Comentário à Carta Apostólica Ordinatio Sacerdotalis

Com a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis (sobre a ordenação reservada somente aos homens), o Sumo Pontífice João Paulo II não proclama nenhuma doutrina nova. Simplesmente confirma o que toda a Igreja, tanto do Oriente como do Ocidente, soube e viveu sempre na fé: sempre reconheceu na figura dos doze Apóstolos o modelo normativo de todo ministério sacerdotal, e a esse modelo tem-se mantido desde o princípio. Por sua parte, era consciente de que os doze homens, com os quais segundo a fé da Igreja começou o ministério sacerdotal na Igreja de Jesus Cristo, ficaram vinculados ao mistério da Encarnação, e assim foram capacitados para representar Cristo, para serem imagem viva e operante do Senhor. Neste século, dois fatores fizeram com que muitos considerassem cada vez mais discutível a certeza até agora indiscutida sobre a vontade instituidora de Cristo. Onde a Escritura é lida independentemente da tradição viva, de modo puramente historicista, o conceito de instituição perde sua evidência, e o início do sacerdócio já não aparece como descoberta e reconhecimento da vontade de Cristo na Igreja nascente, mas como um processo histórico, que não foi precedido por nenhuma vontade instituidora clara e que, portanto, poderia ter-se desenvolvido de modo substancialmente diverso. Assim, o critério da instituição perde praticamente sua validade e pode ser substituído pelo critério da funcionalidade. Essa aparição de uma nova relação com a história vai unida às abordagens antropológicas de nosso tempo: a transparência simbólica da corporeidade do ser humano, que é óbvia para o pensamento sacramental, é substituída pela equivalência funcional dos sexos; aquilo que até hoje havia sido considerado como vínculo com o mistério da origem, agora é considerado apenas como discriminação de metade da Humanidade, qual resquício arcaico de uma imagem superada do ser humano, à qual deve-se contrapor a luta pela igualdade de direitos. Em um mundo totalmente orientado à funcionalidade, torna-se difícil até mesmo o simples fato de perceber outros pontos de vista que não sejam os da funcionalidade; a autêntica natureza do sacramento, que não pode ser reduzida à funcionalidade, dificilmente pode encontrar consideração.

Nessa situação, correspondia ao magistério pontifício a tarefa de recordar o conteúdo essencial da tradição. Nesse contexto se coloca a declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Inter Insigniores sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial, publicada em 15 de outubro de 1976 com a aprovação e por decisão do Papa Paulo VI.

Sua afirmação central reza assim: “Ecclesiam, quae Domini exemplo fidelis manere intendit, auctoritatem sibi non agnoscere admittendi mulieres ad sacerdotalem ordinationem” (Proêmio). Com esta frase, o magistério da Igreja se declara a favor do primado da obediência e dos limites da autoridade da Igreja: a Igreja e seu magistério não têm autoridade por si mesmos; sua autoridade lhes vem do Senhor. A Igreja crente não lê e vive as Escrituras por meio de uma reconstrução historicista, mas na comunidade viva do povo de Deus de todos os tempos; sabe-se vinculada a uma vontade que a precede, a uma instituição. Para ela, essa vontade que a precede – a vontade de Cristo – se expressou no fato da escolha dos Doze.

A carta apostólica Ordinatio sacerdotalis fundamenta-se na declaração Inter Insigniores e a pressupõe. Ao mesmo tempo, coloca-se em continuidade com outros textos do magistério que apareceram sucessivamente e que gostaria de recordar aqui:

Na carta apostólica Mulieris dignitatem, o Sumo Pontífice escreve: “Cristo, chamando como Apóstolos seus apenas a homens, o fez de modo totalmente livre e soberano” (n. 26).

Na exortação apostólica Christifideles laici, o Papa declara: “Na participação na vida e na missão da Igreja, a mulher não pode receber o sacramento da ordem; nem, portanto, pode exercer as funções próprias do sacerdócio ministerial. Esta é uma disposição que a Igreja comprovou sempre na vontade precisa – totalmente livre e soberana – de Jesus Cristo, o qual chamou somente varões para serem seus apóstolos” (n. 51).

