Santo Agostinho: o cristianismo como verdadeira religião

Há uma interessante discussão entre Santo Agostinho e o filósofo pagão Marcos Terêncio Varrão (116-27 a.C.), no livro “A Cidade de Deus”, do santo doutor de Hipona. Primeiro Agostinho expõe o pensamento de Varrão e depois irá argumentar a favor do cristianismo como vera religio.

Aquele filósofo tinha a visão estóica de Deus e do mundo. Deus era para ele entendido como “animam motu ac ratione mundum gubernantem” (“alma que governa o mundo por meio do movimento e da razão”). Essa alma do mundo não era objeto de culto para eles, quer dizer, verdade e religião, inteligência racional e ordenamento do culto estavam em âmbitos diferentes. Dessa forma, a religião não pertence ao âmbito da realidade (res), mas ao âmbito dos costumes (mores). Sendo assim, não foram os deuses que criaram o Estado, mas foi este que estabeleceu os deuses que deveriam ser adorados, para assim manter a ordem do Estado. A religião é pois um fenômeno político.

Segundo Varrão há três tipos de “teologia”: a theologia mythica, a theologia civilis (politikéé) e a theologia naturalis (φυσιkή). Os teólogos da primeira são os poetas, são os cantores de Deus; os teólogos da segunda são os filósofos, isto é, os sábios que, indo além do costume indagam a realidade, a verdade; os teólogos da teologia civil são os “povos”, que, na sua escolha, não aderiram aos filósofos (e à verdade), mas aos poetas, às suas formas e imagens.  A teologia mítica corresponde ao teatro, que possuía uma característica inteiramente religiosa e cultual; a teologia política corresponde à urbe, porém o espaço da teologia natural seria o cosmos. A teologia mítica teria como conteúdo as fábulas criadas pelos poetas; a teologia estatal, o culto; a teologia natural responderá à pergunta: quem são os deuses?

Dessa forma, a teologia natural seria a desmitologização, o esclarecimento (Ilustração) que vê criticamente para além da aparência mítica e supera pelas ciências da natureza. Culto e conhecimento aqui se separam: o culto permanece necessário como conveniência política; o conhecimento atua como destruidor da religião, e por isso, não pode ser anunciado em público. Varrão ainda diz que a teologia natural ocupa-se da “natureza dos deuses” (que no existem) e as outras duas tratam da divina instituta hominum (as instituições divinas dos homens).  Com isso “a teologia não possui, nenhum deus, apenas ‘religião’; a ‘teologia natural’ não tem religião, apenas uma divindade”.

Santo Agostinho situa o cristianismo, segundo a tríade de Varrão, sem nenhuma dúvida no âmbito da “teologia física”, isto é, no âmbito do esclarecimento filosófico. Com isso continua a tradição antiga, de Paulo (Rom 1) aos apologistas do século II, que, por sua vez, seguem a teologia sapiencial do Antigo Testamento (e os Salmos). Sendo assim, o cristianismo encontra sua preparação interior no conhecimento filosófico e não nas religiões. Para Agostinho, pois, o monoteísmo bíblico se identifica com os conhecimentos filosóficos sobre a razão de ser do mundo.

Dessa forma, a religião cristão não se baseia em poesia ou em política, mas o seu fundamento é o verdadeiro conhecimento. No cristianismo, o conhecimento racional tornou-se religião, e não seu adversário. O cristianismo entendeu-se, desde o início, como a vitória sobre o mito, como vitória do conhecimento, como vitória da verdade e por isso, deve-se considerar a si mesmo como universal, como aquilo que todos os povos buscam. O cristianismo deve ser levado a outros povos, não pela força, mas como a verdade que torna supérflua a aparência. Por isso, o cristianismo é visto como intolerante com os deuses, como inimigo das religiões, até mesmo foi considerado “ateísmo”, pelos pagãos. O cristianismo assim perturbava o aproveitamento político das religiões. O cristianismo colocava em perigo as bases do Estado, não querendo ser uma religião entre as religiões, mas a vitória do conhecimento sobre as religiões.

Quando o Deus alcançado pelo pensamento vem ao nosso encontro no interior de uma religião, como o Deus que age e fala, então pensamento e fé se reconciliam. A partir de Cristo, o monoteísmo judaico torna-se universal, e a unidade do pensamento e a fé, a religio vera, é acessível a todos. Os primeiros cristãos (até a Idade Média) estavam convencidos que o cristianismo era filosofia, a perfeita filosofia, isto é, a filosofia que atingiu a verdade. A filosofia era entendida, então, como arte de viver e morrer corretamente, o que é alcançado só pela luz da verdade.

Da união entre o conhecimento e a fé a teologia cristã trouxe as seguintes correções na idéia filosófica de Deus antiga: 1) o Deus adorado pelos cristãos é realmente natura Deus (Deus por natureza) diferente dos deuses míticos e políticos. Ao mesmo tempo os cristãos sabiam que non tamen omnis natura est Deus (nem tudo o que é natureza é Deus). Deus é Deus por natureza, mas a natureza, enquanto tal, não é Deus. Dá-se então uma separação entre a natureza que engloba tudo e o ser que a fundamenta e lhe dá seu origem. Só assim se separam física e metafísica, natureza criada e Deus criador. Só ao Deus que é reconhecido na natureza (por meio do nosso pensamento) é adorado; 2) o Deus que antecede à natureza, como nos diz a Bíblia, se volta para o homem, não é mera natureza, mas entrou na história, veio ao encontro do homens, que por isso, podem encontrá-lo. Dessa forma o conhecimento racional pode tornar-se religião, porque o próprio Deus do conhecimento entrou na religião.

A conclusão é que no cristianismo o vínculo da religião com a metafísica e o vínculo da religião com a história se harmonizam. A partir de então a metafísica e história passam a constituir a apologia do cristianismo como vera religio. Com o Cristianismo razão e fé se encontram em harmonia, esse encontro “construiu o Ocidente”, renovou a cultura, transformou os povos, unindo-os em uma grande família, apesar de todas as resistências. Segundo Ratzinger, as Universidades, surgidas na Idade Média cristã tiveram a sua origem na pergunta socrática: que é o homem? Só no seio do cristianismo, quando fé e razão se encontraram, se pôde buscar com seriedade uma resposta a essa pergunta.

Bibliografia:

RATZINGER, J. Fé, Verdade Tolerância: o Cristianismo e as grandes religiões do mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lulio, 2007.

________________. Discurso do Santo Padre Bento XVI para o Encontro na Universidade de Roma “La Sapienza”. 17 de janeiro de 2008.

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