Tema do 10º Domingo do Tempo Comum – ANO A
A Palavra de Deus deste 10º Domingo do Tempo Comum repete, com alguma insistência, que Deus prefere a misericórdia ao sacrifício. A expressão deve ser entendida no sentido de que, para Deus, o essencial não são os actos externos de culto ou as declarações de boas intenções, mas sim uma atitude de adesão verdadeira e coerente ao seu chamamento, à sua proposta de salvação. É esse o tema da liturgia deste dia.
Na primeira leitura, o profeta Oseias põe em causa a sinceridade de uma comunidade que procura controlar e manipular Deus, mas não está verdadeiramente interessada em aderir, com um coração sincero e verdadeiro, à aliança. Os actos externos de culto – ainda que faustosos e magnificentes – não significam nada, se não houver amor (quer o amor a Deus, quer o amor ao próximo – que é a outra face do amor a Deus).
Na segunda leitura, Paulo apresenta aos cristãos (quer aos que vêm do judaísmo e estão preocupados com o estrito cumprimento da Lei de Moisés, quer aos que vêm do paganismo) a única coisa essencial: a fé. A figura de Abraão é exemplar: aquilo que o tornou um modelo para todos não foram as obras que fez, mas a sua adesão total, incondicional e plena a Deus e aos seus projectos.
O Evangelho apresenta-nos uma catequese sobre a resposta que devemos dar ao Deus que chama todos os homens, sem excepção. O exemplo de Mateus sugere que o decisivo, do ponto de vista de Deus, é a resposta pronta ao seu convite para integrar a comunidade do “Reino”.
LEITURA I – Os 6,3-6
Leitura da Profecia de Oseias
Procuremos conhecer o Senhor.
A sua vinda é certa como a aurora.
Virá a nós como o aguaceiro de Outono,
como a chuva da Primavera sobre a face da terra.
«Que farei por ti, Efraim? Que farei por ti, Judá?»
– diz o Senhor –
«O vosso amor é como o nevoeiro da manhã,
como o orvalho da madrugada, que logo se evapora.
Por isso vos castiguei por meio dos Profetas
e vos matei com palavras da minha boca;
e o meu direito resplandece como a luz.
Porque Eu quero a misericórdia e não o sacrifício,
o conhecimento de Deus, mais que os holocaustos».
AMBIENTE
Oseias exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel), a partir de 750 a.C., numa época bastante conturbada.
Em termos políticos, é uma fase marcada pela violência, pela insegurança e pelo derramamento de sangue. Os reinados são curtos e terminam invariavelmente em revoluções, assassínios, massacres… Por outro lado, o aventureirismo dos dirigentes e os jogos de alianças políticas com as potências da época causam grande instabilidade e anunciam o desastre nacional e a perda da independência (o que acontece alguns anos mais tarde, em 721 a.C., quando a Samaria é arrasada por Salamanasar V, da Assíria).
Em termos religiosos, é uma época de grande confusão… Exposto à influência cultural e religiosa dos povos circunvizinhos, Israel acolhe diversos deuses estrangeiros que coabitam com Jahwéh, no coração do Povo e nos centros religiosos. Mistura-se o Jahwismo com os cultos de Baal e Astarte; embora Jahwéh continue a ser oficialmente o Deus nacional, é, a nível popular, bastante preterido em favor dos deuses cananeus. Por outro lado, as alianças políticas com os povos estrangeiros significam que Israel já não confia em Deus e que prefere pôr a sua confiança e a sua esperança nos guerreiros, nos cavalos, nos carros de guerra das super potências; dessa forma, a Assíria e o Egipto deixam de ser realidades terrenas e humanas, para se tornarem – aos olhos dos israelitas – novos deuses, capazes de salvar. O Povo passa a confiar neles, prescindindo de Jahwéh.
Oseias sente profundamente o drama do sincretismo religioso que está a pôr em perigo a fé do seu Povo. A sua mensagem apela a que Israel não se deixe dominar pela idolatria (a que Oseias chama “prostituição”: o Povo é como uma “esposa” que abandonou o “marido” para correr atrás dos “amantes”). O profeta convida o seu Povo a redescobrir o amor de Jahwéh – sempre presente na história de Israel – e a responder-Lhe com uma vontade sincera de viver em comunhão com Ele.
MENSAGEM
No início do capítulo 6, o profeta coloca na boca do Povo uma fórmula de arrependimento ou de penitência, provavelmente tomada da tradição cultual (“vinde, voltemos para o Senhor: Ele nos despedaçou, Ele nos curará; Ele fez a ferida, Ele nos porá o penso que cura” – Os 6,1). Contudo, o profeta olha para esta expressão com um olhar irónico… Porquê? A conversão do Povo não é sincera? Haverá, por parte do Povo, um desejo real de voltar para Deus e de deixar definitivamente a idolatria?
