Epístola (Gl 5, 1. 13-18)
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Na sua luta contra os judaizantes, que pretendiam ainda ser a circuncisão necessária para a salvação [justificação], Paulo argumenta, modo rabínico, de diversas maneiras, fundando suas premissas na Escritura, interpretada de modo singular. Uma dessas argumentações é a que encontramos na epístola de hoje. A Lei mosaica tratava principalmente de coisas corporais: circuncisão e pureza de alimentos. Era uma lei carnal, e como tal, uma servidão às concupiscências e desejos corporais. Já a fé, base da nova aliança, era uma lei que diretamente visava o Espírito [recebido no batismo] e, portanto, era lei de liberdade. E Paulo confirma a essência diferente das duas leis com o exemplo das apetências do corpo [suas obras] e os frutos do Espírito, estes todos dirigidos ao bem do próximo, porque a lei do Espírito está dirigida pelo amor e nesse amor não se necessita mandato particular, a não ser que o próximo deva ser considerado como desejamos tratar a nós mesmos. Logo devemos rejeitar a lei carnal como uma escravidão e gozar da liberdade que encontrados na lei do Espírito.
LIBERDADE CRISTÃ: Permanecei, pois, firmes na liberdade com a qual Cristo vos libertou (1). State et nolite iterum iugo servitutis contineri. LIBERDADE [eleutheria <1657>=libertas]. Paulo fala em que Deus é Espírito e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade (2Cor 3, 17). Para entender o argumento paulino devemos ter uma ideia clara de quais eram as mentalidades do seu tempo. Em primeiro lugar, Paulo admitia uma dualidade de carne ou corpo, inclinado ao mal, e de espírito, como base do bem; corpo e espírito que constituiam a totalidade do homem. Se o homem estava inclinado ao mal a culpa era da carne, da lei do pecado (1 Rm 7, 23). Em segundo lugar, Deus como Espírito, era totalmente livre (2 Cor 3, 17), não determinado pelas paixões desordenadas do corpo. Em terceiro lugar, após o batismo, o espírito do homem estava dominado pelo Espírito de Deus (At 19, 2-3). Esse domínio era tal que o corpo estava como morto junto com suas paixões e se podia afirmar que quem tivesse recebido o Espírito estava livre (2 Cor 3, 17) e unicamente nele reinava a lei do amor, que considera o outro como a si próprio (Gl 5, 14). Por isso, Paulo distingue entre obras da carne (Gl 5, 19-21) e os frutos do Espírito (Gl 5, 22-23). Quem se diz dominado pelo Espírito não tem que seguir uma lei, pois a lei do Espírito é vida em Cristo Jesus e o livra da lei do pecado (Rm 8, 2). Guiados, pois pelo Espírito, os cristãos não estão sob a Lei (Gl 5, 18). Se isso é verdade do ponto de vista existencial, do ponto de vista legal, Paulo afirma que a liberdade foi conseguida por Cristo, de modo que compara o cristão com Isaac, filho de Sara, a livre; e o judeu com Ismael, filho da escrava Agar, sendo que estas mulheres representavam as duas alianças: Agar, o Sinai, com a Jerusalém terrestre da escravidão; e Sara, a Jerusalém celeste livre, que é nossa mãe (Gl 4, 26). Não somos mais escravos da Lei [da circuncisão], mas estamos livres, pois pertencemos unicamente a Cristo que pagou nosso resgate [apolytron] com o preço de seu sangue (1 Cor 6, 20 e 7, 23).
