Max Thurian
Cristo nunca se casou. Sua vida é justificativa da vocação para o celibato. Jesus Cristo questiona as leis da criação e da natureza; questiona a Lei da Antiga Aliança, que buscava restabelecer a ordem na criação e na natureza, perturbada pelo pecado.
Ele não aboliu, é certo, a ordem da criação, as leis da natureza nem a Lei de Moisés, mas completou-as todas, conferindo-lhes seu sentido original profundo de sinal impositivo e absoluto, qual seja, a ética do Sermão da Montanha. Poder-se-ia dizer que essa definição da vida no Reino, irrealizável na Terra, é um chamado à perfeição, talvez àquilo somente concretizável no fim, na vida eterna. De vez em quando nos sentimos chamados e condenados pela proposta absoluta de Cristo, o que nos inspira com real humildade, com um sentimento de nossa própria, profunda, maldade, e um ardente anseio pela volta de Cristo. Esse absoluto nos conduz a uma moralidade de ruptura e sacrifício. Não é possível ordenar a vida por meio da Lei nem canalizar as paixões mediante um preceito moral. Como seguidores de Cristo, temos de aspirar àquele amor puro que renuncia à vida. “Ouvistes que foi dito, ‘não cometerás adultério’. Ora, eu vos digo: ‘todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher já adulterou com ela em seu coração’ “. (Mt 5, 27-28 ) Quem pode fugir do adultério no íntimo do seu coração? A Lei se tornou absoluta, ao mesmo tempo nos atrai e nos julga. Ninguém que deseje obedecer Cristo pode continuar a desejar que este mundo, a ordem da criação e a ordem natural durem para sempre. Nós desejamos o fim: “Vem, Senhor Jesus”. Nessa espera de sua volta não podemos sucumbir ao desânimo e desespero. Com a ajuda do Espírito Santo e numa perseverança sustentada pela fé e autodisciplina podemos sem dúvida alcançar vitórias. Buscaremos nossa força em Cristo e aceitaremos ter de romper com o mundo. Imediatamente após haver relegado o adultério aos desejos mais recônditos do coração, Jesus prossegue: “Se teu olho direito é causa de queda, arranca-o …. é preferível perder um dos teus membros a ter o teu corpo inteiro atirado no inferno …”. (Mt 5, 29-30) Enquanto esperamos Cristo retornar e nos santificar temos de viver no mundo. Para que essa espera tenha significado e se torne algo de real, temos de aceitar o sacrifício em nossas vidas.
O oferecimento do celibato sacerdotal
O celibato é um desses sinais a nos recordar as exigências absolutas de Cristo, seu retorno libertador, a economia do Reino do Céu, a necessidade de estar vigilante, de romper com o mundo, com a carne, com a luxúria e de, com alegria no coração, aceitar a renúncia às paixões pelo puro amor de Jesus. Lembra-nos de que o casamento em Cristo também implica exigências sacrificais: fidelidade absoluta e perene (monogamia e indissolubilidade) e pureza de coração (o adultério não é apenas físico). O celibato é uma maneira de obedecer ao convite de Cristo: “Se alguém quer seguir-me, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar sua vida a perderá; e quem perder sua vida por causa de mim a encontrará”.(Mt 16, 24-25).
Observar o celibato pelo Reino do Céu não significa ser menos homem. Ao renunciar a uma forma natural de existência, o sacerdote descobre a vida em sua plenitude. Cristo com certeza não era menos homem por não ter outros afetos além daqueles pelos irmãos, nem outra noiva senão a Igreja.
