Teologia da Sacrosanctum Concilium

Pe. Gregório Lutz CSSp

A liturgia é uma realidade tão rica que ela deve ser contemplada de vários e diferentes pontos de vista, de fora e de dentro. Uma abordagem só de fora não é suficiente, embora a liturgia seja essencialmente uma realidade acessível aos nossos sentidos. Mas este é apenas um lado da medalha. As palavras e os ritos, os gestos e os símbolos, tudo que fala aos nossos sentidos, expressa aquilo que é acessível aos olhos da fé: a ação divino-humana que se realiza quando celebramos o mistério de Cristo. A teologia litúrgica é o estudo da liturgia em sua totalidade. Através dela conhecemos sobretudo a natureza da liturgia que, por sua vez, tem também diversos aspectos e dimensões.

Nossa tarefa é estudar a teologia da liturgia da constituição do Concílio Vaticano II sobre a liturgia, a “Sacrosanctum Concilium”. Também este documento conciliar contempla a liturgia em sua integridade. e em suas diferentes dimensões. Basicamente ela faz isso logo no primeiro item da primeira parte do seu primeiro capítulo, nos artigos 5 a 8, aos quais o Compêndio do Vaticano II organizado por Boaventura Kloppenburg deu o titulo: “A natureza da liturgia”. Podemos sem problema considerar estes artigos como a teologia litúrgica do Concílio Vaticano II. Iremos nos deter quase exclusivamente nestes artigos da SC, já por causa do limite de tempo que nos é dado, mas sobretudo porque aqui encontramos todo o essencial da compreensão teológica da liturgia da “Sacrosanctum Concilium”.

Realizaremos este estudo em duas grandes partes, seguindo a própria “Sacrosanctum Concilium”: “A liturgia como momento da história da salvação” e “a liturgia como exercício do sacerdócio de Jesus Cristo”. Estarão integrados e serão acrescentados itens menores que também têm grande importância num estudo da teologia da liturgia, tanto para o documento conciliar quanto para nós. 

A liturgia – momento da história da salvação

1 – A história da salvação

A SC começa a tratar da natureza da liturgia, no seu artigo 5, lembrando em grandes linhas a história da salvação. No início data história está a vontade de Deus de “salvar e fazer chegar ao conhecimento da verdade todas as pessoas humanas”. Para conseguir isso, Deus acompanha toda a história, particularmente do seu povo eleito, comunicando-se com ele sobretudo pelos profetas, mas finalmente por seu próprio Filho. Ele completou a obra da redenção da humanidade e da glorificação de Deus principalmente pela sua morte e ressurreição. Já neste primeiro artigo debaixo do titulo “A natureza da liturgia”, o Concílio como que prolonga esta história de Deus com a humanidade dizendo que por Jesus Cristo “nos foi comunicada a plenitude do culto divino” e que “do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja”.

Nesta exposição do Vaticano II sobre a história da salvação podemos destacar várias afirmações, em vista da própria liturgia:

A vontade de Deus de salvar a humanidade, seu eterno plano de salvação, que é a fonte de toda a história que chega a seu ponto culminante na páscoa do seu Filho, revelando assim que é um Deus de amor. Este é o grande mistério da fé que celebramos na liturgia.

A santificação das pessoas humanas e a glorificação de Deus são a finalidade da história da .salvação, como também da liturgia.

Do lado aberto de Cristo na cruz nasceu a Igreja.

Nesta última afirmação vou me deter primeiro, em seguida no mistério pascal. 

2 – A origem da Igreja e da liturgia

Ao dizer que “do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja”, repetindo assim palavras de santo Agostinho, o Concílio se refere evidentemente ao relato do evangelista são João sobre a morte de Jesus. Para dizer que Jesus morreu ele escreveu: “Entregou o espírito” (Jo 19,30). Muitos dos santos padres viam nisso uma segunda afirmação do evangelista, a saber que Jesus entregou, na hora da sua morte, o Espírito Santo. Esta interpretação certamente se baseia no contexto do quarto evangelho.

Como lemos no sétimo capítulo do evangelho de são João, na festa do templo Jesus anunciou água viva. O evangelho explica que Jesus estava falando do Espírito, que ainda não havia, porque Jesus ainda não foi glorificado (Cf. Jo 7,37-39) .A glorificação de Jesus, no entanto, coincide para são João com a exaltação do Filho do Homem na cruz (Cf. Jo 3, 14s). Na base desta interpretação se compreende bem que o Ressuscitado na tarde do dia da ressurreição soprou sobre os apóstolos e lhes disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22).