O Catecismo da Igreja Católica recolhe a mesma doutrina, afirmando que “o Senhor Jesus escolheu homens (viri) para formar o colégio dos doze apóstolos, e os apóstolos fizeram o mesmo quando escolheram seus colaboradores que lhes sucederiam em sua tarefa… A Igreja se reconhece vinculada por esta decisão do Senhor. Esta é a razão pela qual as mulheres não recebem a ordenação” (n. 1577).

A nova intervenção do magistério

Apesar dessas claras afirmações do magistério, as inseguranças, as dúvidas e as discussões sobre o problema da ordenação das mulheres continuaram também na Igreja católica, e em algumas partes inclusive se acentuaram ainda mais. Uma concepção unilateral da infalibilidade como única forma vinculante de decisão da Igreja tornou-se pretexto para relativizar todos os documentos citados e para declarar que a questão segue ainda aberta. Essa situação de incerteza sobre uma questão essencial para a vida da Igreja obrigou o Papa a intervir novamente, com a finalidade explícita – como diz na conclusão do documento – de “afastar toda dúvida sobre uma questão de grande importância” (n. 4).

Se a Igreja se expressa aqui abertamente e sem ambiguidades sobre os limites de sua autoridade, desde logo esse fato tem, antes de tudo, consequências práticas no âmbito disciplinar, mas não se trata exclusivamente de uma questão disciplinar, ou seja, de um problema de práxis eclesial, mas de um caso em que a práxis é expressão e forma concreta de uma doutrina da fé: o sacerdócio, segundo a fé católica, é sacramento, ou seja, não algo que ela tenha inventado por motivos práticos, mas algo que lhe foi dado pelo Senhor, e ao qual, por conseguinte, não pode dar a forma que preferir, mas que só pode transmitir com respeitosa fidelidade. Portanto, também a questão do sujeito, isto é, do possível destinatário da ordenação, já está predeterminada, e não fica sujeita às decisões da Igreja: é uma questão que atinge a própria constituição divina da Igreja (cf. ib.).

A razão fundamental da doutrina exposta

A carta apostólica distingue dois níveis na posição da Igreja:

a) O fundamento doutrinal da verdade de que se trata encontra-se precisamente na vontade e no exemplo de Cristo, como se manifesta na eleição dos Doze, que depois receberam o título de doze Apóstolos. O documento explica, com profundidade teológica, a partir da Escritura, esta instituição realizada por Cristo, que foi o resultado de uma noite de oração com o Pai (Lc 6, 12-16): a escolha de Cristo é, ao mesmo tempo, dom do Pai. O testemunho da Escritura, desde o início e sem fissuras, é compreendido e vivido assim na tradição como: encargo vinculante de Cristo; o magistério está consciente de estar posto a serviço dessa interpretação (1).

b) No entanto, essa vontade de Cristo não é de tipo positivista ou arbitrário, mas exige um segundo nível de motivações antropológicas, com as quais se trata de compreender essa vontade. A vontade de Cristo é: sempre uma vontade do Logos e, portanto, uma vontade que tem um sentido. Tarefa do pensamento crente é investigar a sensatez dessa vontade, para que possa ser transmitida e vivida segundo o seu significado e com adesão interior.

Enquanto a declaração Inter Insigniores, na quinta parte, dedica-se amplamente a essa tentativa de compreender desde seu interior a vontade de Cristo, o novo documento limita-se essencialmente ao primeiro nível, sem desconhecer a importância do segundo. O Papa impõe-se aqui um limite: é consciente de seu dever de pôr em relevo a decisão fundamental, que a Igreja não tem a faculdade de escolher, mas que deve acolher com fidelidade; deixa à teologia a tarefa de elaborar as implicações antropológicas dessa decisão e mostrar sua validade no contexto da discussão atual sobre o ser humano. Aquilo que ao início mencionei brevemente sobre a imagem simbólico-sacramental do homem frente a um modelo funcional, mostra quão difícil é essa tarefa, mas também mostra quão necessária ela é e o mérito que implica comprometer-se com ela. Certamente, a Igreja deve aprender da visão moderna do ser humano, mas também o mundo moderno deve aprender novamente da sabedoria que se conserva na tradição da fé, e que não pode ser descartada simplesmente taxando-a de patriarcalismo arcaico. Com efeito, onde se perde o vínculo com a vontade do Criador e, dentro da Igreja, o vínculo com a vontade do Redentor, a funcionalidade converte-se facilmente em manipulabilidade. A nova atenção com respeito à mulher, que era o ponto de partida justificado dos movimentos modernos, desembocou rapidamente no desprezo do corpo. A sexualidade já não é vista como expressão essencial da corporeidade humana, mas apresenta-se como uma exterioridade secundária e, em definitivo, insignificante.
O corpo já não pertence ao que é característico do ser humano, mas é considerado como um instrumento de que se faz uso.

