São Josemaria ensinava que o trabalho e o descanso encontram seu sentido pleno ao ser inseridos na missão redentora Jesus Cristo: o descanso, como antecipação da Ressurreição, ilumina a fadiga do trabalho como união com a Cruz de Cristo.
Verbete do “Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer”, publicado por Monte Carmelo, sobre o conceito de descanso nos ensinamentos do fundador do Opus Dei.
São Josemaria valorizou profundamente o trabalho humano; mais ainda, fez do trabalho, da santificação do trabalho, o eixo de uma vida espiritual que chegasse a abarcar a totalidade da jornada. Deixou, ao mesmo tempo, muito claro que o homem não é um ser-para-o-trabalho, alguém que trabalhe para trabalhar. O homem está feito para o amor, e é o amor, com tudo o que implica, que dá sentido ao trabalho. “A dignidade do trabalho – afirma em uma de suas homilias – se baseia no Amor. O grande privilégio do homem é poder amar, transcendendo assim o efêmero e o transitório”. O trabalho – continua – é por isso “oração, ação de graças, porque nos sabemos colocados na terra por Deus, amados por Ele, herdeiros de suas promessas”. E inseparavelmente, serviço e apostolado, “ocasião de entrega aos outros homens” (É Cristo que passa, 48- 49).
Estas afirmações têm, na mensagem de São Josemaria, muitas implicações. Têm relação com elas a valorização da amizade, a decidida afirmação da importância da família – e da vida familiar – para o desenvolvimento da pessoa e da sociedade, o apreço pela arte, pela cultura, etc. E também a sua doutrina sobre o descanso, entendido não apenas como repouso físico, mas também, e sobretudo, como essa serenidade interior que torna possível que o homem não fique encerrado nem no processo de trabalhar nem numa obsessiva preocupação por suas obrigações ou necessidades.
1. Necessidade do descanso na vida do homem
A antropologia cristã caracteriza-se, e o fundador do Opus Dei ensina-o claramente, pela vital conexão entre o divino e o humano. “Que a cabeça toque o céu, mas os pés assentem com toda a firmeza na terra” (Amigos de Deus, 75). Uma das aplicações deste princípio, que não se encontra talvez entre as mais elevadas, embora sem dúvida entre as mais cotidianas, é o descanso. São Josemaria considerava o dever do descanso como uma necessidade física, mas também o fazia de um ponto de vista teologal, como uma manifestação do amor de Deus por cada pessoa, realidade que glosou algumas vezes recorrendo à metáfora do burrinho cuja humildade, a de quem se sabe escolhido por Deus para seu serviço, ele apreciava, e afirmava: “Pensai que Deus ama apaixonadamente as suas criaturas, e, aliás…, como é que trabalhará o burro se não lhe dão de comer nem dispõe de algum tempo para restaurar as forças, ou se lhe quebram o vigor com excessivas pauladas? O teu corpo é como um burrico (…) é preciso dominá-lo para que não se afaste das sendas de Deus, e animá-lo para que o seu trote seja tão alegre e brioso quanto é possível esperar de um jumento” (Amigos de Deus 137). Em seus ensinamentos, palpita a convicção de que, sem o devido repouso, não se pode servir bem a Deus: “Abatimento físico. Estás… arrasado. – Descansa. Para com essa atividade exterior. – Consulta o médico. – Obedece e despreocupa-te. Em breve regressarás à tua vida e melhorarás, se fores fiel, os teus trabalhos de apostolado”. Caminho, 706).
Esta pregação apoia-se, além disso, na Sagrada Escritura. Há uma afirmação, concretamente, no Livro de Gênesis (2,1-3), de que Deus descansou no sétimo dia, depois de ter terminado a sua obra criadora. João Paulo II comenta esta passagem em sua Carta enc. Laborem exercens: “O homem deve imitar a Deus, tanto trabalhando quanto descansando, dado que o mesmo Deus quis apresentar-lhe a própria obra criadora sob a forma do trabalho e do descanso” (Laborem exercens, 25). O homem, que dá glória a Deus cooperando com a obra criadora mediante o trabalho, dá-a também participando em sua complacência com a criação, mediante o descanso e a contemplação da bondade do criado que leva a louvar o Criador.