Mas devemos dar um passo a mais. Em antigas e recentes representações iconográficas da morte de Jesus ilustra-se a abertura do lado aberto pela lança assim que uma figura feminina está debaixo da cruz com um cálice na mãos. Para dentro deste cálice jorram o sangue e a água. Os padres da Igreja interpretam também a abertura do lado de Jesus como derramamento do Espírito Santo, vendo na mulher com o cálice a Igreja e na água e no sangue os sacramentos do batismo e da eucaristia. Como lemos na “Sacrosanctum Concilium”, em santo Agostinho e em muitos outros padres da Igreja, este derramamento do Espírito é o nascimento da Igreja como sacramento universal de salvação, do qual os sete sacramentos, também os sacramentais e as outras celebrações litúrgicas, são como que um desdobramento. A Igreja e a liturgia nasceram do coração de Jesus.

Já que estamos falando em nascimento da Igreja, parece-me bom completar esta visão a partir do evangelho de são Mateus, onde se pode ver como ela foi concebida. Lemos neste evangelho, no fim do capítulo 9, que Jesus, percorrendo as cidades e os povoados, ensinando o evangelho do Reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades, “ao ver a multidão teve compaixão dela, porque estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor”. Então ele pediu aos discípulos que rezassem, para que o Senhor enviasse operários à messe; mas também e sobretudo ele chamou os doze e “deu-lhes autoridade de expulsar os espíritos imundos e de curar toda sorte de males e enfermidades” (Ml 9,35- 10,1). Estes doze são, evidentemente, o núcleo da futura Igreja. Não será permitido entender este texto no sentido de que a Igreja foi concebida pela compaixão de Jesus, no seu coração compassivo? Podemos assim agora concluir que são João e são Mateus têm, no fundo, a mesma visão da origem da Igreja.

E são Lucas no fundo não discorda de são João e são Mateus sobre a origem da Igreja pelo derramamento do Espírito Santo, embora ele a descreva de modo diferente.

Parece-me que a “Sacrosanctum Concilium” confirma esta visão da origem da Igreja e com ela da liturgia, dizendo no artigo 6 que a Igreja, que, como vimos no artigo 5, nasceu na cruz, “no dia de pentecostes apareceu ao mundo”. Para a interpretação do texto citado de são Mateus, que apresentei, vendo ai a concepção da Igreja no coração de Jesus, não posso indicar referências, mas penso que esteja em harmonia com o contexto que citei. 

3 – O mistério pascal

Depois de ter esboçado a história da salvação, o Concílio Vaticano II diz em sua constituição sobre a liturgia: “esta obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, da qual foram prelúdio as maravilhai operadas no povo do antigo testamento, completou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos mor tos e gloriosa ascensão. Por este mistério, Cristo, ‘morrendo, destruiu a nossa morte e ressuscitando, recuperou a nossa vida’ (Prefácio da páscoa). Pois do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja. Portanto, assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também ele enviou os apóstolos, cheios do Espírito Santo, não só para pregarem o evangelho a toda criatura, (…) mas ainda para levarem a efeito o que anunciavam: a obra da salvação através do sacrifício e dos sacramentos, sobra os quais gira toda a vida litúrgica. (…) Nunca, depois (…) a Igreja deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo ‘tudo quanto a ele se referia em todas as escrituras’ (Lc 24,27), celebrando a eucaristia, na qual se torna presente a vitória e o triunfo de sua morte (Cone. de Trento) e, ao mesmo tempo, dando graças ‘a Deus pelo dom inefável’ (2 Cor 9,15) em Jesus Cristo, ‘para louvor de sua glória’ (Et 1,12), pela força do Espírito Santo” (SC 5s).’

O mistério pascal é, portanto, a páscoa de Jesus que ele viveu, há quase dois mil anos, sua paixão, morte, ressurreição e ascensão. Esta páscoa, no entanto, é o ponto culminante de. toda a vida e obra pascal de Jesus. E devemos abrir o horizonte ainda mais: Ela tinha seus prelúdios no antigo testamento e se completará no fim dos tempos. Ela é realmente o centro de toda a história da salvação.

