Só a Escritura?

2TIM 3,16-17 E A “SOLA SCRIPTURA”

Os defensores do princípio protestante da “Sola Scriptura” (“somente a Bíblia basta”) estão com problemas…

James Akin (The Nazareth Resource Library)
Tradução: Carlos Martins Nabeto
Fonte: www.veritatis.com.br

Se a doutrina da “Sola Scritura” fosse verdadeira, então seria possível provar todas as doutrinas baseando-se unicamente nas Sagradas Escrituras. Dessa forma, também seria possível provar que a “Sola Scriptura” encontra-se registrada na mesma Bíblia. Se isso, contudo, não puder ser feito, então a doutrina da “Sola Scriptura” estará refutada por si mesma.

Por essa razão, há um grande interesse de se encontrar na Bíblia versículos que possam ser usados para provar a teoria da “Sola Scriptura“. Essas tentativas geralmente são feitas por dois tipos de defensores da referida doutrina: os descuidados e os cuidadosos. O primeiro tipo, entretanto, parece ser a grande maioria…

Os defensores da “Sola Scriptura“, assim como muitos outros “defensores de meras idéias”, não tomam o devido cuidado com o modo de fundamentar suas posições, e pressionam para que as coisas mais insignificantes lhe sirvam para provar que suas teorias são verdadeiras. Em outras palavras, os defensores descuidados da “Sola Scriptura” citam todo gênero de passagens irrelevantes como se estas fossem prova da referida doutrina.

Citam, por exemplo, passagens dos Evangelhos onde Jesus, ao ser interrogado por seus inimigos sobre certo ponto doutrinário, lhes responde com alguma passagem do Antigo Testamento. Entretanto, essa classe de versículos só pode ser usada para provar que o Antigo Testamento possui autoridade doutrinária, mas não que seja prova da “Sola Scriptura“, uma vez que Jesus nunca disse que apenas o Antigo Testamento possui autoridade doutrinária (neste caso, teríamos que admitir a doutrina do “‘Solo’ Antigo Testamento”).

Ora, quando Jesus cita o Antigo Testamento para provar certa doutrina, está apenas querendo mostrar que essa doutrina poderia ser provada por tal passagem do Antigo Testamento. Não significa, assim, que Ele tenha considerado que todas as doutrinas poderiam ser provadas pelo Antigo Testamento ou pela Bíblia em geral. Por isso, não surpreende ver Jesus respondendo aos seus inimigos apelando para a sua própria autoridade ou ainda para outras fontes extra-escriturísticas.

A idéia de que Jesus – Palavra viva de Deus que veio trazer-nos uma nova revelação por meio de suas pregações e ensinamentos – praticava e cria na proposição de que toda a doutrina deveria ser provada apenas pela Palavra escrita de Deus é absurda em si mesma. Apesar disto, os defensores descuidados da “Sola Scriptura” não deixam de citar os exemplos onde Jesus usa a Escritura para provar uma doutrina individual, como se provassem assim que a Escritura é capaz de dar validade à todas as doutrinas.

De outro modo, os defensores cuidadosos da “Sola Scriptura” – aqueles que tentam limitar os versículos usados para fundamentar essa doutrina, deixando somente aqueles que têm como mais relevantes – são mais raros que “dentes de galinha”. Só alguns reconhecem que deixam de lado um grande número de passagens irrelevantes… Na verdade, reconhecem que só uma ou duas passagens poderiam mesmo ser usadas para fundamentar a doutrina da “Sola Scriptura“.

A maior esperança estaria em 2Tim 3,16-17, que declara: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para convencer, para corrigir e para educar na justiça. Assim o homem de Deus se encontra perfeito e preparado para toda boa obra”.

Quem recorre a esta passagem afirma que a primeira parte (“Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar”) é suficiente para fundamentar a “Sola Scriptura“. Algumas vezes a discussão ganha a forma de um apelo mais emotivo, ou seja, de que a expressão “Toda Escritura é inspirada por Deus” poderia ser melhor traduzida por “É exalada por Deus”, passando a idéia de que os católicos não crêem que a Bíblia tenha sido escrita por inspiração verbal de Deus.

Mas o uso desta primeira parte do versículo é infrutífero pois diz apenas que a Escritura é “útil” (“ophelimos” em grego) para ensinar, e não que seja obrigatória para ensinar cada ponto teológico. Exemplificando, o martelo é útil para pregar, mas isso não significa que todos os pregos só possam ser pregados com um martelo.

Um apelo mais cuidadoso para esta passagem buscaria outras partes da mesma, como por exemplo, a última parte, cuja idéia central é que “o homem de Deus se encontra perfeito e preparado para toda boa obra”.