Ao referir-se à vocação do celibato voluntário, Jesus devia estar pensando, em primeiro lugar, em si próprio, possivelmente também em João Batista, que o precedera naquele caminho e inaugurara com sua própria vida a nova ordem pregada pelo Messias. Essa nova ordem expressada pelas vidas celibatárias de João Batista e Jesus nos diz que precisamos estar no mundo sem ser do mundo, pois “o tempo abreviou-se… os que tiram proveito do mundo, vivam como se não aproveitassem. Pois a figura deste mundo passa”. (1 Cor 7, 29-31) Ao falar sobre o celibato (cf Mt 19, 12), Ele ressalta que, na comunidade cristã, não obstante o gozo das coisas boas naturais, existe também a renúncia a elas. A ordem da criação está exposta no Evangelho, não obstante ela pode ser desprezada pelo Reino de Deus, a nova ordem superimposta à ordem primitiva da criação.¹
O celibato, portanto — a renúncia à ordem primitiva da criação pela nova ordem do Reino do Céu –, coloca-se na perspectiva das profundas exigências do Evangelho, pois “na ressurreição não haverá homens e mulheres casando-se, mas serão como anjos no céu”. (Mt 22,30) Com o celibato Jesus – e antes dele, João Batista – introduziu essa nova ordem. “Por que surpreender-nos”, escreve Karl Barth, ” de que entre os seguidores de Jesus, e mais tarde na Igreja primitiva, e mais tarde ainda, havia, ao que parece, homens que achavam razoável praticar essa outra possibilidade (essa segunda vocação conhecida como celibato), homens para quem fazer parte da Igreja e nela viver tomava definitivamente o lugar da união conjugal e da vida de casado: não por hostilidade ao casamento entendido no sentido da Carta aos Efésios 5, 31 – o casamento restaurado em toda a sua dignidade – mas antes por causa dessa reavaliação do casamento e inspirados diretamente no próprio exemplo da Jesus”.²
Portanto, “inspirados diretamente no próprio exemplo de Jesus”, alguns cristãos, homens e mulheres, obedientes a uma vocação divina e também para se beneficiarem de uma promessa, renunciavam ao casamento não obstante a ordem da criação observada fielmente por Israel. Na nova ordem dos Últimos Dias, que estamos vivendo, Deus oferece certos sinais do Reino do Céu na sua Igreja, um dos quais é o celibato. No começo do primeiro século da Era Cristã, S.Inácio de Antioquia testemunhou a existência de homens e mulheres que haviam escolhido esse caminho “pela honra de Deus”. Ele escreveu a Policarpo: “Diga a minhas irmãs para amarem o Senhor e se contentarem com seus maridos na carne e no espírito. E recomende aos meus irmãos amarem suas mulheres como o Senhor amou a Igreja (cf Ef 5, 25-29). Se alguns deles puderem perseverar na castidade em honra da carne do Senhor, que o façam sem se vangloriar disso”.³
S. Inácio relaciona dessa maneira o estado do celibato à natureza humana de Cristo, na perspectiva da encarnação que introduziria uma nova era. O celibato consagrado “em honra da carne do Senhor” no espírito da imitação e glorificação da vida vivida por Jesus enquanto esteve entre nós.
Quando Cristo promete o cêntuplo aos que abandonarem tudo, especialmente a possibilidade da vida conjugal ou familiar (… mulher…, filhos… (Lc 18, 29-30), está se referindo à renúncia por Ele (ou “pelo seu nome”, pelo Evangelho, ou “por causa do Reino de Deus”). Desse modo ele fala dos dois principais significados do celibato, atribuindo-lhe seu caráter e valor peculiares. A renúncia ao casamento e à família, considerada um dom verdadeiramente divino, tem por motivos básicos o amor (por Mim) e o serviço de Deus e da Igreja (pelo Evangelho).
Acrescentaríamos a esses dois um terceiro significado que pode ser definido como “escatológico”, pois consiste na proclamação da nova era do Reino por vir.Quando Cristo fala de renúncia total “por causa do Reino de Deus” (Lc l8, 29) ou “do Evangelho”, “por causa da boa nova”), não está aludindo apenas ao ministério, ao serviço do Reino de Deus e do Evangelho, mas também à nova ordem que Ele está instituindo.
Impossível definir o eventual sentido principal da expressão “por causa do Evangelho ou do Reino de Deus”. Temos de assumi-los juntos, aceitando-os como complementares entre si. Em decorrência da boa nova que suscita a nova ordem do Reino, algumas pessoas já não podem viver conforme as leis habituais da natureza, mas ao contrário se devotam a um estado de celibato. Esse estado lhes permite proclamar o Evangelho com maior liberdade e ser também sinal do Reino.
