Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB – XVIII Domingo do Tempo Comum – Ano A

A multiplicação dos pães


Mt 14,13-21

Caros irmãos e irmãs,

A liturgia deste domingo nos chama a sentarmos à mesa que Deus preparou, e onde nos oferece gratuitamente o alimento que sacia a nossa fome de vida e eternidade.   O Evangelho nos apresenta Jesus como o novo Moisés, cuja missão é realizar a libertação do seu Povo. No contexto de uma refeição, Jesus mostra aos seus discípulos que é preciso acolher o pão que Deus oferece e reparti-lo com todos.

Conhecemos as maravilhas operadas por Deus em favor do seu povo desde o Antigo Testamento.  Basta lembrar o manã, quando o Senhor alimentou o povo que caminhava no deserto rumo à terra prometida. O autor bíblico lança o seu olhar para além dos fatos naturais que possibilitam a realização de um milagre.  Ele vê a ação de Deus.  Foi Deus que no momento oportuno mandou o alimento, pão e carne, para o seu povo. Quando os israelitas, vendo o maná perguntam a Moisés: “Que é isto?”, a resposta da fé que ele lhes dá é esta: “É o pão que o Senhor vos dá como alimento” (Ex 16,15). A lembrança do maná permaneceu muito viva, perpassando toda a história do povo hebreu.  “É o que podemos constatar diante de muitos livros do Antigo Testamento, recordando que o Senhor fez chover sobre eles o maná, deu-lhes um trigo do céu” (Sl 77, 24s). 

O texto que nos é proposto neste domingo nos situa no âmbito de uma refeição. O “banquete” é, para os semitas, o momento do encontro, da fraternidade, em que os convivas estabelecem entre si laços de familiaridade e de comunhão. É, portanto, símbolo desse mundo novo que há de vir e no qual todos serão convidados a sentar-se à mesa de Deus para celebrar a fraternidade e a igualdade. No início do relato evangélico, o evangelista São Mateus ressalta que Jesus se retirou para o deserto, seguido por uma “grande multidão”; e que, admirado pela fome de vida de toda essa gente, Se encheu “de compaixão e curou os seus doentes” (v. 13-14).

O deserto é, para Israel, o tempo e o espaço do encontro com Deus. O deserto é ainda o lugar e o tempo da partilha, da igualdade, em que cada membro do Povo de Deus conta com a solidariedade, onde os bens pertencem a todos e todos dão as mãos para superar as dificuldades da caminhada.  É esta experiência que Jesus vai convidar os discípulos a fazer. Vai lhes ensinar, de uma maneira concreta, que tudo é um dom que deve ser agradecido ao amor de Deus; e vai ensinar-lhes também que os dons de Deus são para ser partilhados, colocados ao serviço dos irmãos.  A história da multiplicação dos pães apresenta todas as características de uma lição, destinada a demonstrar como é que deve viver quem quer aderir ao Reino.

À vista das multidões cansadas e famintas, Jesus diz aos discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9, 13). Na realidade, é Jesus que abençoa e parte os pães até saciar toda aquela multidão, mas os cinco pães e os dois peixes são oferecidos pelos discípulos, e era isto o que Jesus queria: que eles, em vez de mandarem embora a multidão, pusessem à disposição o pouco que tinham. E, depois, há outro gesto: os pedaços de pão, partidos pelas mãos do Senhor, passam para as mãos dos discípulos, que os distribuem às pessoas. Também isto é fazer com Jesus, é dar de comer juntamente com Ele. Evidentemente este milagre não pretende apenas saciar a fome de um dia, mas é sinal daquilo que Cristo tem em mente realizar pela salvação de toda a humanidade, dando a sua carne e o seu sangue (cf. Jo 6, 48-58). E, no entanto, é preciso passar sempre através destes dois pequenos gestos: oferecer os poucos pães e peixes que temos; receber o pão partido das mãos de Jesus e distribuí-lo a todos.

Ao ambientarmos este primeiro relato da multiplicação dos pães, temos o da continuação da referência a um banquete do tetrarca Herodes, em meio do qual João Batista foi martirizado e sua cabeça foi colocada em uma bandeja.  Após a morte de João Batista, Jesus ocupa o seu lugar no deserto.  E com a morte de João Batista a multidão que andava como ovelhas sem pastor, busca em Jesus o seu guia definitivo.  E esta compaixão pela multidão errante move Jesus a curar os enfermos sem que lhe peçam; e depois sacia a mesma multidão faminta num comovente milagre da multiplicação dos pães. 