Certa vez, um anti-católico que conheço centralizou seu discurso sobre as palavras gregas usadas nessa expressão, “perfeito” (=artios) e “preparado” (=exartizo), que ele interpretava como “suficiente”. Ele foi até capaz de citar um dicionário que aceitava a palavra “suficiente” como uma tradução possível para “artios” e um outro dicionário que apresentava “suficiente” também como possível tradução para “exartizo“. Porém, algumas observações devem ser feitas quanto a este argumento:

Os dicionários que aceitam o termo “suficiente”, citam-no como terceira ou quarta opção de tradução para os termos “artios” e “exartizo“. Nunca são tidos, porém, como a tradução preferencial, de maneira que não se pode recorrer a esse possível significado como prova final de que esse é o significado do texto, principalmente porque ainda existem mais três ou quatro possibilidades de tradução.

Todas as versões protestantes da Bíblia (publicadas em inglês – KJV, NKJV, RSV, NRSV, NIV, etc.) mostram que “suficiente” não é a tradução perfeita para os vocábulos “artios” e “exartizo“, isto é, nenhuma dessas Bíblias traduz a referida passagem para “Que o homem de Deus seja suficiente, suficiente para toda boa obra”. Nenhuma delas usa “suficiente” como tradução dos termos gregos citados…

Ocorre no texto uma hipérbole (exagero objetivando certa expressividade; ex: “chorou rios de lágrimas”), algo muito comum no pensamento hebraico e traço distintivo das cartas de São Paulo. Por exemplo, em Col 1,20, Paulo afirma que Deus quis reconciliar todas as coisas consigo mesmo em Cristo. Obviamente ele não quis dizer “absolutamente todas as coisas”, pois senão estaria dizendo que Deus teria reconciliado consigo mesmo em Cristo também a Satanás e os demais condenados (cf. 2Cor 5,19, Ef 1,10). Logo, a sentença de Paulo que afirma que a Escritura torna um ministro perfeito pode ser compreendida como mais uma hipérbole hebraica.

Se aceitarmos esse mesmo princípio de interpretação de 2Tim 3,16-17 e aplicarmos a outros textos, obteremos resultados absurdos. O princípio é: “Se X te faz perfeito, então não precisas nada mais que X”. A partir deste raciocínio temos: “Se a Escritura te faz perfeito, então somente precisas da Escritura”. Se aplicarmos este princípio a Tg 1,4 que afirma: “A constância vai acompanhada por obras perfeitas, para que sejais perfeitos, irreprováveis, sem deixar nada que desejar”, teremos que dizer que não necessitamos de qualquer outra coisa – o que inclui a Escritura – a não ser a constância. Alguém, porém, pode objetar que Tg 1,4 não emprega as palavras gregas “artios” e “exartizo“. É verdade, pois as palavras desta passagem são “teleios” e “holokleros“… Contudo, são termos ainda mais fortes que aqueles! Além disso, tal objeção também seria uma falácia pois afirmar que uma diferença de termos implica sempre em diversidade de conceito, não pode ser tido como verdadeiro. Seja como for, ninguém poderia ser capaz de elaborar uma teoria (baseada em estudos sobre o Novo Testamento) para afirmar que “artios” ou “exartizo” devem ser traduzidos para “suficiente” já que o primeiro termo aparece somente uma única vez e o segundo aparece duas vezes (o outro caso está em At 21,5 e não possui esse significado).

Os dois termos se referem ao homem de Deus e não à Escritura. 2Tim 3,17 diz que a Escritura ajuda a fazer o homem perfeito e preparado e não que a Escritura é completa (perfeita) e preparada. Para provar que a Escritura é suficiente, os defensores da “Sola Scriptura” precisam retroceder em seus argumentos partindo da suficiência de um homem até a suficiência de uma coleção de documentos. Isto acaba agregando o argumento e portanto agrega também uma exegese incerta.

Essa agregação de incertezas aumenta ainda mais os problemas para os defensores da “Sola Scriptura” porque, admitindo que algo possa ajudar a fazer um homem perfeito e preparado, deve-se pressupor que ele já tenha antes algumas outras “peças do equipamento”. Por exemplo, se um escoteiro possui todo o equipamento necessário para a sua exploração, com exceção do cantil, e vai até uma loja de material de camping e o compra, então poderá afirmar que “agora estou completo, pronto para a minha aventura”; note que isto não significa que o cantil foi o único equipamento que ele necessitava para estar pronto; na verdade, o cantil foi somente a última peça do equipamento… a certeza de que estava pronto pressupunha que ele já tinha todo o resto do equipamento necessário. Da mesma forma, a sentença que afirma que a Escritura torna o homem de Deus perfeito também pressupõe que este homem de Deus detém alguns outros artigos que pertencem à doutrina, como por exemplo, o ensinamento oral dos Apóstolos.