Significado prático do celibato
O celibato permite tal liberdade e disponibilidade na vida e no ministério cristão que o torna altamente apropriado ao serviço da Igreja. O sacerdote celibatário por causa do Reino pode desempenhar missões particularmente difíceis com maior facilidade e liberdade do que um homem casado, preso a responsabilidades de família. O padre pode partir para qualquer lugar a qualquer momento em resposta ao chamado urgente da Igreja, coisa que o homem casado não pode, pois tem de se ocupar da esposa e filhos, de sua saúde, bem-estar, educação, e tudo isso ele precisa cumprir em obediência fiel à sua vocação de homem casado.
Esses deveres humanos, desejados por Deus para o estado matrimonial, constituem empecilhos ao serviço livre e desimpedido da Igreja. S. Paulo enfatiza a vantagem prática do celibato, tanto mais que o casamento implica uma necessária perda de independência. “Os casados terão as tribulações do mundo, e eu quisera poupar-vos”, escreve S. Paulo (1 Cor 7, 28). Na previsão das perseguições que os cristãos sofreriam, o Apóstolo sustenta que para eles o celibato seria uma vantagem. O Apóstolo não pensa apenas no martírio – difícil de aceitar por um homem de família – mas no fato de que o estado matrimonial acarreta toda sorte de preocupações que desviam dos cuidados do ministério. Não que o celibato seja um estado tranquilo de vida, longe dos cuidados do mundo. A questão é tão-somente escolher entre uma vida exclusivamente devotada ao sacerdócio (e, portanto, também, às múltiplas preocupações relativas à obediência a Cristo, à missão a ser desempenhada, à comunidade à qual se pertence), ou uma vida dividida entre as duas ordens de preocupações, à do casamento e à da Igreja, ambas desejadas por Deus.
“Eu gostaria que estivésseis livres de preocupações”, continua S. Paulo. “O homem não-casado é solícito pelas coisas do Senhor e procura agradar ao Senhor. O casado preocupa-se com as coisas do mundo e procura agradar à sua mulher. Assim, está dividido. Do mesmo modo, a mulher não-casada, a virgem, preocupa-se com as coisas do Senhor e procura ser santa de corpo e espírito. Mas a casada preocupa-se com as coisas do mundo e procura agradar ao seu marido”. (1Cor 7, 32-34) O Apóstolo não carrega as tintas a respeito dessa divisão no ânimo dos maridos e das casadas. Não desaprova os cuidados conjugais ou familiares, mas se trata de tarefas divididas, enquanto o celibato possibilita uma dedicação integral do tempo e do pensamento ao serviço direto ao Senhor e à Igreja.
Era essa a intenção de Jesus ao fundar o estado do celibato voluntário “por causa do Reino do Céu”. Ao instituir uma semelhança com Cristo não apenas espiritual mas física e também prática, o celibato voluntário constitui um estado apropriado de maneira especial ao serviço do Reino. Como Jesus, o sacerdote pode dedicar-se totalmente – espiritual e humanamente – ao ministério. Não é celibatário para ter mais tranquilidade mas para assemelhar-se a Cristo no seu compromisso com o Reino. Para viver seu estado como deve ser vivido, todos os seus esforços e pensamentos serão direcionados a uma proclamação viva do Evangelho no sentido de apressar a volta de Cristo. Precisa estar livremente disposto a obedecer ao chamado da Igreja.