Mas voltemos à autolimitação do nosso documento, que, como já dissemos, considera as reflexões antropológicas não como tarefa própria, mas como tarefa dos teólogos e dos filósofos. Com essa limitação, o Papa claramente se coloca mais uma vez na linha de fundo que a declaração Inter Insigniores abriu. O ponto de partida é o vínculo com a vontade de Cristo. O Papa torna-se assim o garante da obediência. A Igreja não inventa o que quer fazer, mas, na escuta do Senhor, descobre o que deve ou não deve fazer. Essa consideração foi decisiva para a determinação que tomaram em consciência os bispos e sacerdotes anglicanos, que agora se sentem impulsionados a passar para a Igreja católica. Como eles mesmos explicaram com suficiente clareza, sua decisão não é um voto contra as mulheres, mas uma opção pelos limites da autoridade da Igreja. Isso, por exemplo, é expresso muito claramente pelo bispo Dom. G. Leonard no prefácio da história teológica do anglicanismo escrita por A. Nichols. Ele fala de quatro desenvolvimentos recentes, que dissolvem a estrutura essencial para a dialética da concepção anglicana de Igreja. O quarto desses desenvolvimentos ele vê no “poder que foi dado ao Sínodo Geral da Igreja da Inglaterra de decidir questões de doutrina e de moral…, e de fazê-lo com votações por maioria, como se nessas matérias a verdade pudesse ser estabelecida dessa maneira. A Igreja da Inglaterra rejeita a autoridade doutrinal do Papa, mas o Sínodo trata de exercer uma função de magistério, que teologicamente não tem fundamento e que, na prática, pretende ser infalível” (2). Enquanto isso, vozes semelhantes se elevaram também na Igreja luterana na Alemanha, onde, por exemplo, o professor Reinhold Slenczka se opõe com energia ao fato de que decisões tomadas por maioria por instâncias eclesiais sejam praticamente consideradas como necessárias para a salvação, e assim se esquece que o magnus consensus na Igreja, que os Reformadores declararam como instância suprema, consiste na concordância do ensinamento eclesial com a Escritura e com a Igreja católica (3). O Papa, com o novo documento, não quer impor sua própria opinião, mas recordar precisamente o fato de que a Igreja não pode fazer o que quiser, e que também ele, mais ainda, precisamente ele, não tem a faculdade de fazê-lo. Aqui não se trata de hierarquia contra democracia, mas de obediência contra autocracia: em matéria de fé e de sacramentos, assim como sobre os problemas fundamentais da moral, a Igreja não pode fazer o que deseja, mas se converte em Igreja precisamente na medida em que se adere à vontade de Cristo.