No entanto, desde que Jesus, que se tinha tornado um de nós pela encarnação, nos uniu a si pelo dom do Espírito Santo, que é o fruto da sua páscoa, somos um com ele e ele conosco como membros do seu corpo místico, como filhos e filhas do Pai do céu. Assim também nossa vida e história são vida e história de Cristo glorioso. Os bispos latino-americanas reunidos em Medellin, no ano de 1968, disseram claramente que Cristo está “ativamente presente em nossa história” e que “não podemos deixar de sentir seu passo que salva quando se dá o verdadeiro desenvolvimento” (Docum. de Medellin, introdução n. 5-6). Portanto, nosso sofrer e vencer são participação da morte e ressurreição de Cristo, da sua páscoa. A páscoa de Cristo continua na páscoa do povo.

Ora, é esta páscoa de Cristo e do povo que celebramos quando na liturgia anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreição, até que ele venha. É como também os bispos em Medellin constataram: “A presença do mistério da salvação, enquanto a humanidade peregrina até sua plena realização na parusia do Senhor, culmina na celebração da liturgia eclesial” (Cap. 9,2).

Ainda uma outra dimensão do mistério pascal e de sua celebração foi destacada em Medellin, quando os bispos ai reunidos declararam: “O gesto litúrgico não é autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre renovado para ter os sentimentos de Jesus Cristo e uma continua conversão” (9,3). Logo em seguida lemos no documento de Medellin: “Na hora atual de nossa América Latina, como em todos os tempos, celebração litúrgica coroa e comporta um compromisso com a realidade humana (…) precisamente porque toda a criação está inserida no desígnio salvador” (9,4).

Desta maneira Medellin explicitou e acentuou uma constatação que o Concílio Vaticano II já tinha feito, dizendo que “a liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força” (SC 10). Embora o Concílio tenha falado da liturgia como cume e fonte da ação da Igreja, é evidente que a liturgia, na qual celebramos o mistério pascal, é o ponto culminante também de toda a vida da Igreja, e não apenas da Igreja, e sim de toda a humanidade e de sua história. 

4 – A liturgia, momento da história da salvação

Depois de ter apresentado no Artigo 5 a história da salvação que culmina na morte e ressurreição de Jesus, assim como o nascimento da Igreja e com ela da liturgia, a “Sacrosanctum Concilium” passa a tratar, no artigo 6, da liturgia como celebração desta história, particularmente da obra salvífica de Jesus Cristo, na liturgia.

Lemos no início deste artigo: “Assim como Cristo foi enviado pelo Pai , assim também ele enviou os apóstolos, cheios do Espírito Santo, não só para pregarem o evangelho (…) mas ainda para levarem a efeito o que anunciavam: a obra da salvação através do sacrifício e dos sacramentos, sobre os quais gira toda a vida litúrgica”. A afirmação principal deste texto é retomada no início do artigo 7 de constituição: “Para levar a efeito obra tão importante Cristo está sempre presente em sua Igreja, sobretudo na ações litúrgicas”. Assim se coloca para nós a questão: Se Jesus nos salvou, o que a liturgia acrescenta a esta obra? O que significa que ela deve ser levada a efeito?

Não se trata de completar ou continuar a obra de Cristo, como se ela não tivesse sido perfeita. Deus fez através de Jesus tudo para a nossa salvação. Mas ele nos quer salvar como seres livres. Livremente nos colocamos contra Deus pelo pecado, livremente devemos também aceitar a salvação que Deus operou para nós. Precisamente assim a salvação pode ter efeito, se nós nos voltamos para Deus, se ouvimos sua palavra e a pomos em prática e se acolhemos o presente de uma nova vida, de uma nova história, do Reino que Jesus veio anunciar. Esta acolhida e aceitação acontecem por uma vida em obediência a Deus, mas de modo especialmente consciente e intenso na liturgia. É como também a constituição sobre a liturgia diz: “Para levar a efeito obra tão importante (a obra da salvação) Cristo está sempre presente em sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas” (SC 7). Portanto, dizendo “sim” a Deus, sua vontade e sua obra, e sobretudo celebrando na liturgia este nosso sim vivido, é que se leva a efeito a salvação. Assim a liturgia cristã, ela mesma um fato histórico, se torna momento privilegiado da história da salvação.

Seria bem compreensível que alguém pergunte: Como é que na liturgia pode acontecer salvação? Acabamos de ver que a liturgia não é uma ação meramente humana. Cristo está presente na celebração litúrgica como agente principal. Devemos igualmente lembrar que toda ação litúrgica acontece, como nos diz o Vaticano II, na força do Espírito .Santo (SC 6). Mas é bom recorrer ainda ao conceito de memória, se queremos entender a eficácia salvífica da liturgia. Memória litúrgica não é um simples lembrar. Lembramos, sim, a páscoa histórica de Cristo e do seu povo, mas a lembramos na presença de Cristo e na força do Espírito Santo. Lembrando a pessoa e a obra de Cristo nos abrimos para ele. Como ele diz no livro do Apocalipse, ele está à porta e bate. Se abrimos a porta, ele entra para cear conosco (cf. Ap 3,20). Isso quer dizer que ele entra em comunhão íntima conosco, e esta comunhão de vida entre Deus e nós é salvação.