A vida celibatária, que priva o sacerdote da intimidade conjugal e da paternidade na ordem física, lhe permite, por outro lado, entregar-se por completo ao cuidado de outras pessoas, à sua salvação e santificação. Como não tem um amor exclusivo, o padre celibatário deve estar sempre disponível para todos, e conta com o tempo e a liberdade interior para servir seu vizinho (ou seja quem for) na caridade. Pode dedicar muito tempo àqueles que desejem fazer-lhe confidências, pode dedicar atenção aos que precisam de apoio continuado. Ademais, sua independência pode inspirar maior confiança nos que pretendem confidenciar-se com ele. É errado pensar que ele não pode entender as pessoas porque não vive como muitos deles, com seus problemas matrimoniais e dificuldades de família. Para ser guiado pelo Espírito Santo na direção das almas, ninguém precisa ter experimentado pessoalmente toda situação humana. O padre, particularmente capacitado para o ministério da direção espiritual, por ser celibatário receberá o cêntuplo prometido por Cristo. (Mt 10, 29-20) Embora sozinho, experimentará a paternidade espiritual com relação aos que nele confiarem espontaneamente.
O significado profundo do celibato
Como diz S. Paulo, o homem não-casado não só é solícito pelas coisas do Senhor, ou seja, pelo ministério ao qual pode dedicar todo o seu tempo, mas também procura agradar ao Senhor. Do mesmo modo, a mulher não-casada “procura ser santa de corpo e espírito”. (1 Cor 8, 32-34) “Agradar ao Senhor” e procurar “ser santa de corpo e espírito” deve ser entendido no sentido místico de uma relação especial com Cristo na qual a oração e a contemplação assumem papel muito importante. O celibato, segundo S. Inácio, é praticado pela “honra da carne de Jesus” e propicia, por assim dizer, uma relação íntima com a pessoa humana de Jesus Cristo. O sacerdote celibatário tem a oportunidade de estar consagrado diretamente a Cristo na sua humanidade completa, alma e corpo. S. Paulo, ao repreender as viúvas jovens que faltam com o compromisso antes assumido e querem se casar de novo, escreve que seus desejos as afastam de Cristo. (1 Tim 5,11) Isso não deve ser entendido como juízo moral contra o casamento em si, mas como uma repreensão destinada aos celibatários que, tendo decidido consagrar suas almas e corpos exclusivamente ao Senhor, repudiam a promessa feita. Uma vez tendo-se entregado completamente a Cristo, pela honra de sua carne, para unir-se a Ele em todos os aspectos de sua natureza humana, o rompimento dessa união constitui uma infidelidade.
Consagrar corpo e alma ao Senhor implica o desejo de agradá-lo com toda a sua vida e com todo o seu ser. Cada aspecto da vida do padre celibatário precisa, pois, evidenciar esse empenho. Não apenas ele procurará viver na pureza de coração e de corpo mas seu comportamento, suas palavras, seus relacionamentos, tudo deverá revelar a beleza da sua vocação.
Se um cristão celibatário tem a vocação sacerdotal, a possibilidade e o privilégio de devotar-se todo ao serviço de outros com seu tempo e atenção, a vida celibatária também significa que ele precisa procurar agradar ao Senhor na oração e contemplação. Ao escolher a melhor parte, deve fazê-lo de tal modo que os cuidados do mundo não lha tomem. Seu próprio celibato não somente o define mas também lhe impõe manter-se num estado de contínua dependência de Deus. Na sua solidão, o amor de Cristo pode preencher sua necessidade de amor e, na oração, ele encontrará toda alegria. A virgindade de Maria expressa de modo perfeito esse sentido de dependência total no Senhor. Ao se tornar mãe de Cristo, Maria permaneceu virgem não porque o casamento não lhe correspondesse mas para mostrar que, ao dar ao mundo seu Salvador, ela consagrara seu corpo e espírito só a Deus, num ato de perfeita dependência. 4