Pressupostos metodológicos e autoridade do texto

Chegados a este ponto, ainda pode surgir uma objeção. Pode-se dizer: como ideia, é boa e justa. Mas a Escritura não a ensina de forma tão clara. Assim, remetem-se a várias passagens que parecem relativizar ou anular essa convicção da tradição. Afirma-se, por exemplo, que São Paulo, na carta aos Romanos (16, 7), parece indicar como apóstola ilustre uma mulher; ou seja, Júnias, junto com seu marido Andrônico, que chegaram a Cristo antes de mim. Afirma-se também que a diaconisa Febe foi algo como uma responsável de comunidade; que guiou a comunidade em Cencréia e foi muito conhecida também fora dela (Rom 16, 1-2). Naturalmente, a esse respeito, convém dizer, antes de tudo, que essas interpretações são hipotéticas e podem reivindicar apenas um grau de verossimilhança muito limitado. Isso nos leva mais uma vez à pergunta que já enfrentamos desde o início: quem interpreta verdadeiramente a Escritura? Onde adquirimos a certeza sobre o que ela quer dizer? Se só se dá a interpretação puramente historicista, e nada mais, então ela não pode nos dar nenhuma certeza definitiva. As conclusões da investigação histórica, por sua natureza, são sempre hipotéticas: nenhum de nós encontrava-se presente. A Escritura pode converter-se em fundamento de uma vida somente quando é confiada a um sujeito vivo, o mesmo do qual ela nasceu. A Escritura teve sua origem no povo de Deus guiado pelo Espírito Santo, e esse povo, esse sujeito, não deixou de existir. O Concílio Vaticano II expressou tudo isso da seguinte maneira: “Quo fit ut Ecclesia certitudinem suam de omnibus revelatis non per solam sacram Scripturam hauriat” (Dei Verbum, 9).

Isso significa que uma certeza puramente histórica, prescindindo da fé vivida pela Igreja ao longo dos séculos, não existe, mas essa impossibilidade de uma fundamentação puramente histórica não diminui em nada o significado da Bíblia: não exclui, mas implica que a certeza da Igreja, comunicada em sua doutrina aos fiéis, é verificável também na e pela Sagrada Escritura. Segundo a visão do Vaticano II, Escritura, tradição e magistério não devem ser considerados como três realidades separadas, mas a Escritura, lida à luz da tradição e vivida na fé da Igreja, se abre neste contexto vital em seu pleno significado.
O magistério tem a missão de confirmar essa interpretação da Escritura, que a escuta da tradição na fé torna possível.

A tradição da Igreja sempre reconheceu na eleição dos Doze o ato de Jesus que deu início ao sacerdócio do Novo Testamento, vendo nos Doze e no ministério apostólico dos Doze a origem normativa do sacerdócio. A teologia católica admite também outras dimensões simbólicas do grupo dos Doze: são também início e símbolo do novo Israel. Mas essas dimensões simbólicas ulteriores não tiram nem diminuem a realidade sacerdotal constituída pelo Senhor com a vocação dos Doze. Também para essa interpretação da Escritura vale o princípio que recordamos antes: “Ecclesia certitudinem suam… non per solam Scripturam haurit.”

Em presença de um texto magisterial com o peso desta carta apostólica, coloca-se agora, de forma inevitável, a pergunta: que grau de obrigatoriedade possui este documento? Diz-se explicitamente que o que nele se afirma deve ser considerado como definitivo na Igreja, e que essa questão se encontra fora do jogo das opiniões flutuantes. Assim sendo, trata-se de uma declaração dogmática? A esse respeito, deve-se responder que o Papa não propõe nenhuma nova fórmula dogmática, mas confirma uma certeza que na Igreja tem sido vivida e afirmada constantemente. Em linguagem técnica, dever-se-ia dizer: trata-se de um ato do magistério autêntico ordinário do Sumo Pontífice, e, portanto, de um ato não definitório nem solene ex cathedra, ainda que o objeto desse ato seja a declaração de uma doutrina ensinada como definitiva e, por conseguinte, não reformável. Isso significa, como sublinha a apresentação do documento, que ele não se propõe como ensinamento prudencial, nem como hipótese mais provável, nem como sugestão operativa, nem como simples disposição disciplinar, mas precisamente como doutrina certamente verdadeira. O proprium da nova intervenção magisterial não diz respeito, por conseguinte, à explicitação do conteúdo da doutrina proposta, mas unicamente à estrutura formal e gnosiológica da mesma, no sentido de que se torna explícita, com a autoridade apostólica do Santo Padre, uma certeza que sempre existiu na Igreja e que alguns haviam colocado em dúvida; dá-se a ela uma forma concreta, que insere também de uma forma vinculante aquilo que sempre se viveu, da mesma formo como, quando se recolhe a água de um manancial, ela não é alterada, mas protegida contra uma possível dispersão ou alteração.