Ninguém pode duvidar que tal liturgia seja um culto agradável a Deus, suposto que celebramos ritualmente aquilo que vivemos. Não é apenas um fazer externo, mas a expressão de uma atitude interna e da nossa vida do dia-a-dia. O que assim vale de cada um de nós, vale das nossas famílias, das nossas comunidades eclesiais, vale da Igreja e de certo modo de toda a humanidade e de sua história. Todas as pessoas de boa vontade que vivem o amor e a solidariedade, que lutam pela justiça e a paz, estão fazendo a vontade de Deus. Embora muitos não tenham consciência de sua vida pascal em união com Jesus Cristo e não a celebrem na liturgia cristã ou talvez de maneira alguma, também neles é levada a efeito a obra salvífica de Cristo. Toda a história da humanidade é história da salvação, porque nela se leva a efeito a obra redentora de Cristo até o fim dos tempos. A liturgia é um momento privilegiado desta história.

Sendo assim, não poderíamos dispensar toda a liturgia e apenas viver um culto espiritual? Não, porque desde Caim e Abel a humanidade, de modo particular – para não falar em outras religiões – o povo da antiga aliança, celebrava sua vida e história. Assim fez também Jesus, e ele nos mandou fazer o mesmo em sua memória. Celebrar ë uma dimensão essencial e indispensável de uma vida verdadeira e plenamente humana. Na festa, celebrando a vida, vivemos mesmo. Por isso, não há nada mais humano do que celebrar na liturgia a verdadeira vida de cada um de nós e de toda a humanidade que Jesus nos mereceu por sua morte e ressurreição. 

A liturgia, exercício do sacerdócio

Conforme acabamos de ver, o Concílio Vaticano II explica a liturgia em primeiro lugar como momento da história da salvação. Mas este não é o único aspecto a ser considerado por quem quer conhecer a natureza da liturgia. Sobretudo quando o Vaticano II faz aquela descrição da liturgia que geralmente é considerada como definição, várias outras dimensões são mencionadas, entre as quais se destaca aquela de a liturgia ser o exercício do sacerdócio de Cristo e dos cristãos. Aprofundaremos primeiro esta dimensão e em seguida duas outras que são também essenciais para um conhecimento da natureza da liturgia: sua dimensão simbólica e as duas vertentes da ação litúrgica. Outro aspecto importante da liturgia é que nela participamos da liturgia celeste.

Antes de entrarmos no estudo das diferentes dimensões, vejamos o texto conciliar em questão. Embora não seja uma definição em sentido estrito, porque o Concílio julgou que definir fosse tarefa da ciência litúrgica e não do magistério, ele é de suma importância: “Com razão (…) a liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem; e é exercido o culto público integral pelo corpo místico de Cristo, cabeça e membros” (SC 7). 