A LIBERDADE DO AMOR: Pois vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Somente não (é) a liberdade para incentivo na carne; mas através do amor servi mutuamente (13). Vos enim in libertatem vocati estis fratres tantum ne libertatem in occasionem detis carnis sed per caritatem servite invicem. Os gálatas eram, na sua imensa maioria, provenientes da gentilidade e, consequentemente, sua vocação foi feita pela fé em Cristo: logo em e para liberdade da Lei [Torah]. Porém é uma liberdade que exclui os apetites da carne [aformë <874>=occasio] na realidade estímulo, incentivo, aliciante, que temos traduzido como apetites, que a KJV traduz por ocasião ou oportunidade. Cremos que a tradução de incentivo é melhor que a de oportunidade escolhida também pela TEB. E Paulo termina com uma advertência positiva: A verdadeira liberdade é para fazer o bem escolhido como serviço ao próximo. Se escravos, o seremos voluntariamente como Cristo para servir em diakonia voluntária. Esta é a melhor maneira de fazer o bem: libertados do pecado, fostes feitos escravos da justiça (Rm 6, 18). Formados libertos do pecado, agora transformados em servos de Deus (Rm 6, 22) que para Paulo consiste na servidão do anúncio de Cristo como Senhor; e a si mesmo feito escravo para o serviço dos cristãos por amor a Jesus (2 Cor 4, 5).
O ÚNICO MANDATO: Porque toda Lei num mandato se cumpre: em amarás teu próximo como a ti mesmo (14). Omnis enim lex in uno sermone impletur diliges proximum tuum sicut te ipsum. LEI: [Nomos<3551>=lex] embora tenha um amplo significado em grego como lei em geral, preceito, mandato, costume, etc. É propriamente a tradução dos Setenta da palavra TORAH, que é o conjunto de mandatos divinamente inspirados, dado como norma de vida por Moisés. Geralmente é a lei mosaica a que se designa, especialmente por Paulo em suas epístolas. De modo especial é o mandato da circuncisão. MANDATO: [logos< 3056>=sermo] A palavra logos tem o sentido primário de palavra, mas também pode ser usada como decreto, mandato, ordem, profecia, declaração, aforismo, provérbio, máxima, narração, discurso, doutrina. Particularmente no quarto evangelho, Logos é a Palavra essencial de Deus, Jesus Cristo. Foi Heráclito (576-480 a.C) quem usou Logos como a Razão divina ou o plano que coordena um Universo em contínua mudança. Aqui, logicamente, significa um preceito em particular que expressa toda a lei como num resumo concreto. Este preceito está claramente delineado em Lv 19, 18: Não te vingarás nem guardadarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. PRÓXIMO: [plësion <4139>=proximus] O próximo, que em grego é traduzido por Plësion [vizinho, contíguo], tem em hebraico a palavra Rea como expressão do mesmo com outras conotações. Segundo o comentário bíblico moderno do rabino Meir Matziliah, as palavras que designam companheiro, próximo e irmão são rea – amith– ben– am– ah. Ah é irmão e era usado para todo israelita. Em Lv 19, 17-18 saem esses quatro termos ah (irmão) amith (companheiro), bem (filho) am (povo) e rea (próximo) A citação será: Não odiarás o teu irmão [ah <0251>] no teu coração; repreenderás a teu companheiro [amith <05997>] e por causa dele não levarás sobre ti pecado(17) . Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos [ben <01121>] do teu povo [am <05971>]; mas amarás o teu próximo [rea <07453>] como a ti mesmo. O texto do Levítico (19, 18) frequentemente citado de amarás o próximo como a ti mesmo é um texto negativo de não fazer o mal, pois começa com não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos de teu povo, mas amarás o teu amigo [rea em hebraico significa companheiro, irmão] como a ti mesmo. O grego traduz rea como plesion; a Vulgata como amicus e, este, como próximo, ou vizinho. A Nova Vulgata usa o proximum. Vemos que é um texto negativo impedindo atos de vingança ou de rancor. Mas Jesus, ao citar o mandato, dizendo que é semelhante ao primeiro, o transforma em amor positivo, amplamente descrito em Lucas como se demonstra com a parábola do bom samaritano. O próximo é todo aquele que necessita de nossa ajuda, sem distinção de qualquer classe. Ele deve ser amado como nos amamos a nós mesmos. E como mandato positivo, ele obriga sempre. Segundo o comentário do Senhor, este é o segundo mandato da Lei (Mt 22, 39), semelhante ao primeiro, pois tem sua base no amor. De modo que a Lei está contida nestes dois preceitos: amar a Deus e amar o próximo. A Deus, sem limite [sobre todas as coisas, até mais que a si mesmo] e ao próximo, como a nós mesmos. Esse é o caminho da vida e nele consiste a eternidade da mesma.