Aparentemente, o Evangelho de hoje, da multiplicação dos pães, nada fala sobre a Eucaristia; mas, ao contrário, é ele a premissa para se entender a instituição deste sacramento.  A intencionalidade eucarística e sacramental do fato que nos ocupa aparece visivelmente no seu  quadro ritual e literário.  Os gestos de Jesus que precedem a multiplicação e a hora da tarde, tanto no Evangelho de S. João como nos Sinóticos, são idênticos aos da última Ceia do Senhor, quando Jesus instituiu a Eucaristia, “tomou os cinco pães e os dois peixes e, elevando os olhos ao céu, abençoou-os. Partindo em seguida os pães, deu-os aos seus discípulos, que os distribuíram ao povo” (v. 19). 

Este gesto de Jesus em abençoar (v. 19) antes de partir os pães e de os distribuir à multidão, é o mesmo que fará na última Ceia, quando instituirá o sacramento da Eucaristia. Na Eucaristia, Jesus não oferece um pão, mas o pão de vida eterna, doa-se a Si mesmo, oferecendo-se ao Pai por amor a nós. Contudo, nós devemos frequentar a Eucaristia com os sentimentos de Jesus, ou seja, com a compaixão e com a vontade de compartilhar.

Na Eucaristia há uma continuidade e uma harmonia admirável entre a realidade material e a graça espiritual.  Jamais entenderá a Eucaristia quem nunca teve experiência do alimento humano, da fome e da nutrição, do repartir o pão e do comer juntos.  Por isso a Igreja achou por bem não oferecer a Eucaristia a crianças pequenas, mas, sim, após ter elas uma experiência do alimento sólido.

Estamos habituados a explicar a Eucaristia com a palavra “transubstanciação”.  Mas, que significa transubstanciação?  Não podemos dizer que o sinal do pão e do vinho desaparecem totalmente para dar lugar ao Corpo e Sangue de Cristo.  O sinal, portanto, permanece.  Permanece, mas é elevado (como sempre, a graça eleva a natureza); pode-se dizer, em certo sentido, que é transformado em Corpo e Sangue de Cristo.  O pão e o Vinho, antes da consagração são sinais da fecundidade da terra, do trabalho do homem, da solicitude do pai de família, do alimento, da unidade daqueles que o comem juntos.  Após a consagração tornam-se sinal do Sacrifício de Jesus, do Seu ilimitado amor pelo homem, do alimento espiritual, da unidade do Corpo de Cristo. No mistério eucarístico acontece algo de mais profundo e insondável que somente a fé pode captar.  Nele, pelas palavras da instituição e pelo poder do Espírito Santo, se faz presente o mesmo acontecimento original da morte e ressurreição de Jesus Cristo. 

E no Evangelho ainda ressalta: “Todos comeram e ficaram saciados, e ainda recolheram doze cestos, cheios de pedaços que sobraram” (v. 20). Esta referência do evangelho tem um profundo sentido espiritual.  Faz lembrar a reserva Eucaristia.  Isto é, a Eucaristia deve sobrar também para os ausentes, para os distantes, para todo o povo.  Não é mais como o maná do deserto, que cada um recolhe quanto basta para si por um dia (cf. Ex. 16,4); mas é preciso recolher também para os irmãos.  Assim, o fruto da Eucaristia é para todos e nada deve ser perdido.  E quem recebe a Eucaristia deve assemelhar-se a Jesus, tornando-se, com Ele, um dom para os outros. 

Peçamos ao Senhor que nos faça redescobrir a importância de nos alimentarmos não só do pão, mas da verdade, do amor, do Cristo, do corpo de Cristo, participando fielmente e com grande consciência na Eucaristia, para estarmos cada vez mais intimamente unidos a Ele. Com efeito, não é o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele. Ao mesmo tempo, peçamos ao Senhor que jamais falte ao homem o pão necessário para uma vida digna, e que saibamos partilhar com os outros nossos irmãos o pão que temos.  

Confiemos à intercessão materna da Virgem Maria, ela que gerou para o mundo o Cristo, o Pão da vida, nos ensine a viver sempre em profunda união com Ele pela oração e pela prática da comunhão eucarística, onde encontramos a presença real do Cristo, verdadeiro Pão do Céu.  Assim seja. 

 

D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ

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