A vida de oração e contemplação expressa essa dependência do Senhor e assume então importante papel na vida do padre. Era isso o que S. Paulo desejava para as viúvas da Igreja primitiva, ao escrever para Timóteo: “A que é realmente viúva e está desamparada depositou a sua esperança em Deus e persevera, noite e dia, em súplicas e orações”. (1 Tim 5, 5) Assim também os que experimentam a solidão do celibato inclinam-se com naturalidade a colocar sua confiança em Deus, vivem uma singular dependência em Deus e amizade com Ele, por isso devotarão parte de seu tempo à oração. Ao louvar o Senhor desinteressadamente na Igreja, osacerdote buscará maneiras de agradá-Lo, honrando-O e sendo-Lhe grato na comunidade dos santos. Na Igreja, a beleza da liturgia relaciona-se diretamente com esse desejo de louvar ao Senhor. A adoração litúrgica expressa amor e gratidão a Cristo e por seu sacrifício. A oração litúrgica e a súplica contemplativa oferecidas livremente não são independentes do serviço à Igreja e aos outros. Porém, através delas, na intercessão, os sacerdotes confiam ao Senhor todos aqueles pelos quais eles sentem que devem orar. A vida litúrgica e contemplativa costumeira na Igreja, bem como o Ofício das Horas que o padre tem de rezar mesmo quando está sozinho, constantemente o aproximam de Cristo na contemplação. S. João, o discípulo amado que, mais do que qualquer dos outros, experimentou a intimidade do Senhor, oferece uma descrição perfeita dessa atitude de dependência orante no outro João, o Batista, o primeiro celibatário cristão: “Quem recebe a noiva é o noivo” diz o Batista, “mas o amigo do noivo, que está presente e o escuta, enche-se de alegria, quando ouve a voz do noivo. Esta é a minha alegria, e ela ficou completa”. (Jo 3, 29) Cristo não tem outra noiva senão a Igreja, e o discípulo de Cristo não tem amigo melhor do que o noivo da Igreja. Basta-lhe estar próximo a Ele e ouvi-Lo: a voz do noivo enche-o de alegria na oração e contemplação. Nessa dependência de discípulo celibatário consiste sua alegria perfeita.
Embora a renúncia ao casamento e à família seja a causa da sua solidão em termos de intimidade humana, o sacerdote deve lembrar-se da existência de uma promessa correspondente ao seu compromisso. Ele encontra no tempo presente o cêntuplo de irmãos, irmãs e filhos. Amigo do noivo, na Igreja ele descobre a numerosa comunidade de todos os santos de hoje e de sempre. Recebe força e coragem daqueles que, assim como ele, quiseram seguir Cristo nessa vocação especial da vida celibatária. O sacerdote já não pode se considerar solitário na Igreja e na comunidade dos santos, pois ele é o amigo do noivo e pode engendrar-se novos irmãos pela compaixão e caridade. É membro do corpo de Cristo, e todos os membros desse corpo estão ligados entre si numa unidade absolutamente indissolúvel.
Em seu convite à vida celibatária, S. Paulo deseja atrair os cristãos para um estado de nobreza e para o que se fizer necessário para uni-los “sem impedimento ao Senhor”. (cf 1 Cor 7, 35) Essas palavras condensam perfeitamente o sentido profundo do celibato. É uma honra, uma bela e nobre condição (euschemon). Para melhor descrevê-lo, o Apóstolo emprega uma palavra que só ocorre uma vez no Novo Testamento e significa uma boa posição próxima a alguém (euparedron). Etimologicamente, esse adjetivo remete diretamente à missão de Maria, que se sentava perto de Cristo para ouvir sua palavra. O celibato constitui a melhor condição para a vida sacerdotal. Por fim, o advérbio que traduzimos por “sem impedimento” (aperispatos) volta a lembrar-nos dessa ligação singular com Jesus possibilitada pelo celibato, e da amorosa simplicidade que o alimenta.
O significado escatológico do celibato
Afora os sentidos prático e profundo a que aludimos, o celibato também tem um significado escatológico. O celibato voluntário por causa do Reino do Céu é o sinal de uma nova ordem na qual o matrimônio não é mais, como no Antigo Testamento, necessário para assegurar a descendência de Abraão, pai de todos os crentes. Pois na Igreja a filiação de Deus bem como a fraternidade dos crentes são de ordem espiritual.