UM AVISO: Pois se mutuamente vos mordeis e devorais olhai para não vos destruir-vos mutuamente (15). Quod si invicem mordetis et comeditis videte ne ab invicem consumamini. Paulo usa a metáfora comum entre os judeus, para quem come a carne do inimigo era o mesmo que odiá-lo; e, portanto, querer destruí-lo. Nós falamos de comer o fígado, para ódio; e de comer à beijos, para o amor. Neste versículo, Paulo indica que a consequência do ódio ou rancor é a destruição mútua entre os membros de uma comunidade, que deveria ter como norma a dada por Jesus: Nisto conhecerão que sois meus discípulos se tiverdes amor uns aos outros (Jo 13, 35).
UMA ADVERTÊNCIA: Digo, pois; caminhai em espírito e a concupiscência da carne não levareis a término (16). Dico autem spiritu ambulate et desiderium carnis non perficietis.Os que se deixam levar pelo Espírito não se deixam arrastar pelos desejos da carne. O impulso do Espírito deve ser seguido pela sinergia ou cooperação constante da vontade humana, pois, do contrário, o fruto do Espírito seria nulo.
OPOSIÇÃO: Já que a carne se empenha contra o espírito, porém o espírito contra a carne pois eles se opõem mutuamente para que não façais as mesmas coisas que desejais (17). Caro enim concupiscit adversus spiritum spiritus autem adversus carnem haec enim invicem adversantur ut non quaecumque vultis illa faciatis. A oposição carne/espírito, como dissemos no início, continua durante a vida terrena como uma luta entre inimigos com objetivos contrários. O próprio Paulo é testemunha dessa luta que ele declara ser contra as forças espirituais do mal, especialmente pelo que toca à difusão do evangelho (Ef 6, 12);Mas pelo que toca à luta pessoal, Paulo também é de novo testemunha de que na sua carne não habita nenhuma dessas duas forças; pois o querer o bem está nele, porém não sou capaz de efetuá-lo (Rm 7, 18), já que encontra em seus membros uma lei contrária à lei da sua mente (Rm 7, 23) que o escraviza como lei do pecado, inerente aos membros do seu corpo.
LIBERDADE DO ESPÍRITO: Mas se sois guiados pelo espírito não estais sob a Lei (18). Quod si spiritu ducimini non estis sub lege. Não podemos dar a esta afirmação um valor absoluto, como quem derroga toda norma e lei e tem liberdade absoluta; mas seu significado é que, se realmente somos conduzidos pelo Espírito, ele nos guia de forma que faremos o bem sem necessidade de uma lei que o determine e nos dirija. Existe uma ambiguidade ao traduzir espírito, pois pode ser o espírito do homem e também o Espírito que recebemos como participação da vida divina no batismo. Porém, cremos que, segundo a definição tripartida de Paulo: Corpo [söma], alma [psychë] e espírito [pveuma] (1 Ts 5, 23) este é o Espírito recebido no batismo, cuja origem é divina e não humana. E no mesmo Paulo encontramos o modo de operar do Espírito que produz frutos como amor, alegria, paz, paciência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si mesmo. Esses frutos do Espírito não estavam ordenados na Lei que era totalmente negativa: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não levantarás falso testemunho. Pelo que diz respeito aos mandatos positivos temos o amor a Deus e, na segunda tábua, a honra devida aos pais. É por isso, que Paulo pode afirmar, num duplo sentido, que contra estas coisas não há lei (Gl 5, 23). 1) Porque não existia lei que as mandasse, 2) Porque não havia um mandato que as proibisse.