E mesmo quando uma pessoa adquire todo o equipamento necessário de uma mesma loja, esta não ensina como tal equipamento deve ser usado. Por isso precisa ser instruído, para saber como usá-lo. Novamente exemplificando, o fato de uma pessoa possuir todo o equipamento necessário para sobreviver numa selva ou suportar uma longa caminhada não significa que saiba usá-lo. Assim, ainda que a Escritura fornecesse a alguém todo o conhecimento básico para se fazer teologia, ela pode ser tão obscura em certos pontos que pode tornar necessário o uso da Tradição Apostólica para se chegar a uma correta interpretação. Não é possível afirmar que a Bíblia é tão clara que não seja necessária a Tradição Apostólica ou o Magistério da Igreja para interpretá-la (posição conhecida como suficiência formal da Escritura, idêntica à doutrina protestante da “Sola Scriptura“). Portanto, ainda que a Bíblia ofereça toda a base necessária para a teologia, ela não nos ensina todos os detalhes.

E ainda que alguém consiga provar que as palavras “artios” ou “exartizo” de 2Tim 3,16-17 significam “suficiente” e mostre que se aplicam, direta ou indiretamente, à Bíblia, na verdade estaria provando que a Bíblia é suficiente materialmente falando, e isto qualquer católico pode admitir, felizmente. Porém, nunca seria possível provar sua suficiência formal (isto é, a doutrina da “Sola Scriptura“).

Realmente o texto diz que a Escritura tornará o homem de Deus perfeito, mas esta perfeição não é dada ao leigo, mas ao clérigo, que recebe um treinamento especial como, por exemplo, o conhecimento da Tradição Apostólica, que o faz capaz de interpretar corretamente as Escrituras. Assim, o texto pressupõe o conhecimento que o homem de Deus já deve ter antes de tomar contato com as Escrituras.

Porém, além destas considerações (que levam em conta as traduções dos termos “artios” ou “exartizo“), há razões positivas pelas quais esta passagem (pouco importando a tradução dos referidos termos gregos) não pode ser usada para provar a teoria da “Sola Scriptura“, a começar nas primeiras palavras do v.16: a frase “Toda Escritura” é normalmente entendida pelos protestantes como “Toda a Bíblia”, ou seja, se refere a todo o cânon bíblico (AT+NT). A isto soma-se o desejo protestante de fazê-la normativa para a teologia cristã. Assim, é natural para um protestante pensar que o termo “Escritura” no singular refere-se à Bíblia por inteiro e nada mais além da Bíblia. Todavia, não é assim que a mesma Escritura compreende… A Bíblia, como obra unificada é invenção de certo período histórico e, por isso, esteve sujeita a alterações no decorrer dos tempos. Antes da existência da imprensa, a Escritura foi, extraordinariamente, uma coleção de livros individuais, agrupados em volumes. No séc. I, quando São Paulo escreveu, esta era uma coleção de uns doze rolos. Portanto, naquela época, não havia como considerar a Escritura um trabalho literário unificado como o é atualmente. Assim, como resultado de um estudo sobre o modo em que o Novo Testamento usa o termo “Escritura”, nos é revelado que esse termo, quando usado no singular – Escritura – se refere sempre a um livro específico da Bíblia ou a uma determinada passagem dentro de um livro da Bíblia; nunca se refere, portanto, à totalidade do trabalho, ao que atualmente chamamos de “Escrituras” (isto é, a Bíblia). Quando a Bíblia quer referir-se à totalidade (todas as Escrituras), usa sempre o termo no plural (As Escrituras) e nunca no singular (Escritura). Sabendo disto, poderíamos indicar a presença de uma má tradução no início da passagem de 2Tim 3,16. O termo singular de “Escritura” é usado sempre para uma passagem em particular ou para um livro da Bíblia; a frase “Toda Escritura” significaria então: “todo livro individual da Bíblia” ou “toda passagem particular da Bíblia”; em nenhum momento se faz referência ao seu sentido gramatical. Ao confrontar com o original grego de 2Tim 3,16, nos encontramos verdadeiramente diante de uma má tradução. A frase traduzida como “Toda Escritura” é um parágrafo que significa “Cada Escritura”, sendo a palavra chave “Cada” e não “Toda”. Esta é uma distinção importante e constitui o sentido gramatical da frase, dando-nos a conhecer o que significa o termo singular de “Escritura” (porque certamente cada livro e cada passagem em particular da Bíblia possui um sentido gramatical). Quando Paulo quis referir-se à totalidade das Escrituras usou uma frase diferente em grego – algo assim como “hai pasai graphai” (“a totalidade das Escrituras”) e não “pasa graphe“, a qual significa simplesmente “cada Escritura” (fato este que um dos maiores defensores do uso de 2Tim 3,16-17, o anti-católico James White, teve que admitir publicamente). Isto é importante porque impossibilita totalmente o uso desta passagem para provar a teoria da “Sola Scriptura” já que, se alguém tentar usá-la, a única coisa que conseguirá provar será apenas o modo. Desta forma, se a passagem que diz “Cada Escritura é inspirada por Deus é útil para o ensinamento, etc.” prova a suficiência da Escritura, provaria realmente a suficiência que cada passagem da Escritura – ou ao menos cada livro da Bíblia – possui para a teologia. Em outras palavras, isto significaria que somente a Bíblia não é suficiente para provar cada ponto da teologia, mas que seria suficiente cada passagem ou livro em particular. Assim poderíamos fazer teologia não somente com toda a Bíblia, mas também apenas com Mateus, Marcos, Lucas ou ainda recorrer a apenas um dos livros mais breves da Escritura, como Judas ou 3João… Isto seria um completo absurdo já que nenhuma passagem ou livro em particular da Bíblia contém o que necessitamos saber para fazer teologia. Vemos então que 2Tim 3,16-17 não pode ser usado para provar a “Sola Scriptura“. Se fosse assim, mais que a “Sola Scriptura“, provaria o modo utilizado. Paulo simplesmente está dizendo que cada escritura em particular contribui para que o homem de Deus seja preparado para todas as suas tarefas ministeriais, só isso… Não diz que cada Escritura em particular é suficiente para se fazer toda a teologia.