O Novo Testamento ensina que Cristo “não recusava o descanso que as suas amizades lhe ofereciam” (Amigos de Deus, 121) e “convida-os a ir com Ele a um lugar solitário para descansar” (Sulco, 470). O trabalho e o descanso encontram seu mais pleno sentido ao ser inseridos na missão redentora do Verbo Encarnado: o descanso, como antecipação da Ressurreição, ilumina a fadiga do trabalho como união com a Cruz de Cristo.
Quem deseja converter todas as realidades da vida diária em caminho de santidade deve ter em conta que o descanso não é uma exceção à chamada à santidade; descansar é um mandato divino e, portanto, uma atividade através da qual a pessoa pode e deve unir-se a Deus. “Esforçai-vos por não perder nunca este ‘ponto de mira’ sobrenatural, mesmo à hora do lazer ou do descanso, tão necessários quanto o trabalho na vida de cada um” (Amigos de Deus, 10). Santificar o descanso é uma consequência lógica da unidade de vida, que leva a procurar em todas as coisas – sem fissuras – a glória de Deus e a própria santidade: “Por que não experimentas converter em serviço de Deus a tua vida inteira: o trabalho e o descanso, o pranto e o sorriso? Podes…e deves!” (Forja, 679).
2. Descanso e filiação divina
Os ensinamentos de São Josemaria sobre o descanso, entendido no sentido mais profundo do vocábulo – descanso não só físico, mas também psicológico e espiritual – entrelaçam-se com a realidade da filiação divina, fundamento do espírito do Opus Dei: “Descansai na filiação divina” (Amigos de Deus, 150). Seus textos refletem a convicção de que para o cristão, o verdadeiro descanso encontra-se em Deus. Descansar implica crer e confiar na Providência Divina: saber que atrás das fadigas, das dificuldades e das preocupações próprias de nossa condição terrena, há um Pai eterno e onipotente que nos sustenta.
O caminho é seguir as pegadas do Filho Unigênito; daí que o fundador do Opus Dei fale, seguindo a Tradição cristã, de encontrar repouso no Verbo Encarnado: “Ó Jesus! – Descanso em Ti!” (Caminho, 732); “[Jesus] oferece-nos o seu Coração, para que encontremos nele o nosso descanso e a nossa fortaleza” (É Cristo que passa, 170); “Que o meu voo não se interrompa até encontrar o descanso do teu Coração!” (Forja,39).
A filiação divina faz que desapareçam a inquietação e o nervosismo ou, pelo menos, mantenham-se nas camadas mais superficiais da nossa psicologia, de modo que, no fundo da alma, reine uma serenidade que contribua para o descanso do espírito. Essa confiança em Deus deve acompanhar também a luta cristã, o esforço por crescer na virtude e identificar-se cada vez mais com Cristo. São Josemaria utilizou, nesse sentido, a analogia do esporte, ou seja, a atitude de quem se prepara, treina durante muito tempo, com confiança e serenidade, para alcançar uma meta. “Dá muito bom resultado empreender as coisas sérias com o espírito esportivo… Perdi várias jogadas? Muito bem, mas – se perseverar – no fim ganharei”. (Sulco, 169). Agradar a Deus com a luta interior, de tal modo que a criatura consiga ser descanso para o Criador: “Deus te confirme no teu propósito, para que sejamos ajuda e descanso para Ele” (Sulco, 347).
3. Modo de descansar: descanso e ócio
O descanso não se identifica com o ócio, se por ócio se entende a indolência, a preguiça ou o desperdício de tempo. “Todos os pecados – disseste-me – parece que estão à espera do primeiro momento de ócio. O próprio ócio já deve ser um pecado – Quem se entrega a trabalhar por Cristo não há de ter um momento livre, porque o descanso não é não fazer nada; é distrair-se em atividades que exijam menos esforço” (Caminho, 357).
Descansar não significa, portanto, deixar o trabalho normal para ficar no vazio, mas realizar outras tarefas que distendam e preencham a alma. São Josemaria insiste repetidas vezes neste conceito: “Sempre entendi o descanso como um afastar-se do acontecer diário, nunca como dias de ócio. – Descanso significa represar: acumular forças, ideais, planos… Em poucas palavras: mudar de ocupação, para voltar depois – com novos brios – aos afazeres habituais” (Sulco, 514).
