Temas litúrgicos: a homilia

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«Se por meio da Sagrada Escritura é Deus que nos fala, é mediante a homilia que nos fala a Igreja». Os fiéis esperam do sacerdote que lhes torne acessível, compreensível, aplicável ao dia-a-dia, aquilo que ouviram da parte de Deus nas leituras. E isto, nas suas circunstâncias atuais. Procuram na homilia uma resposta para as suas dúvidas e buscas quotidianas. Uma resposta ancorada na Palavra de Deus. Uma resposta verdadeira, portanto.

Recordo um caso que ilustra esta expectativa de uma forma expressiva. Trata-se do caso de um sacerdote que viveu na sua família uma das mortes nos incêndios de Pedrógão. Quando as dúvidas se desvaneceram e a realidade caiu, inevitável, tremenda, dura, sobre toda a família, o sacerdote soube que, para ele, padre, se iriam levantar os olhares de todos. Olhares interrogativos, olhares de quem quer entender e não entende… Sabia que precisavam que ele lhes falasse da parte de Deus e que, tal como o egípcio perante o diácono Filipe, precisavam de ajuda para desvelar a Palavra de Deus neste contexto tão particular, e os ajudasse a compreender.[3] E, curioso, sabia que iriam esperar por esse momento litúrgico: pela homilia. Sim, na homilia daquele funeral havia um silêncio ensurdecedor. Um silêncio que gritava: – «Explica-nos o que aconteceu! Onde estava Deus nesse momento? Porque permitiu isto? E agora, onde está Deus? Como olha para nós e para o nosso sofrimento?». Olhares sedentos de resposta. Uma resposta que já tinha começado a ser dada pelo próprio Deus quando se proclamaram as leituras e se pronunciaram as orações daquela celebração litúrgica, mas que precisava de ser continuada, explicitada. Sentiu, pois, na pele, talvez da forma mais intensa até esse momento, aquilo que disse o Papa Francisco: «O pregador tem a belíssima e difícil missão de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo. O diálogo entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e estreita o vínculo da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações dos crentes fazem silêncio e deixam-No falar a Ele». Sim, querem que Aquele que lhes falou há pouco, seja mais claro, que lhes fale na sua linguagem, de forma compreensível. Francisco continua: «O Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma maneiras diretamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem que alguém sirva de instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois, cada um possa escolher como continuar a sua conversa». Ao ler isto recordei ainda um pormenor do relato daquele sacerdote: um dia depois daquela Missa de corpo presente, aproximou-se uma pessoa e mostrou-lhe um papel onde anotara a sua oração. «Depois de o ouvir decidi-me a escrever isto». E o que escrevera era o que o Papa dizia: conversa pessoal com Deus, à luz da Sua Palavra e daquelas circunstâncias dramáticas que estava a viver. Sim, naquelas celebrações litúrgicas os corações daquela família, de amigos e conhecidos, que se poderiam ter afastado do Senhor pela dor e a incompreensão, iluminados com a Sua Palavra, uniram-se mais, por muito incompreensível que isso seja. Cumpriram-se aquelas outras palavras do Santo Padre: «a Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã para que o dia do Senhor se ilumine com a luz que provém do mistério pascal (…). Deus continua a falar hoje conosco como aos seus amigos, “entretém-se” conosco, para oferecer-nos a sua companhia e mostrar-nos o caminho da vida. A sua Palavra torna-se intérprete das nossas petições e preocupações, e é também resposta fecunda para que possamos experimentar concretamente a sua proximidade».

Recordo ainda o caso daquele capelão de um colégio a quem lhe deram a notícia de que o pai de um aluno fora baleado por um louco na rua e faleceu. Naquele momento ele soube que, no dia seguinte, os olhos de todos os alunos estariam postos nele com a pergunta: – «Porquê?». E foi com essa pergunta que começou a homilia dessa Missa única, multitudinária, em que todo o colégio acorreu em peso. «Porquê?». E, com base nos textos da celebração, foi procurando responder. Não sei o que disse, mas soube da reação daqueles adolescentes. Foi como soltar a pressão de uma panela que ameaçava explodir. A Palavra de Deus tinha-os confortado, tinha-os ajudado a aceitar a dor e a compreender um pouco o mistério da vida. Talvez tenha acontecido algo semelhante ao que sucedeu com os discípulos de Emaús. As palavras do Senhor iluminam o drama da cruz à luz das Escrituras e permitem-lhes vislumbrar um sentido para tudo aquilo que viviam e sentiam. E o coração daqueles discípulos aqueceu-se.

Perdoem-me estas divagações. Sei que qualquer sacerdote terá um sem-número de episódios certamente mais relevantes e ilustrativos. Efetivamente, resisti-me muito a escrever este artigo. Não queria falar sobre a homilia. Parecia-me mais um tema pastoral do que litúrgico. Porém, se a liturgia é esse diálogo entre Deus e o homem, mediado pelo sacerdócio, como pôr de parte a homilia? É tão sincero e belo o pedido dos discípulos: «explica-nos a parábola». Querem entender. Também agora, os fiéis querem entender e viver as palavras do mestre.

Aliás, encontramos essa prática já na sinagoga nos tempos do Senhor. O próprio Jesus é chamado a ler e, depois, todos esperam uma explicação. Estavam todos os olhos cravados nele. Aquelas palavras cumpriam-se naquele preciso momento. Ora a Palavra de Deus tem essa propriedade de se tornar vida no «hoje» da Igreja. Cabe ao ministro a tarefa de descobrir essa aplicação, de ser instrumento, para que Deus fale através da sua Igreja e a instrua. Daí que o Papa Francisco diga que «a homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo».

Isso implica da sua parte uma atenção e preparação especial, a humildade de se saber instrumento, sabendo que fala não a título pessoal, mas em nome da Igreja e que, também na homilia está a desempenhar uma função litúrgica.

Daí que a Igreja dê indicações explicitas sobre o seu conteúdo: «deve ser a explanação de algum aspecto das leituras da Sagrada Escritura ou de algum texto do Ordinário ou do Próprio do dia, tendo em conta o mistério que se celebra, bem como as necessidades peculiares dos ouvintes».

Na exortação Sacramentum Caritatis o Papa Bento pedia: «Evitem-se homilias genéricas ou abstratas; de modo particular peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a Palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental (Cfr. SC 52) e com a vida da comunidade, de tal modo que a Palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja (Cfr. DV 21)».

Por ser litúrgica ela deve ser breve. Para respeitar a harmonia da celebração e o seu ritmo. «Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama na celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e também o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor brilhe mais que o ministro».

Termino esta reflexão com outra citação do Papa Bento XVI. São três perguntas que formula com o intuito de ajudar o pregador a colocar-se diante do texto para preparar a sua homilia: «Que dizem as leituras proclamadas? Que me dizem a mim pessoalmente? Que devo dizer à comunidade, tendo em conta a sua situação concreta?» Se o sacerdote souber responder a estas três questões estará, certamente, em condições de ser um bom instrumento e ajudar a comunidade a dialogar com o seu Senhor.

P. PEDRO BOLÉO TOMÉ

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