Se formos ainda mais além, perceberemos que sempre que os protestantes citam 2Tim 3,16-17, acabam por excluir da citação os dois versículos anteriores. Isto não é bom – para eles. Se abrirmos a Bíblia nos versículos imediatemente precedentes, leremos o seguinte:

“14. E tu, permaneça fiel ao que tens aprendido e de que estás firmemente convencido, sabendo de quem o aprendeste.

15. E que desde a infância conheces as Sagradas Escrituras, que podem dar-te a sabedoria que leva à salvação mediante a fé em Cristo Jesus.

16. Cada Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para convencer, para corrigir e para educar na justiça,

17. assim o homem de Deus pode ser perfeito e preparado para toda boa obra”.

Paulo exorta a Timóteo a permanecer fiel àquilo que está firmemente convencido, citando duas bases para essa crença:

Timóteo sabe de quem aprendeu tudo isso: foi através do ensinamento oral do mesmo apóstolo Paulo. Nós, igualmente, temos a mesma crença de Timóteo, baseada na Tradição Apostólica.

Desde a infância, Timóteo se familiarizou com as Santas Escrituras, constituindo esta a segunda base para a sua crença.

Assim, é justamente aqui, em 2Tm 3,14-17, onde temos um duplo recurso: a Tradição Apostólica e a Escritura Apostólica. Portanto, quando os protestentes citam os versículos 16 e 17, estão citando somente a última parte de uma dupla apelação que faz referência à Tradição e à Escritura, coisa que evidentemente não prova a “Sola Scriptura“.

Finalmente, temos que concluir que todos os argumentos que apresentamos constituem uma ajuda contra aqueles que, baseados em 2Tim 3,16-17, defendem a “Sola Scriptura“. A razão pela qual se distingue a “Sola Scriptura” da opinião católica de suficiência material é a seguinte: a “Sola Scriptura” reclama que não apenas a Escritura tem toda a base de dados necessária para se fazer teologia, como também é suficientemente perspicaz (ou seja, bem clara), de maneira que não se necessita de outras informações externas (como as que provêm da Tradição Apostólica ou do Magistério) para se interpretar corretamente a Bíblia. O fato de mencionar muitos fatores que minam o uso de 2Tim 3,16-17 – cada um dos quais é fatal para se tentar usar a passagem – nos mostra que esta não é suficientemente clara para provar a doutrina da “Sola Scriptura“. Se alguém não estiver convencido do que dissemos, mas considerar como opinião válida qualquer um dos pontos que apresentamos, então restará provado que 2Tim 3,16-17 não é suficientemente clara para se provar a doutrina da “Sola Scriptura” de forma que tal citação não poderá ser usada para essa finalidade.

E assim, tendo demonstrado desde o princípio que a passagem de 2Tim 3,16-17 (que parecia ser a mais oportuna e favorável) não é suficientemente clara para provar a doutrina da “Sola Scriptura“, podemos afirmar, sem medo de errar, que nenhuma outra passagem estará apta para provar essa doutrina. Isto, então, nos mostra que a Bíblia não é suficientemente clara quanto a “Sola Scriptura“, nem que possa ser tida como verdadeira.

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