Pe. Françoá Costa
Infelizmente, não encontrei nenhuma tradução do Mysterium des Kreuzes (Paderborn: Bonifatius-Druckerei, 1954) do conhecido teólogo da liturgia, Odo Casel. Não obstante, pude ter acesso a uma tradução espanhola dessa obra[1] com uma apresentação do Dr. Neunheuser, OSB, na qual ressalta a centralidade do mistério da Cruz nos escritos de Casel, a tal ponto de que a sua obra poderia ser descrita como “doutrina da Cruz”.
O alemão Odo Casel (1886-1948) é bastante conhecida pelos liturgistas. Nasceu em Cobienz Lützel em 1886. Foi monge beneditino, sacerdote, doutor em filosofia e em teologia, um teólogo bastante original. O mistério do culto cristão (1932) é, talvez, a sua obra mais conhecida, e, no entanto, a sua doutrina sobre o mistério também aparece nessa obra póstuma, O mistério da Cruz, talvez pouca conhecida. O Pe. Casel morreu em 1948 enquanto celebrava a Vigília Pascoal na Abadia das beneditinas da Santa Cruz de Herstelle.
Casel – segundo Teodora Schneider, beneditina de Herstelle – tem uma maneira própria de ver as coisas: como lhe interessa o que há de mais real nesse mundo e na vida dos homens, busca a realidade por antonomásia, Deus. Para Casel, o símbolo é muito importante porque é “symbállein” (ação de unir), une a ação do homem e a ação de Deus. O mundo moderno, ao contrário, vive a “diáballein” (ação de dividir, separar). O teólogo beneditino procura contemplar o mistério desde dentro do mistério. Não se trata, por exemplo, de ler as Tradições antigas, a Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja, para depois fazer um grande sistema, mas de contemplar os mistérios com calma, observar desde todos os ângulos possíveis e realizar uma contemplação sapiencial.
É indiscutível que uma atitude contemplativa é muito importante na liturgia. Nesse sentido, talvez o mais importante nos dias atuais é descobrir que essa atitude é essencial naquilo que chamamos com razão actuosa participatio, participação ativa. Quem contempla o Mistério de Deus procurando entendê-lo e amá-lo na oração participa ativamente na Sagrada Liturgia. Escutei – não faz muito tempo – que aqueles que participaram mais ativamente da liturgia foram os santos. Logicamente, apresentar a contemplação como elemento essencial da participação ativa na liturgia não exclui outros aspectos também importantes dessa participação. Estou convencido de que O mistério da Cruz pode ajudar-nos a aprofundar nessa atitude contemplativa.
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O livro gira ao redor da Cruz levando-nos a uma dupla consideração. Na primeira parte da obra, Casel contempla a vida do cristão sob o signo da Cruz; na segunda, a Cruz no Ano Litúrgico da Igreja. Sem dúvida, a primeira parte expõe umas idéias que são verdadeiramente nucleares e que aparecem em outros momentos da contemplação da Santa Cruz. O livro é o resultado de várias palestras do autor que foram dadas, principalmente, por ocasião da festa da Exaltação da Santa Cruz. O leitor tem a impressão de que o autor simplesmente se imagina diante da Cruz e ao redor dela dá voltas contemplando-a desde todas as perspectivas possíveis ao seu olhar cheio de fé.
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A Cruz e o Mistério de Deus encontram-se intimamente unidos. A Cruz é reveladora tanto da grandeza de Deus quanto da feiura do pecado. Depois dessa apreciação, Casel nos mostra o Mistério da Cruz em relação com o Mistério da Igreja, Corpo de Cristo que nasceu do seu Precioso Sangue na Cruz. O autor chama a Igreja de concorporea Christi, concorpórea de Cristo. Deus vem ao nosso encontro, evento de graça, através do Mistério da Cruz, motivo suficiente para que amemos a Santa Cruz. No seguimento do Crucificado, o cristão vive no Pneuma, no Espírito Santo, e não na carne. Aquele que renasceu “da água e do Espírito” (Jo 3,5) sabe que ad altiora natus est, nasceu para as realidades superiores. Para conseguir chegar até lá tem que lutar e mortificar-se naquilo que tem de carnal.
O nosso autor observa que nas culturas antigas, as árvores – especialmente os cedros – eram divinizadas. A Sagrada Escritura repugna essa visão divinizadora de árvores. No entanto, há três árvores na Bíblia muito importantes: a da vida – que segundo a vontade de Deus, o homem deveria comer os seus frutos e viver –; a da ciência do bem e do mal – da qual o homem comeu, instigado pelo demônio, preferindo um conhecimento fora da submissão e, por tanto, longe de Deus –; finalmente, a árvore da Cruz, que foi colocada na fronteira entre a morte e a vida, entre o mundo pecador e o “mundo” de Deus. Através da árvore da Cruz se pode ter acesso à árvore da vida que está no Paraíso. O ser humano, depois de ter sido expulso do Paraíso, não teve mais acesso à árvore da vida. Deus “colocou ao oriente do jardim do Éden querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn 3,24). A árvore da Cruz e a árvore da Vida, para alguns Padres da Igreja, se identificam: Crux Christi est lignum vitae, a cruz de Cristo é o lenho da vida (S.Atanasio Sinaíta). A Cruz aparece como condição necessária para aceder à árvore da vida. Graças à satisfação que Cristo ofereceu ao Pai, podemos ter novamente acesso a essa árvore.