Evangelho ( Lc 9, 51-62)
A RECEPÇÃO DO EVANGELHO
(Pe Ignácio, dos padres escolápios)
PRIMEIRA PARTE
INTRODUÇÃO: As duas partes do evangelho de hoje pertencem à chamada interpolação maior (9,51-18,14). Considerando que Lucas segue em grande parte Marcos, este longo período é como um parêntese de Lucas antes de retomar a linha de Marcos. Neste trecho em que Lucas supõe Jesus caminhando a Jerusalém, Lucas aproveita a circunstância para, na ausência de multidões, mostrar a verdadeira face do discípulo de Jesus. São ensinamentos internos dirigidos aos doze em particular e, portanto, a todo membro que queira formar parte do discipulado estrito. Hoje vejamos dois exemplos diferentes.
AO SE COMPLETAREM OS DIAS: Sucedeu que ao se completarem os dias de sua assunção também ele deixou firme seu rosto de ir a Jerusalém (51). Factum est autem dum conplerentur dies adsumptionis eius et ipse faciem suam firmavit ut iret Hierusalem. A frase indica que todas as circunstâncias da paixão e morte de Jesus estavam programadas pela Providência e que Ele sabia pessoalmente o que ia acontecer. Os três anúncios de sua paixão (9,22; 9,44; 18,31-33), que têm paralelos nos outros dois sinóticos, claramente indicam como Jesus aceitava seu fim para cumprir toda justiça(Mt 3, 13), ou seja, a lei divina que ordenava a conduta humana para salvação dos homens ou santificação dos mesmos. Eram os dias de sua ASSUNÇÃO literalmente de ser assumido ou acolhido em cima. Com toda certeza, indica Lucas a morte de Jesus e sua exaltação por ser recebido como o Filho que cumpriu obedientemente sua missão e por isso elogiado como tal (Lc 9, 35). ENDURECEU SEU ROSTO: Parece um hebraísmo porque nas línguas semitas não existem muitas palavras para indicar idéias abstratas. Hoje diríamos determinou-se a subir a Jerusalém. Talvez venha de Pr 21, 29: o mal tem um ar de afronta; o homem reto solidez no proceder.
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MENSAGEIROS: Então enviou mensageiros diante de sua face e saindo, entraram numa aldeia de samaritanos para acomodá-lo (52). Et misit nuntios ante conspectum suum et euntes intraverunt in civitatem Samaritanorum ut pararent illi. A palavra grega é angellos que significa enviado. Era uma aldeia [komes] que devia acomodar Jesus e os doze. Para isso Jesus se serviu provavelmente de dois de seus discípulos como no caso da preparação da ceia pascal. Deste último caso sabemos os nomes Pedro e João. No nosso caso é possível que fossem os dois irmãos Jacobo e João. Foram rejeitados como veremos no parágrafo seguinte.
O CASO DOS SAMARITANOS: E não o receberam porque sua face era de ir a Jerusalém (53). Et non receperunt eum quia facies eius erat euntis Hierusalem. Na subida a Jerusalém os galileus tomavam a rota de Pereia, da Transjordânia, para evitar a rota mais rápida através da Samaria, que sempre era dificultada pela oposição dos samaritanos como contrários ao templo de Jerusalém. Foi isto precisamente o que aconteceu com os dois enviados para buscar alojamento. Samaria tinha sido a capital do reino Norte, fundada como capital por Omri em 870 aC. Após a destruição de Samaria em 720 aC por Salmanasar, os habitantes da região foram substituídos por colonos vindo da Babilônia.(2 Rs 17, 24). Depois do desterro, ao iniciar os judeus a construção da cidade e templo de Jerusalém, encontram oposição em certos grupos de vizinhos que se opunham. Essa hostilidade provinha, segundo a tradição, dos samaritanos. O fato de que uma população meio-judia, que dava culto a Javé e restringia seus livros sagrados ao Pentateuco, e cujo templo estava em Garizim desde a época de Alexandro Magno até que foi destruído nos tempo de João Hircano ( filho de Simão, o macabeu, rei de 134-104 a.C) no ano 128 aC, odiasse os judeus, especialmente os que subiam a Jerusalém, é coisa natural. A samaritana pergunta a Jesus onde deve ser Javé adorado: Se em Garizim como faziam nossos pais ou em Jerusalém (4, 19). Tudo isto explica a razão do porquê os habitantes da aldeia em questão se opuseram a dar estalagem a Jesus e seu colégio.