Aspectos atuais relacionados com a doutrina.

Mencionam-se aqui duas questões de particular atualidade, que podem apresentar também consequências bastante delicadas na aceitação do documento: a questão da discriminação da mulher e a questão do diálogo ecumênico.

1) O Sumo Pontífice, recordando a esse respeito também a declaração Inter insigniores, tem presente a exigência, hoje particularmente sentida, de evitar na Igreja toda discriminação entre homem e mulher. O Santo Padre recorda, a este propósito, a pessoa da bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja: o fato de que ela “não recebeu a missão própria dos Apóstolos nem o sacerdócio ministerial mostra claramente que a não admissão das mulheres à ordenação sacerdotal não pode significar uma menor dignidade nem uma discriminação para com elas” (n. 3).

Certamente, para que esta afirmação seja crível, é necessário um ulterior esclarecimento sobre a natureza do ministério sacerdotal. Na discussão atual sobre a ordenação da mulher, o sacerdócio, como se fosse algo óbvio, se entende como poder de decisão (decision making power). Se essa fosse sua essência, seria certamente difícil compreender por que a exclusão das mulheres da decision making e, portanto, do poder na Igreja, não deveria constituir uma discriminação. Ora, vimos antes que a tarefa própria do Papa na Igreja consiste em ser o garante da obediência com respeito à palavra de Deus, que não se pode manipular. O mesmo vale, nos diversos níveis, para os bispos e para os sacerdotes. Por exemplo, se nos diferentes Conselhos se reserva a um sacerdote o direito de veto em questões de fé e de moral, não se trata de afirmar prerrogativas hierárquicas contra a vontade da maioria (prescindindo agora do fato de como essas maiorias se constituíram e a quem elas representam na realidade), mas trata-se mais propriamente de fixar o ponto onde termina a vontade da maioria e onde começa a obediência: obediência com respeito à verdade, que não pode ser produto de votações. Quem lê atentamente o Novo Testamento não encontrará em parte alguma o sacerdote descrito como decision maker. Essa visão só pode nascer em uma sociedade puramente funcional, na qual tudo nós mesmos estabelecemos. O sacerdote, na visão neotestamentária, deve ser entendido a partir de Cristo crucificado, a partir do Cristo que lava os pés, a partir do Cristo que prega, que diz: “Minha doutrina não é minha” (Jo 7,16). A inserção no sacramento é uma renúncia a si mesmo para o serviço de Jesus Cristo. Onde o sacerdócio é vivido de modo correto, também isso resulta evidente, e a ideia de uma rivalidade desaparece por si mesma: isso é plenamente evidente nos grandes santos sacerdotes, desde São Policarpo de Esmirna até o Cura d’Ars e as figuras carismáticas dos sacerdotes do nosso século. A lógica das estruturas de poder mundanas não basta para compreender o sacerdócio, que é um sacramento e não uma modalidade organizacional social; não pode ser compreendido com os critérios da funcionalidade, do poder de decisão e da conveniência prática, mas somente a partir do critério cristológico, que lhe confere sua natureza de sacramento, como renúncia ao próprio poder por obediência a Jesus Cristo. Tudo isso sem que haja nenhuma inferioridade da mulher, cuja presença e cuja missão na Igreja, mesmo não estando ligadas ao sacerdócio ministerial, são absolutamente necessárias, como o testemunha de modo exemplar a figura da Virgem Maria.

Desde já, é inevitável aqui fazer um exame de consciência. Por desgraça, não há apenas sacerdotes santos, mas também equívocos vivos, nos quais de fato o sacerdócio parece reduzir-se à decision making e ao poder. Aqui há uma tarefa de grande responsabilidade para a formação ao sacerdócio e para a direção espiritual no sacerdócio: onde a vida não dá testemunho da palavra da fé, mas a desfigura, a mensagem não pode ser compreendida.