Ainda que busquemos a árvore da vida, às vezes podemos acabar dançando ao redor da árvore da morte, que é um ídolo. Isso acontece quando se deseja encontrar a felicidade nas coisas imediatas, aqui e agora, e não se busca a árvore que está na fronteira e que dá acesso à árvore da vida. Temos que aplicar diariamente a nossa vida a teologia da Cruz, ou seja, carregar a nossa Cruz através da obediência e do amor.
Uma contradição aparente: a Cruz é portadora de alegria. Um soldado, por exemplo, não pode ser condecorado antes da batalha; somente depois da peleja e das dores é que vem a honra e a condecoração. Nós celebramos a festa da Cruz porque dela vem a verdadeira vida. A glória da Cruz é interior, profunda, pura e divina e, por isso, alegre. O selo da Cruz nos abre os divinos mistérios e faz com que os entendamos. É através da Cruz que nós amadurecemos para a vocação que nos faz participar da bem-aventurança eterna. Nessas realidades profundas encontra-se a verdadeira alegria.
O mysterium crucis in terra nos leva a obter os redemptionis proemia in coelo, ou, com outras palavras, precisamos ir da terra ao céu passando necessariamente pela Cruz. A vida de um cristão não pode, portanto, entender-se sem a Cruz, que é o símbolo de Cristo e da Igreja. O Mistério da Cruz e o de Cristo encontram-se tão intimamente unidos que é impossível separá-los. Todos os cristãos nascem marcados por esse signum, o sinal da Santa Cruz, distintivo do cristão.
Celebrar a exaltação da Santa Cruz é celebrar a exaltação da humilhação. Essa afirmação não é contraditória? Muitos viram na Cruz e na sua celebração festiva uma contradição e renegaram da Cruz em nome da vida segundo esse mundo. No entanto, a vida segundo esse mundo termina geralmente em angustia, desespero e morte. A Cruz nos introduz em outra percepção de valores e nos faz passar através das vicissitudes presentes com o olhar fixo nas realidades que nos esperam. Deus falou por meio da Cruz e quis introduzir-nos na Vida pela Cruz. Certo é que, noutros tempos, a cruz era uma miséria, sem brilho e objeto de maldição, mas, Cristo, ao abraçá-la, consagrou-a e abençoou-a.
Casel gostava dos paradoxos tão típicos do cristianismo: ainda que sejamos conscientes da importância da Santa Cruz, temos o costume de pedir ao Senhor que nos livre pelo sinal da Santa Cruz. Nesse sentido, o nosso teólogo diz que sentir medo da Cruz é algo natural, ao mesmo tempo em que é profundamente cristão sentir as próprias misérias e superá-las com a graça de Deus. Para o cristão, portador do Espírito, as próprias misérias são ocasiões para amar mais a Deus.
É muito interessante a reflexão que Casel faz sobre a morte que alcança a todos e que a modernidade procura fugir através da técnica e de diversões superficiais. O mundo moderno tenta tratar a morte com eufemismos. Cristo venceu a morte com a sua entrega amorosa e obediente ao Pai. O nosso Redentor precipitou-se no abismo da destruição aparente porque confiou que o Pai o sustentaria. E assim foi! A morte foi vencida! Ainda que, externamente, a morte existe, ela pertence ao tempo presente; interiormente, ela já está vencida. Depois da morte, nós não iremos ao abismo sombrio da morte, mas abandonando-nos em Deus seremos acolhidos em suas mãos paternas.
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Na segunda parte, o autor mostra a presença da Cruz nas celebrações que acontecem no decorrer do Ano Litúrgico da Igreja: Advento, Natal, Quaresma, Páscoa, Tempo Comum. Mas, primeiramente, nos faz considerar o fato de que o tempo foi superado. Ainda que falemos de “Ano Litúrgico”, o tempo já “não existe”. Jesus Cristo assumiu toda a história e todo o peso da temporalidade. Mas quando Jesus foi crucificado, também foi crucificado com ele esse peso. Naqueles instantes deu-se o “entardecer do mundo”. O Ano Litúrgico aparece, nesse contexto caseliano, como uma realidade de outro mundo que foi introduzida no nosso. O Ano Litúrgico é o Ano de Deus, símbolo da eternidade; é um ano que não está submetido ao tempo, é como um anel que leva em si a presença de Deus e cujo selo é a Páscoa do Senhor celebrada em Mistério e Sacramento na Quinta-feira santa.
