendum do que todos nós sabemos: não se pode confiar nas palavras de um homem. Até a Escritura afirma: maldito o homem que confia unicamente no homem (Jr 17, 5). Por isso, a mentira é talvez a chave principal para distinguir o autêntico do hipócrita,   o verdadeiro do falso homem. Jesus mesmo usou esta norma quando disse de Natanael: Eis um verdadeiro israelita em que não há dolo [mentira] (Jo 1, 47).

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