Sobre a pena de morte no Catecismo da Igreja Católica

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

 

O Santo Padre recebeu em audiência, no dia 11 de Maio p.p., o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Luís Ladaria, durante a qual aprovou a nova redacção sobre a “pena de morte” no Catecismo da Igreja Católica (n. 2267).

O novo Rescrito do Papa, ou seja, a decisão papal sobre a questão da pena de morte, foi publicado na manhã do dia 2 de Agosto, no Vaticano.

Seguidamente, a Congregação para a Doutrina da Fé enviou aos Bispos uma Carta explicando a razão da nova redacção do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica.

Oferecemos a seguir o texto da Carta, tomado do site do Vaticano www.vatican.va e revisto de acordo com o original italiano.

 

Carta aos Bispos a respeito da nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte

 

  1. O Santo Padre Francisco, no Discurso por ocasião do vigésimo quinto aniversário da publicação da Constituição ApostólicaFidei depositum,com a qual João Paulo II promulgou o Catecismo da Igreja Católica, pediu que fosse reformulado o ensinamento sobre a pena de morte, de modo a recolher melhor o desenvolvimento da doutrina sobre este ponto nos últimos tempos [1]. Este desenvolvimento apoia-se principalmente na consciência cada vez mais clara na Igreja acerca do respeito devido a toda a vida humana. Nesta linha, afirmava João Paulo II: «Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus constitui-Se seu garante» [2].
  2. É nesta perspectiva que se compreende a atitude em relação à pena de morte, afirmada cada vez mais amplamente no ensinamento dos pastores e na sensibilidade do povo de Deus. Se, de fato, a situação política e social do passado tornava a pena de morte um instrumento aceitável para a tutela do bem comum, hoje a consciência cada vez mais viva de que a dignidade de uma pessoa não se perde nem sequer depois de ter cometido crimes gravíssimos, a compreensão aprofundada do sentido das sanções penais aplicadas pelo Estado e o desenvolvimento dos sistemas de detenção mais eficazes que garantem a indispensável defesa dos cidadãos, contribuíram para uma nova compreensão que reconhece a sua inadmissibilidade e, por conseguinte, pede a sua abolição.
  3. Neste desenvolvimento, é de grande importância o ensinamento da Carta encíclicaEvangelium vitaede João Paulo II. O Santo Padre incluía entre os sinais de esperança de uma nova civilização da vida «a aversão cada vez mais difundida na opinião pública à pena de morte, mesmo vista só como instrumento de “legítima defesa” social, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir» [3]. O ensinamento da Evangelium vitae foi recolhido depois na editio typica do Catecismo da Igreja Católica. Neste, a pena de morte não se apresenta como uma pena proporcionada à gravidade do delito, mas justifica-se somente se fosse «a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor», embora de fato «os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes» (n. 2267).
  4. João Paulo II interveio também em outras ocasiões contra a pena de morte, apelando quer ao respeito da dignidade da pessoa quer aos meios que possui a sociedade moderna para se defender do criminoso. Assim, naMensagem natalíciade 1998, ele desejava «no mundo o consenso quanto a medidas urgentes e adequadas … para abolir a pena de morte» [4]. No mês seguinte, nos Estados Unidos, repetia: «Um sinal de esperança é constituído pelo crescente reconhecimento de que a dignidade da vida humana nunca deve ser negada, nem sequer a quem praticou o mal. A sociedade moderna possui os instrumentos para se proteger, sem negar de modo definitivo aos criminosos a possibilidade de se redimirem. Renovo o apelo lançado no Natal, a fim de que se decida abolir a pena de morte, que é cruel e inútil» [5].
  5. O impulso em empenhar-se pela abolição da pena de morte continuou com os sucessivos Pontífices. Bento XVI chamava «a atenção dos responsáveis da sociedade para a necessidade de fazer todo o possível a fim de se chegar à eliminação da pena capital»[6]. E posteriormente desejava a um grupo de fiéis que «as vossas deliberações possam encorajar as iniciativas políticas e legislativas, promovidas em um número crescente de países, para eliminar a pena de morte e continuar os progressos substanciais realizados para adequar o direito penal tanto às exigências da dignidade humana dos prisioneiros quanto à efetiva manutenção da ordem pública»[7].
  6. Nesta mesma perspectiva, o Papa Francisco reiterou que «hoje a pena de morte é inadmissível, por mais grave que seja o delito do condenado»[8]. A pena de morte, quaisquer que sejam as modalidades de execução, «implica um tratamento cruel, desumano e degradante»[9]. Deve também ser rejeitada «por causa da defeituosa seletividade do sistema penal e da possibilidade de erro judicial» [10]. É a esta luz que o Papa Francisco pediu uma revisão da formulação do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, de modo que se afirme que «por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa» [11].
  7. A nova redação do n. 2267 doCatecismo da Igreja Católica, aprovada pelo Papa Francisco, situa-se em continuidade com o Magistério anterior, levando adiante um desenvolvimento coerente da doutrina católica[12]. O novo texto, seguindo os passos do ensinamento de João Paulo II na Evangelium vitae, afirma que a supressão da vida de um criminoso como punição por um delito é inadmissível, pois atenta contra a dignidade da pessoa. Tal dignidade não se perde nem sequer depois de ter cometido crimes gravíssimos. Chega-se também a esta conclusão tendo em conta a nova compreensão das sanções penais aplicadas pelo Estado moderno, que devem orientar-se antes de tudo para a reabilitação e reintegração social do criminoso. Enfim, dado que a sociedade moderna possui sistemas de detenção mais eficazes, a pena de morte é desnecessária como proteção da vida de pessoas inocentes. Certamente, permanece o dever da autoridade pública de defender a vida dos cidadãos, como sempre foi ensinado pelo Magistério e confirmado pelo Catecismo da Igreja Católica nos números 2265 e 2266.
  8. Tudo isso mostra que a nova formulação do n. 2267 doCatecismoexprime um autêntico desenvolvimento da doutrina, que não está em contradição com os ensinamentos anteriores do Magistério. De fato, tais ensinamentos podem ser explicados à luz da responsabilidade primária da autoridade pública em tutelar o bem comum, num contexto social em que as sanções penais eram compreendidas de modo diverso e se davam num ambiente em que era mais difícil garantir que o criminoso não pudesse repetir o seu crime.
  9. Na nova redação acrescenta-se que a consciência sobre a inadmissibilidade da pena de morte cresceu «à luz do Evangelho»[13]. De fato, o Evangelho ajuda a compreender melhor a ordem da criação que o Filho de Deus assumiu, purificou e levou à plenitude. O Evangelho também nos convida à misericórdia e à paciência do Senhor, que oferece a cada um tempo para se converter.
  10. A nova formulação do n. 2267 doCatecismo da Igreja Católicaquer impulsionar um firme compromisso, também através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, a fim de que seja fomentada uma mentalidade que reconheça a dignidade de toda a vida humana e sejam criadas as condições que permitam eliminar hoje o instituto jurídico da pena de morte, onde ainda está em vigor.