“O tempo é breve”, diz S. Paulo, “… a figura deste mundo passa”. Por causa dessa certeza de que o fim se aproxima e de que o Reino está perto o cristão deve ter um espírito de despojamento das coisas deste mundo. Então “os que têm mulher vivam como se a não tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem”. (1 Cor 7, 29-31) O sentido escatológico, a certeza de estar no último ato da História, a expectativa da segunda vinda de Cristo incitam o cristão a não se apegar demais às realidades da vida humana, ao matrimônio, ao sofrimento, à alegria ou à propriedade. Naturalmente, é próprio da vocação do homem casado agradar a esposa e ocupar-se das coisas do mundo, mas ele precisa constantemente lembrar-se de que a figura deste mundo está passando. Não deve atribuir demasiada importância às suas tristezas e suas alegrias, pois sabe que no Reino do Céu os que agora choram serão consolados e que a alegria celeste será incomparavelmente maior do que a daqui. Por fim, deve estar firmemente convencido de que, na ordem do Reino, os ricos serão despedidos de mãos vazias e que os mansos possuirão a Terra. Portanto, deve viver sua vida sem se deixar dominar pelas atrações do mundo.
Todo cristão deve ter essa atitude escatológica, mas o sacerdote a viverá de modo mais concreto. Entre seus irmãos cristãos, que devem todos lidar com este mundo sem se prender a ele, o padre é um sinal do despojamento exigido pela espera do Reino. O celibato sacerdotal não implica, pois, esse sentido escatológico de maneira excludente, porém constitui um sinal extraordinário da nova ordem desligada deste mundo, em vias de extinção.
À pergunta maliciosa dos saduceus (que não acreditavam na ressurreição) a respeito de com quem estaria casada na após-vida a mulher que tivera sete maridos sucessivos, Jesus respondeu: “Os filhos deste mundo casam-se e se dão em casamento, mas os que serão julgados dignos do século futuro e da ressurreição dos mortos não terão mulher nem marido. Eles jamais poderão morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, porque são ressuscitados”. (Lc 20, 34-36; Mc 12, 25; Mt 22,30) O celibato consagrado é sinal da ressurreição e do Reino de Deus que se aproxima, pois na ressurreição e no Reino não haverá casamento. Por isso o celibato, na Igreja,lembra a nova ordem do Evangelho, enquanto o matrimônio tem suas raízes na ordem primitiva. No Reino de Deus a plenitude do amor será tal que ninguém sentirá mais a necessidade de uma intimidade limitadora. Ao contrário, esta pareceria uma diminuição do amor. Os sacerdotes, por conseguinte, são o sinal da plenitude do amor que se concretizará no Reino.
Ademais, o celibato tem a ver com a ressurreição dos mortos, é sinal da eternidade, da incorruptibilidade, da vida. O casamento tem como finalidade natural a procriação, assegura a continuação da raça humana e a criação de novos seres, pois os humanos estão fadados a morrer e precisam deixar descendentes. Mas na ressurreição dos mortos os que forem julgados dignos não mais verão a morte: “Eles jamais poderão morrer porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, porque são ressuscitados”. (Lc 20, 36) No outro mundo, pois eles são imortais, não haverá mais a necessidade de garantir descendência. Além disso, no Reino do Deus só existe um Pai; como os anjos, todos são chamados filhos de Deus. O celibato, em decorrência dessa relação com a ressurreição dos mortos, com a eternidade e com os anjos, é um sinal do mundo por vir, e o sacerdote, seguidor de Jesus Cristo, o vive com plenitude: no ministério do Evangelho, na oração contemplativa aos pés do Senhor, na proclamação do Reino de Deus por vir e no oferecimento do sacrifício eucarístico, condensação de todo o seu sacerdócio.
NOTAS
- Kittel, G. Theologisches Wörterbuch zum NT, t. II. p. 766.
- Barth, K. Die kirchliche Dogmatic, t. III, 6. p. 160.
- Letter of Ignatius to Polycarp, V, W. R. Shoedel, ed. Koester, Ignatius of Antioch, A commentary on the Letters of St. Ignatius of Antioch, Philadelphia, 1985. p. 272.
- Maria Madre del Signore, Immagine della Chiesa, Morcelliana, Brescia 1986. p. 41-56; L. Legrand, La virginitá dans la Bible, ‘Lectio divina’, 39, Le Cerf, Paris 1964. p. 107-127.