FILHOS DO TROVÃO: Tendo visto, pois, seus discípulos, Jacobo e João disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os destrua, como fez Elias? (54). Cum vidissent autem discipuli eius Iacobus et Iohannes dixerunt Domine vis dicimus ut ignis descendat de caelo et consumat illos. Foram os dois irmãos, Jacob e João os que pediram fogo do céu para castigar os que se negaram a aceita-los. Jacob [suplantador] era um nome bem conhecido desde os tempos dos patriarcas. Jacó ou Jacob foi o gêmeo de Esaú e pai dos doze filhos que foram os ancestrais das doze tribos de Israel, nome que ele recebeu do anjo após a luta com este último em Fanuel (Gn 32, 24-32). O nosso discípulo é conhecido como Tiago [o Maior] e assim é traduzido o grego Jacob. João [graça de Deus] é o nome de seu irmão e o autor do quarto evangelho, segundo a tradição. A mãe de ambos era Salomé, acredita-se que parente de Maria (Mc 15, 40 e Mt 27, 56); e o pai Zebedeu (Mt 4, 21). O fogo que eles pediam era uma clara alusão ao caso de 2 Rs 1, 10-12 em que por duas vezes desceu fogo do céu para destruir duas forças enviadas contra o profeta Elias. Jesus tinha dado a eles o nome de Boanerges, que significa filhos do trovão, ou seja, raios, pela sua impetuosidade. Neste caso os repreende. Alguns códices terminam o episódio com umas palavras severas de Jesus: Não conheceis de que espírito sois (55). E no começo do versículo seguinte (56) acrescenta: Pois o Filho do homem não veio para destruir as vidas [psychai] dos homens, mas para salva-las. Pode ser que estas palavras que temos escrito em itálico sejam uma glosa do redator; porém, refletem exatamente o pensamento do Senhor. Por isso se determinaram a buscar uma outra aldeia.
SEGUNDA PARTE:
O MODELO DE DISCÍPULO: Não falamos daquele que já está no círculo de seguidores, mas dos primeiros passos que devem ser como uma primeira determinação de seguir o Senhor como objetivo de vida. Antes devemos pensar nas consequências, prever a nova realidade que devemos viver, para tomar a decisão correta e segui-la até o fim.(Lc 14, 31-33).