l. O sacerdócio de Jesus Cristo

Jesus Cristo praticou em sua vida e preconizou o culto em espírito e verdade, o culto que Deus tinha prescrito a seu povo ao selar a aliança no Monte Sinai. A carta aos hebreus, descrevendo o sacerdócio novo, único e definitivo de Jesus Cristo, diz: “Ao entrar no mundo, ele (Jesus Cristo) afirmou: ‘Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, – no rolo do livro está escrito a meu respeito – eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade’. Assim, ele declara, primeiramente: ‘Sacrifícios, oferendas, holocaustos, sacrifícios pelo pecado, tu não quiseste, e não te agradaram’. Trata-se, notemo-lo bem, de oferendas prescritas pela Lei. Depois ele assegura: ‘Eis que eu vim para fazer a tua vontade’. Portanto, ele suprime o primeiro para estabelecer o segundo. E graças a esta vontade é que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas” (Hb: 10, 5-10). É o culto da vida de Jesus que ele completou pela sua morte na cruz e cuja aceitação o Pai manifestou ressuscitando seu Filho da morte. Como Jesus entrou pela sua morte no santuário verdadeiro, o céu, assim ele está agora e eternamente diante do Pai, entregando-se em eterno amor obediente, e associa a si aqueles que na terra estão em comunhão com ele, sobretudo aqueles que pelo batismo se tornaram com ele e nele sacerdotes, os membros do seu corpo místico. Em sua vida e especialmente quando eles celebram a liturgia, Jesus está presente e agindo, como diz a constituição sobre a liturgia, ” no sacrifício da missa, tanto na pessoa do ministro, ‘pois aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora se ofereceu na cruz’ (Concílio de Trento), quanto sobretudo sob as espécies eucarísticas. Presente está pela sua força nos sacramentos, de tal forma que quando alguém batiza é Cristo, mesmo que batiza. Presente está pela sua palavra, pois é ele mesmo que fala quando se lêem as sagradas escrituras na igreja. Está presente finalmente quando a Igreja ora e salmodia, ele que prometeu: ‘Onde dois ou três estiverem reunido em meu nome, aí estarei no meio deles’ (Mt 18,20) (SC 7). Evidentemente, os membros do seu corpo que participam do seu sacerdócio, devem celebrar como ele, quer dizer, celebrar aquilo que vivem, sua obediência ao Pai e entrega pelos irmãos, exatamente como Jesus na última ceia celebrou ritualmente seu sacrifício vivido desde a sua encarnação até a morte na cruz.

2 – O sacerdócio dos cristãos

Ao selar a aliança no deserto do Sinai com o povo libertado da escravidão do Egito Deus tinha dito: “Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade particular entre todos os povos… Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” Ex 19,5-6). É este texto que ressoa nas palavras de São Pedro em sua primeira carta: “Dedicai-vos a um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo”, e: “Vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1 Pd 2,5.9). No mesmo sentido diz ó livro do apocalipse que Jesus “fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai” (Ap 1,6). Como no antigo, assim também no novo testamento, este sacerdócio é um sacerdócio espiritual que, no entanto, não exclui, e sim inclui o oferecimento de sacrifícios rituais, na Igreja o sacrifício eucarístico. É igualmente claro que o exercício deste sacerdócio se estende a toda a liturgia, a todas as celebrações. E, finalmente, não há dúvidas de que este povo sacerdotal são todos os batizados. Como no batismo nascemos pelo dom do Espírito Santo como filhos e filhas de Deus em Jesus Cristo, assim somos no batismo ungidos sacerdotes no sumo sacerdote Jesus Cristo.

E o sacerdócio dos ordenados? Como diz o termo que o especifica, “sacerdócio ministerial”, ele está a serviço do sacerdócio comum de todos os batizados. Os ordenados ajudam todo o povo dos batizados a viver e exercer o seu sacerdócio espiritual e ritual.

Sobretudo na liturgia se exerce o sacerdócio de Jesus Cristo, do qual participam todos os batizados e, de modo particular, os ordenados. É neste sentido que a constituição sobre a liturgia fala da “plena, cônscia e ativa participação das celebrações, que a própria natureza da liturgia exige e à qual, por força do batismo, o povo cristão, geração escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo de conquista tem direito e obrigação” (SC 14). No mesmo sentido a constituição diz ainda: “As ações litúrgicas (…) são (…) celebrações da Igreja, que é o sacramento da unidade, isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos bispos. Por isso, estas celebrações pertencem a todo o corpo da Igreja, e o manifestam e afetam” (SC 26). 

3 – A liturgia como ação simbólico-sacramental

A constituição sobre a sagrada liturgia diz que pelo exercício do sacerdócio de Jesus Cristo “mediante sinais sensíveis é, de modo particular a cada sinal, realizada a santificação do homem” e a glorificação de Deus (SC 7).Não se pode aqui apresentar toda uma antropologia e teologia de sinal e símbolo. Mas isso nem é necessário para uma compreensão daquilo que o Concílio queria dizer sobre a natureza da liturgia. A constituição não fala de simples sinais que apenas manifestam uma realidade ou a ela remetem. Ela fala de sinais que também realizam aquilo que manifestam ou significam. Tais sinais chamamos na liturgia e na ciência litúrgica geralmente de símbolos. A realidade sensível do símbolo é também na liturgia normalmente uma coisa, um objeto ou uma ação sensível que manifesta e realiza o mistério celebrado ou a salvação. Assim, por exemplo, a comunidade reunida em assembléia litúrgica, não apenas remete ao corpo místico de Cristo, mas é este corpo. E quando alguns membros desta assembléia exercem determinados ministérios, são os membros do corpo de Cristo que o fazem. Naquele que preside, a cabeça deste corpo, Jesus Cristo mesmo, está presente e agindo, falando para nós em nome do Pai do céu, ou levando a nossa oração a Deus. Quando o presidente da celebração eucarística diz: “Isto é o meu corpo que será entregue por vós”, é Jesus Cristo mesmo que diz isso; e então a espécie do pão não nos remete apenas ao corpo de Cristo, mas é o corpo de Cristo eucarístico. Convém lembrar ainda, neste momento, que graças a seu caráter simbólico a liturgia pode manifestar aquilo que nela se realiza muito melhor do que o poderiam as palavras. Por exemplo, um aperto de mão ou um abraço podem dizer muito mais do que apenas palavras.