Dentro das ocupações que descansam cabem muitos interesses humanos nobres: a dedicação a leituras culturais, a audição de peças musicais, os passeios, o esporte em suas variadas manifestações, gosto por uma boa obra de teatro ou um bom filme, as visitas a monumentos artísticos, têm aqui, junto com outras possibilidades, seu lugar: os dias devem transcorrer sem “que não falte (…) o devido descanso, a tertúlia familiar, a leitura, o tempo dedicado a um gosto pela arte, a literatura ou outra distração nobre” (Entrevistas, 111). Palavras que podemos glosar com estas outras tomadas do Concílio Vaticano II: “O tempo livre deve ser empregado retamente para descanso do espírito e para cuidar da saúde da mente e do corpo, por meio de ocupações e estudos livres, por meio de viagens a outras regiões (…), por meio também de exercícios e manifestações esportivas” (Gaudium et Spes, 61).
Com a experiência do descanso estão também muito relacionadas as atividades que costumamos designar como diversão ou festa, embora ambas, sobretudo a segunda, transcendam a ideia de descanso. O Diccionario define a diversão como “recreio, passatempo, entretenimento”, ação que implica distrair a atenção das atividades que constituem a tarefa cotidiana, ou de problemas e afãs que preocupam, que pesam sobre o espírito e que podem, inclusive, chegar, em alguns momentos a gerar inquietação e desassossego. Várias das realidades mencionadas nos parágrafos precedentes entram no âmbito da diversão. Parece, portanto, oportuno recordar que a diversão pode ter, e isso acontece com frequência, dimensões sociais: o homem pode distrair-se de forma individual, estando a sós, lendo um livro ou passeando, para dar alguns exemplos; mas muitas outras vezes a diversão implica e pressupõe não só companhia, estar com outros, mas organizar reuniões e atividades nas quais, unidos, participando de um mesmo ambiente, de uma mesma satisfação ou alegria, proporciona-se o recreio e o entretenimento de todos.
E, por outro lado, está a festa ou as festas, dias em que o trabalho cessa coletivamente, quando se celebra ou comemora alguma solenidade e nos quais se organizam atividades ou festas que contribuam para que as pessoas possam rir ou divertir-se. Tanto a história como a experiência comum testemunham a existência de numerosas festas, celebradas pelo mais diversos motivos e com as mais diversas características: um casamento, um encontro com antigos amigos, aniversários, feiras, procissões, paradas militares, competições esportivas, jogos… Pode-se dizer que o sentido da festa, de atividades que se organizam ou se desenvolvem, não por necessidade ou utilidade, mas como manifestação da liberdade e da gratuidade e alegria de viver, faz parte da natureza humana.
São Josemaria compreendia profundamente o sentido das festas. Já desde criança aprendeu, no seio do lar materno, a celebrar aniversários e acontecimentos familiares, e participava das festas que se realizavam em Barbastro (sobre os primeiros anos de São Josemaria pode-se encontrar dados no primeiro volume da biografia de Andrés Vázquez de Prada). Aqueles que conviveram com ele, em Madri ou em Roma, tendo já sido fundado o Opus Dei, recordam a importância que ele dava às reuniões familiares ou tertúlias, sua presença – sempre que era possível – na celebração de onomásticos e aniversários, a atenção com que acompanhava – às vezes inclusive tamborilando no braço da poltrona em que estava sentado – momentos em que um coro ou uma pessoa sozinha cantava numa reunião de família uma canção alusiva ao aniversário celebrado, o que contribuía para a alegria (cfr. alguns exemplos em SORIA 2001, passim e URBANO, 1995).
4. Apostolado da diversão e da festa
A diversão – ou, se preferirmos as diversões – constituem não apenas uma das manifestações possíveis do descanso, mas também uma realidade que convida ao apostolado. Os cristãos – afirma o Concílio Vaticano II – são chamados a cooperar “ para que as manifestações e atividades culturais coletivas, próprias de nosso tempo, se humanizem e se impregnem de espírito cristão” (Gaudium et Spes, 61). Depois da Encarnação do Verbo, nenhuma realidade humana nobre é alheia à santificação dos filhos de Deus, inclusive as variadas manifestações do descanso e da diversão. “Esta é a tua tarefa de cidadão: contribuir para que o amor e a liberdade de Cristo presidam a todas as manifestações da vida moderna – a cultura e a economia, o trabalho e o descanso, a vida de família e o convívio social” (Sulco, 302).