1O CASO: Sucedeu que andando eles no caminho, disse-lhe alguém: acompanhar-te-ei, Senhor, onde quer que fores (57). Factum est autem ambulantibus illis in via dixit quidam ad illum sequar te quocumque ieris. E lhe disse Jesus: As raposas têm covas e as aves do céu ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça (58). Et ait illi Iesus vulpes foveas habent et volucres caeli nidos Filius autem hominis non habet ubi caput reclinet.Aproveita Lucas que Jesus está a caminho de Jerusalém para apresentar o primeiro discípulo que quer seguir Jesus para onde quer que ele for. Parece uma proposta válida e totalmente desinteressada. A resposta de Jesus mais parece reprimir essa vontade que incentivar o ânimo do mesmo. Seguindo o modo de falar através de parábolas, Jesus lhe mostra a verdadeira realidade: Não devemos esperar de Jesus riquezas e bem-estar. Mais do que uma exposição da pobreza, é a demonstração da vida e caráter itinerante e viajante que corresponde ao discípulo, isto é, ao que se entrega à evangelização. São os mathetoi [no caso os doze] que Jesus envia a anunciar o evangelho, (Mt 10, 1-15;Mc 6, 5-13; Lc 9, 1-6) e também os setenta e dois em Lc 10, 1-12. Isso vemos especialmente em Paulo e suas viagens apostólicas. Sabemos também como Pedro e outros discípulos viajavam nas suas correrias apostólicas de modo que na Dídaque se fala de que os apóstolos não deverão se deter mais do que um só dia ou dois. Se ficar três dias será um falso profeta. Ele só poderá levar pão e não dinheiro. Se pedir dinheiro será um falso profeta (XI, 5-6). Porque até animais que eram praticamente nada, como as raposas (Lc 13, 32) que à noite percorriam os campos, tinham tocas, e as aves do céu, como poderiam ser os pardais, que na realidade são vendidos por um vintém (Lc 9, 10) e que tanto se movem, possuíam ninhos, estavam em melhores condições que o Filho do Homem e seus discípulos com respeito a ter um lar fixo, que nem podia ser comparado com uma pedra para descansar e dormir. Outro assunto é a pobreza. Nos tempos de Jesus apareciam mensageiros de deuses que percorriam as regiões pagãs próximas da Galileia, como um tal Luciano, enviado pela deusa Artagatis, que reunia donativos para os sacrifícios de seu santuário. Comprou um asno para carregar os donativos e no fim fez uma reata dos mesmos com os quais entrou no santuário. Em cada viagem trazia setenta sacos cheios. Por isso Jesus compara o seu suposto lar com uma pedra onde pode reclinar a cabeça para dormir, como era costume fazê-lo na época entre os peregrinos que subiam a Jerusalém. Assim termina esta lição de disponibilidade e austeridade que segundo Mateus (8, 19) foi dada a um escriba, ou como diríamos hoje a um advogado ou doutor em leis.
2O CASO: Porém, disse a outro: Acompanha-me. Mas ele disse: Senhor, permite-me primeiro enterrar meu pai (59). Ait autem ad alterum sequere me ille autem dixit Domine permitte mihi primum ire sepelire patrem meum. Jesus convida a uma pessoa a segui-lo. A resposta deste é que deve primeiro enterrar seu pai(59). Esta resposta pode indicar duas coisas: 1°) Que nem todos os que Jesus chamou responderam tão pronto e generosamente como Pedro e André ou os filhos do Zebedeu (Mc 1, 16-20) nem como Mateus-Levi (Mc 2, 14), porque houve alguns que rejeitaram o convite do Mestre.2°) Que as desculpas poderiam ser consideradas como razões realmente poderosas como acontece no caso atual. Enterrar o pai era um mandato tido como sagrado pela lei e a Mishná. Até o sumo sacerdote podia tocar o cadáver do pai para enterrá-lo. Todo aquele que deixa pernoitar um morto quebranta um preceito negativo – diz a Mishná. No nosso caso, o pai tinha falecido recentemente ou o convidado falava de cuidar do velho pai de modo que somente após a morte do mesmo poderia se ver desobrigado de um dever exigido pelo mandamento de honrar pai e mãe? É provável que seja esta a circunstância no caso: o velho pai precisava do filho, talvez único, para passar seus últimos anos como um ancião feliz a quem o filho servia de apoio na velhice até a hora da morte. Porém lhe disse Jesus: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos. Mas tu afastando-te, anuncia o reinado de Deus (60). Dixitque ei Iesus sine ut mortui sepeliant mortuos suos tu autem vade adnuntia regnum Dei. A resposta de Jesus é surpreendente e até de difícil interpretação: deixa os mortos enterrar seus próprios mortos. Tu vem e anuncia o reino de Deus(60). Que significa? Que um morto, deve enterrar um ser passivo como ele, pesado demais até para um vivo forte poder manejá-lo sozinho? Temos que pensar numa metáfora. Jesus considera como mortas aquelas pessoas que não se deixam guiar pelo anúncio do evangelho. Não são unicamente surdos e cegos (Mt 13, 14-15) que se comportam como coisas inertes com coração de pedra (Ez 11, 19), ou seja, não são vivos. Eles que façam e vivam segundo os antigos preceitos e tradições. Os discípulos de Cristo, porém, devem se orientar por critérios diferentes. Um pai, uma mãe, nunca deve interferir numa vocação como pedra de escândalo, como morto que pertence ao mundo dos mortos. De fato, um pai que se opõe ao evangelho já está morto e nada se pode fazer por ele.