Falando assim do caráter simbólico da liturgia, falamos de sua sacramentalidade. Os sete sacramentos são ações simbólicas que realizam o que significam. Desta sacramentalidade participam todas as ações litúrgicas, também os agentes da celebração, os objetos que se usam, e até o espaço e o tempo em que a liturgia se realiza. 

4 – Na liturgia Deus nos santifica e nós glorificamos a Deus

Na história de Deus com a humanidade realiza-se o eterno plano do amor divino: desde a criação e sobretudo através da obra da salvação do mundo, até a última vinda do Senhor na gloria – num dinamismo que costumamos  considerar como descendente. A este dinamismo corresponde o ascendente, em que a humanidade, enquanto conhece Deus e o reconhece como seu criador e salvador lhe responde em louvor e ação de graças, não apenas em palavras, mas sobretudo pela vida e ação conforme a vontade de Deus, caminhando assim para a plenitude do Reino. A mesma vertente dupla observamos na liturgia. De um lado, celebramos a ação santificadora de Deus, principalmente na proclamação da Palavra, ou, por exemplo, no perdão e no novo nascimento com que Deus nos agracia, talvez o mais evidentemente na eucaristia, no Corpo do Senhor entregue e no seu Sangue que bebemos. A este dinamismo descendente da nossa santificação corresponde, também na liturgia, outro, o ascendente, o da glorificação de Deus, em nossa oração litúrgica, quando levantamos nossas mãos em sinal de elevar os corações a Deus, de modo particular quando oferecemos o sacrifício eucarístico e pedimos que o Pai nos aceite com seu Filho.

Evidentemente, em tudo isso, em todas as nossas ações simbólico-sacramentais, sempre quando exercemos o nosso sacerdócio na liturgia, devemos expressar com autenticidade o mistério que celebramos e, da nossa parte, aquilo que somos e vivemos, nossa atitude interior. Só assim nossa liturgia será um culto agradável a Deus, adoração em espírito e verdade. Tal liturgia nunca pode ser uma ação meramente humana, mas sempre se realizará por força do Espírito Santo e em sintonia com a ação de Jesus, nosso sumo sacerdote. 

5 – Na liturgia terrena participamos da liturgia celeste

Geralmente, quem preside a missa introduz o Santo, convidando a cantá-lo em comunhão com os anjos e os santos do céu. Esta não é uma linguajem figurativa, mas sacramental-real. Para toda a liturgia vale o que a constituição do Concílio Vaticano II sobre a liturgia diz da liturgia das horas: “O sumo sacerdote do novo e eterno testamento, Cristo Jesus, assumindo a natureza humana, trouxe para esse exílio terrestre aquele hino que é cantado por todo o sempre nas habitações celestes” (SC 83). De fato, ele que está à direita do Pai, nos fala na proclamação e explicação da Palavra e com ele e por ele nós nos dirigimos ao Pai, unidos no Espírito Santo; estando, portanto, em íntima comunhão com as três pessoas da Santíssima Trindade, participando da sua ação, como partilhamos também a vida divina, por força do nosso batismo. Por isso, a constituição sobre a liturgia pode com todo direito dizer: “Na liturgia terrena, antegozando, participamos da liturgia celeste, que se celebra na Cidade Santa de Jerusalém, para a qual, peregrinos, nos encaminhamos” (SC 8).

Certamente poder-se-ia dizer muito mais sobre a liturgia. Mas também não há dúvida de que o Concílio Vaticano II no início da constituição sobre a liturgia, nos artigos aos quais nos referimos neste estudo, nos diga aquilo que é o mais pertinente, o essencial que se possa e deva dizer sobre a natureza da liturgia: Que ela é um momento da história da salvação, porque nela se leva a efeito a obra redentora de Jesus Cristo, pelo exercício do seu sacerdócio, da cabeça e dos membros do seu corpo místico.

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