Um dos primeiros mistérios do Ano Litúrgico é o Natal e, com ele, o autor contempla algo da glória de Deus, já que “o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória” (Jo 1,14). Quando os pastores foram ver o Menino Jesus, encontraram-no num presépio. São Paulo fala da sabedoria de Deus, que não é orgulhosa como a do mundo, e da sabedoria da Cruz, que é “loucura para os que se perdem” (1 Cor 1,18). Precisamos mudar a nossa maneira de pensar, pois o cristianismo aparece como uma realidade cheia de paradoxos: Cruz e Vitória, ignomínia e glória, morte e vida, trevas e luz. Somente com os nossos esquemas lógicos segundo o raciocínio humano não entenderemos a lógica de Deus.
Nós adoramos a Santa Cruz. Mas, será que essa adoração não é uma espécie de idolatria pagã? De fato, há escritos cristãos que parecem conduzir-nos nessa direção. Minúcio Félix, um defensor da fé no século II, dizia que eles, os cristãos, nem veneravam nem desejavam as cruzes. E isso é verdade em relação às cruzes consideradas enquanto pedaços de madeira. Nós, cristãos, adoramos o Crucis signaculum, ou seja, o que a Cruz significa; é nesse sentido que nós adoramos a Santa Cruz. A glória de Cristo é inseparável da sua humilhação. É verdade que Cristo sempre é glorioso enquanto Deus e, não obstante, a glória que lhe adveio enquanto homem é inseparável da humilhação da Cruz. Adorando a Santa Cruz, ou seja, o Senhor glorioso que leva em si as marcas da Paixão, nós queremos que a Cruz seja uma realidade nas nossas vidas. Não se trata somente de beijá-la ou ajoelhar-se diante dela na sexta-feira santa, mas de honrá-la através da imitação da vida do Salvador.
Depois de contemplar outros mistérios da vida do nosso Salvador, Casel nos descreve a Páscoa como aquilo que é, uma “passagem”, e defende que a celebração pascoal começa na Septuagésima, a nossa atual Quaresma, e dura até os últimos dias de Pentecostes. Afirma também que Pentecostes começa na manhã radiante da Ressurreição. Essa maneira de pensar obedece ao que nos diz a Sagrada Escritura em relação ao êxodo dos israelitas desde a escravidão do Egito até a chegada à terra prometida e, no caso de Pentecostes, ao fato de que Cristo ressuscitado é quem dá o Espírito Santo.
A Páscoa é a obra redentora de Cristo realizada na sua morte e ressurreição. Sacramentalmente, com palavras e elementos sensíveis, a Igreja faz presente a Páscoa do Senhor todos os anos no Tríduo Sacro. O domingo, por sua vez, é a celebração semanal desse acontecimento. Cada dia, e em cada celebração da Eucaristia, também faz-se presente a Páscoa do Senhor. Fica claro, portanto, que nós entramos na obra da Redenção realizada por Cristo através das celebrações litúrgicas, principalmente da Santa Missa. Nós somos os membros de Cristo e participamos da ação de Cristo, nossa Cabeça. Ao apresentar as coisas dessa maneira, fica patente que nos encontramos no núcleo da teologia caseliana, que depois apareceria na Constituição conciliar sobre a Liturgia quando diz que através da liturgia se atualiza a obra da nossa Redenção[2].
Quase ao final do livro, encontraremos umas profundas considerações sobre o domingo como festa pascoal. Além do mais, Casel tira duas conseqüências práticas dessas considerações teológicas. A primeira é que deveríamos chamar o “domingo” como aquilo que é de verdade, Dia do Senhor, e não “dia do Sol” (Sonntag, Sunday); em português, “domingo” significa exatamente isso: Dia do Senhor. A segunda é que o domingo deveria ser um dia dedicado à oração e à leitura da Bíblia.
Odo Casel tinha um bom gosto poético. A imagem do crepúsculo foi-lhe útil para falar do final do Ano Litúrgico. Em continuidade com essa figura, é preciso dizer que a Igreja é mais bem representada em relação ao sol da manhã que com o crepúsculo da tarde: ela passa pela noite com Cristo e ressurge na manhã da Páscoa gloriosa. Todos nós entramos – no momento do nosso Batismo – na noite do sepulcro; a Igreja gera os seus filhos durante a noite e lhes dá a luz na manhã radiante e vital da Páscoa.
A Parusia – como é lógico – é o último mistério da nossa reflexão em conexão com a Cruz. A Segunda vinda do Senhor, que acontecerá na consumação dos últimos tempos, já começou a ser preparada na Paixão de Cristo, que é o começo do Juízo: “agora é o juízo deste mundo” (Jo 12,31). A Igreja de Cristo encontra-se, estando nos tempos da graça, na expectação da Parusia. A nossa vida no momento presente é a noite que leva as realidades escatológicas nas próprias entranhas. Cada um de nós deve decidir desde agora se quer seguir o sinal do Filho do Homem ou prefere leva a marca do Anticristo.
[1] CASEL, O., Misterio de la Cruz, Madrid: Guadarrama, 1961, 379 pp.
[2] Cfr. Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrossanctum Concilium, 2.