<3624> mou <3450>Luke 9:61 et ait alter sequar te Domine sed primum permitte mihi renuntiare his qui domi sunt.
3O Caso: Disse, pois também o outro: Deixa-me despedir-me primeiro dos de minha casa. (61). Et ait alter sequar te Domine sed primum permitte mihi renuntiare his qui domi sunt. A resposta de Jesus é que não é digno do Reino de Deus quem após iniciar o trabalho se cansa do mesmo e desiste voltando a vista atrás. O trabalho de arar exige sempre olhar para a frente. Quem nessa tarefa volta a vista atrás é o mesmo que ter sua vontade ocupada em princípios opostos. Ou seja, está mais pendente de outra coisa que a do trabalho iniciado. O provável provérbio é que tenha alguma relação com o discipulado de Eliseu no tempo em que Elias o chamou quando estava arando no campo (1 Rs 19, 19-21), embora não pareça que seja esta a razão, pois Eliseu voltou e depois de matar os bois, seguiu Elias.
PISTAS: 1) Existem duas maneiras de receber Jesus: como hóspede ou como discípulo e colaborador. Elas estão descritas no evangelho: A aldeia samaritana se negou por razões religiosas. É possível que muitas vezes tenhamos feito o mesmo quando o homem necessitado à nossa frente seja um ateu ou um herege. Cristo nos mostra que não é essa a maneira de recebê-lo, já que em todo necessitado está sua pessoa. Como discípulos e colaboradores na missão divina, devemos estar prontos a partilhar da vida e do destino de Jesus, reconhecendo-o e aceitando sua pessoa como um modo existencial de vida.
2) Não se trata de aderir a uma doutrina, mas de seguir um Mestre ligando-se a sua pessoa para sempre. Essa vida em comum com o mestre transforma o discípulo [= aprendiz] em auxiliar, em enviado e colaborador, definitivamente em apóstolo, para difundir a essência de sua doutrina que é a disponibilidade às ordens do alto. Se as antigas profecias se cumprem perfeitamente em Jesus é porque este se torna obediente à voz das mesmas que é a voz do Pai. Se a vida e a doutrina de Jesus se cumprem em seus discípulos será porque estes se tornam dóceis à sua voz e seguem fielmente seus mandatos.
3) Nenhum valor ou lei humana deve ser anteposta ao convite, ao segue-me que uma vez escutado, se transforma em lei absoluta em decisão incondicional e definitiva à pessoa de Jesus que exige além da fé em suas palavras o amor com o qual o contemplamos e servimos. Podem ser ouvidas e admiradas as palavras dos grandes filósofos e pensadores, mas não por isso suas pessoas são dignas de nosso reconhecimento e amor.
4) Vemos como Jesus não recusa o martírio e se dirige a Jerusalém para aí dar testemunho [=martírio] de seu amor ao Pai e de seu sacrifício em favor dos homens. A cruz será para ele motivo de desejo e aspiração como quem ambiciona uma vitória final e importante. Nossa história é bem diferente: até a pequena cruz do dia-a-dia nos cansa e aflige quando deveríamos estar contentes porque é aí onde mais nos aproximamos de Jesus: padecer e não morrer dizia uma alma santa, o que para nós é loucura, mas é a loucura da cruz de que fala Paulo.