Nesse contexto, gostaria de recordar algumas palavras dos Pontífices, que sublinham quanto dissemos. Paulo VI dizia: “Nós não podemos mudar o comportamento de nosso Senhor nem seu chamado às mulheres; mas devemos reconhecer e promover a função das mulheres na missão evangelizadora e na vida da comunidade cristã” [Discurso ao Comitê para o Ano Internacional da Mulher, 18 de abril de 1975. AAS 67 (1975). 266; cf. «L’Osservatore Romano», edição em língua espanhola, 11 de maio de 1975, pág. 9].

E João Paulo II prossegue nessa linha, dizendo: “É de todo necessário, então, passar do reconhecimento teórico da presença ativa e responsável da mulher na Igreja à realização prática” (Christifideles laici, 51). Na explicação do documento pontifício, convém insistir no forte reconhecimento de que o homem e a mulher têm igual dignidade, sobretudo com vistas à santidade; tudo o mais na Igreja é apenas suporte instrumental para que haja santidade. Este é o fim comum de todas as pessoas humanas; em definitivo, diante de Deus conta somente a santidade. Ora, junto à igual dignidade humana dos sexos deve-se ter sempre presente também sua missão específica e assim rejeitar todo novo maniqueísmo, que reduz o corpo a realidade insignificante, puramente biológica, e desse modo tira da sexualidade sua dignidade humana, sua beleza específica e já só pode perceber um ser humano abstrato, assexuado.

2) Quero acrescentar algumas quantas palavras sobre a questão ecumênica. Falando seriamente, ninguém poderá afirmar que este novo documento constitui um obstáculo para o caminho ecumênico. Ele exprime a obediência da Igreja com respeito à palavra bíblica vivida na tradição; é precisamente uma autolimitação da autoridade eclesial. Garante assim a comunhão íntegra com as Igrejas do Oriente tanto na compreensão da palavra de Deus como no sacramento, que edifica a Igreja. Desse modo, não se constitui um novo ponto de controvérsia com respeito às comunidades originadas da Reforma, dado que a questão da natureza do sacerdócio, isto é, se é sacramento ou somente um serviço de regulação para a ordem da comunidade a partir dela mesma, já era desde o início um dos pontos da controvérsia que levaram à ruptura no século XVI. O fato de que a Igreja católica, assim como as Igrejas ortodoxas, permaneça em sua convicção de fé, que vê como obediência com respeito ao Senhor, não pode causar espanto nem ferir a ninguém. Ao contrário, isso será ocasião para refletir juntos ainda mais atentamente sobre os problemas de fundo urgentes: a relação entre Escritura e tradição, a estrutura sacramental da própria Igreja e o caráter sacramental do ministério sacerdotal. Clareza na expressão e vontade comum de obediência com respeito à palavra de Deus são os fundamentos do diálogo. Não se deu origem a uma nova confrontação, mas trata-se de um novo convite a refletir sobre a divisão existente a partir de suas profundidades e, tendo fixa a mirada no Senhor, a buscar novamente e cada vez mais intensamente o caminho da unidade.

Notas
(1) O significado normativo da instituição do grupo dos Doze está sempre submetido à relativização. É impressionante a contribuição muito documentada de Beinert: “Reflexões dogmáticas sobre o tema do sacerdócio da mulher” em ThQ 173 (1993) 186-204. Uma análise detalhada dos argumentos ali propostos ultrapassaria os limites deste breve ensaio. Mas mesmo sem grandes análises críticas, poder-se-ia demonstrar facilmente que os exemplos aduzidos por Beinert de ações de Jesus não normativas não podem ser comparados com a escolha dos Doze. Por exemplo, veja-se a página 189: “Ainda que Jesus… fosse muito humano, não libertou da escravidão o servo do centurião de Cafarnaum”. Certamente, a omissão de uma ação socialmente revolucionária não pode ser posta no mesmo plano que o ato positivo do chamado dos Doze, motivado no Novo Testamento a partir do centro da consciência messiânica de Jesus.

(2) A. Nichols: The Panther and the Hind. A theological History of Anglicanism (Edimburgo, 1993); prefácio do bispo Graham Leonard, pp. IX-XIII, cf. p. XII.

(3) R. Slenczka: Contradição teológica. Carta de 16 de novembro de 1992 à EKD em: Diakrisis 14 (1993) p. 187ss.

Joseph Ratzinger

10 de junho de 1994

Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

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