 

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao subscrito Secretário no dia 28 de junho de 2018, aprovou a presente Carta, decidida na Sessão Ordinária desta Congregação no dia 13 de junho de 2018, e ordenou a sua publicação.

 

Dado em Roma, na Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, no dia 1 de agosto de 2018, Memória de Santo Afonso Maria de Ligório.

 

LUIS F. CARD. LADARIA, S.I.

Prefeito

† GIACOMO MORANDI

Arcebispo Titular de Cerveteri

Secretário

 

Nova redacção sobre a pena de morte no Catecismo da Igreja Católica

 

  1. 2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa» [1], e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.

________________________

[1] Francisco, Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de outubro de 2017: L’Osservatore Romano, 13 de outubro de 2017, 5 (ed. port. 19 de outubro de 2017, 13).

 

 

[1] Cf. Francisco, Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (11 de outubro de 2017): L’Osservatore Romano (13 de outubro de 2017), 4.

[2] João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de março de 1995), n. 9: AAS 87 (1995), 411.

[3] Ibid., n. 27: AAS 87 (1995), 432.

[4] João Paulo II, Mensagem Urbi et Orbi por ocasião do Santo Natal (25 de dezembro de 1998), n. 5: Ensinamentos XXI, 2 (1998), 1348.

[5] Id., Homilia no Trans World Dome de St. Louis (27 de janeiro de 1999): Ensinamentos XXII, 1 (1999), 269; cf. Homilia da Missa na Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe na Cidade do México (23 de janeiro de 1999): «Deve-se acabar com o recurso desnecessário à pena de morte»: Ensinamentos XXII, 1 (1999), 123.

[6] Bento XVI, Exort. Apost. Pós-Sinodal Africae munus (19 de novembro de 2011), n. 83: AAS 104 (2012), 276.

[7] Id., Audiência geral (30 de novembro de 2011): Ensinamentos VII, 2 (2011), 813.

[8] Francisco, Carta ao Presidente da Comissão internacional contra a pena de morte (20 de março de 2015): L’Osservatore Romano (20-21 de março de 2015), 7.

[9] Ibid.

[10] Ibid.

[11] Francisco, Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (11 de outubro de 2017): L’Osservatore Romano (13 de outubro de 2017), 5.

[12] Cf. Vincenzo di Lérins, Commonitorium, cap. 23: PL 50, 667-669. Em referência à pena de morte, tratando sobre as especificações dos mandamentos do Decálogo, a Pontifícia Comissão Bíblica falou em “refinar” as posições morais da Igreja: «No curso da história e com o desenvolvimento das civilizações, a Igreja também refinou as próprias posições morais referentes à pena de morte e à guerra, em nome de uma reverência pela vida humana que ela acalenta sem cessar meditando a Escritura, reverência que toma sempre cada vez a cor de um absoluto. O que subentende essas posições aparentemente radicais é sempre a mesma noção antropológica de base: a dignidade fundamental do ser humano criado à imagem de Deus» (Bíblia e moralRaízes bíblicas do agir cristão, 2008, n. 98).

[13] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, n. 4.

 

Referência: CLiturgica

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