Esta contribuição vai requerer, em mais de uma oportunidade, ajudar a promover atividades – excursões, procura de lugares onde passar as férias ou períodos de descanso, reuniões, bailes, sessões de cinema ou de teatro… – nas quais haja alegria, sentido de convivência, valorização da dignidade humana, próprias do espírito cristão. Deve ser empenho de todos os cristãos – e de modo muito particular dos que são chamados a santificar-se no meio do mundo – impregnar, com o espírito de Cristo, as atividades que os homens realizam para distrair-se ou descansar: “Urge recristianizar as festas e o costumes populares. – urge evitar que os espetáculos públicos se vejam nesta disjuntiva: ou piegas ou pagãos. Pede ao Senhor que haja quem trabalhe nessa tarefa urgente, a que podemos chamar ‘apostolado da diversão’” (Caminho, 975).
5. Descanso, festividades litúrgicas, contemplativos no meio do mundo
Para um cristão – como São Josemaria era profundamente cristão – a linguagem e a atitude próprias da festa têm sentido e alcance especiais quando se referem às festas litúrgicas: o domingo e as grandes festividades que celebram a Trindade, Cristo e os acontecimentos centrais da sua vida, a Virgem Maria, os anjos e os santos. Todas estas celebrações são dias privilegiados para “dedicá-los à oração” (Forja, 434), para unir-se a Deus, e em Deus e com Deus, na consciência do valor e no sentido da existência e, portanto, no amor aos outros e na alegria. Assim o entendeu a tradição vivida pela Igreja desde o início, que o Catecismo resume com as seguintes palavras: “durante o domingo e as outras festas de preceito, os fiéis se absterão de entregar-se a trabalhos ou atividades que impeçam o culto devido a Deus, a alegria própria do dia do Senhor, a prática das obras de misericórdia, a distensão necessária do espírito e do corpo” (CCE, n. 2185).
O descanso dominical e festivo comporta, afirma João Paulo II, “enriquecimento pessoal, maior liberdade, possibilidade de contemplação e de comunhão fraterna”. Com esta perspectiva, acrescenta, possuem “uma dimensão ‘profética’ afirmando não só a primazia absoluta de Deus, mas também a primazia e a dignidade da pessoa em relação às exigências da vida social, antecipando, de certa forma, os ‘céus novos’ e a ‘terra nova’” (Dies Domini, 68, que cita, em sua frase final, palavras de 2 Pe 3, 13).
Toda a mensagem de São Josemaria sobre o descanso baseia-se nessa grande estima pelo ser humano, e na amplitude do seu espírito e da sua capacidade de amor, que são consubstanciais à fé cristã. Por isso, em sua pregação e em seus escritos, a distinção e, inclusive, a contraposição entre trabalho e descanso têm lugar, na medida em que implicam momentos e atitudes diversas. Não, porém, entre descanso e oração, pois a oração dá pleno sentido aos momentos em que o espírito serena, se distende ou se regozija; nem entre trabalho e oração, porque o trabalho deve realizar-se com consciência da proximidade de Deus, de modo que o desenvolvimento da vida espiritual leve a fazer do trabalho oração e o cristão chegue a ser, também no desempenho das suas funções e tarefas, contemplativo no meio do mundo.
Bibliografia: CONCÍLIO VATICANO II, Const., Past. Gaudium et spes, 1965; João Paulo II, Carta Enc. Laborem exercens, 1981; Id., Carta Ap. Dies Domine, 1998; Javier ECHEVARRÍA, “A Eucaristia e o descanso dos filhos de Deus” em Eucaristia y vida cristiana, Madri, Rialp, 2005, pp. 183-213; Josef PIEPER, Una teoria de la fiesta, Madri, Rialp, 1974; José Luis SORIA, Mestre de bom humor, São Paulo Quadrante; Pilar URBANO, O Homem de Villa Tevere, São Paulo, Quadrante.
María de la Paz LÓPEZ-HERMIDA RUSSO.
Fonte: opusdei.org/pt-br/article/o-descanso-e-a-santificacao-da-diversao