É a esta questão que Oseias se refere no texto que nos é hoje proposto… O profeta parece ter dúvidas da sinceridade da “conversão” do Povo. O que Israel diz é: “o Senhor é como a aurora, pontual e inevitável, como a chuva que empapa a terra. Já sabemos como é que Ele funciona, pois Ele é perfeitamente previsível; se soubermos fazer bem as coisas, podemos controlá-l’O, pô-l’O do nosso lado e recuperar a vida que perdemos” (vers. 3). Isto parece mais o resultado de uma atitude calculista de quem está convencido de que conhece Deus perfeitamente e é capaz de manejá-l’O e de manipulá-l’O, do que o resultado de uma atitude coerente e sincera, de um desejo verdadeiro de “conversão”.
A isto, como é que Deus reage? O profeta descreve como que uma luta interior de Deus… “Que farei?” – pergunta Deus… Mas logo vem a resposta: repetindo as imagens usadas pelo Povo, Deus assume que não vai ceder, pois essa “conversão” de Israel é totalmente superficial e, portanto, não passa de “conversa fiada” (“o vosso amor é como o nevoeiro da manhã, como o orvalho da madrugada que logo se evapora” – vers. 4). Israel não está disposto a mudar o coração; só está disposto a “controlar” Deus para readquirir a vida… Ora, se não houver uma verdadeira transformação do coração, o apregoado amor do Povo por Deus não passa de uma piedosa declaração de boas intenções.
Como é que Israel manifesta no dia a dia a Jahwéh essa sua vontade de “voltar para o Senhor”? É através de uma vida coerente com os mandamentos? É através de um amor que lhes sai do fundo do coração e que se expressa em gestos concretos de bondade, de justiça, de misericórdia? Não. O “amor” de Israel a Jahwéh expressa-se através de ritos externos, de actos de culto… No entanto, os actos
rituais (os “sacrifícios”) não significam nada por si próprios; são apenas actos exteriores ao homem… Não valerá de nada um culto – ainda que magnificente – que não resulte de uma atitude interior de amor e de vontade de comunhão com Deus (“conhecimento de Deus”). O culto não pode ser um conjunto de ritos desligados da vida, destinados a aplacar Deus ou a comprar a sua benevolência; mas tem de ser expressão de uma vida voltada para Deus, vivida ao ritmo da aliança, no respeito por Deus e pelas suas propostas.
Dizer que Deus quer “a misericórdia (“hesed”) e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus (“daat Elohim”), mais que os holocaustos” (vers. 6), insere-se nesta lógica… Significa que Deus não está interessado em rituais externos – mesmo que ricos e espalhafatosos – que não são expressão dos sentimentos que vão no coração; o que interessa a Deus é um coração que aceita verdadeiramente viver em comunhão com Ele (“conhecimento de Deus”) e que é capaz de gestos concretos de amor, de ternura, de bondade, de misericórdia (“hesed”) em favor dos irmãos.
ACTUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes questões:
• O problema principal que aqui nos é posto é o da nossa relação com Deus. Deus chama-nos a viver em aliança com Ele… Como é que nós respondemos ao “chamamento” de Deus? Com uma adesão verdadeira e sincera, que implica a totalidade da nossa vida, ou com um compromisso de “meias tintas”, sem exigência nem radicalidade?
• Como numa relação humana, também na nossa relação com Deus a rotina, a monotonia e o cansaço podem descolorir o amor. Entramos então num esquema religioso de resposta a Deus, que se baseia em gestos rituais, talvez correctos do ponto de vista litúrgico, mas que não são a expressão dos sentimentos do nosso coração. A minha oração é um repetir fielmente uma cassete gravada de antemão, ou é um momento íntimo de encontro com o Senhor e de resposta ao seu amor? A Eucaristia é, para mim, um ritual obrigatório, que eu cumpro diária ou semanalmente porque está no horário, ou é esse momento fundamental de encontro com o Deus que me dá a sua Palavra e o seu Pão?
• O culto a Deus, sem o amor ao irmão, não faz sentido. O nosso compromisso com Deus tem de se concretizar em obras em favor dos homens e em gestos libertadores, que levem ternura, misericórdia, à vida de todos aqueles que Deus coloca no nosso caminho.
SALMO RESPONSORIAL – SALMO 49 (50)
Refrão 1: A quem segue o caminho recto
darei a salvação de Deus.
Refrão 2: A quem procede rectamente
farei ver a salvação de Deus.
Falou o Senhor, Deus soberano,
e convocou a terra, do Oriente ao Ocidente:
«Não é pelos sacrifícios que Eu te repreendo:
os teus holocaustos estão sempre na minha presença.
Se tivesse fome, não to diria,
porque meu é o mundo e tudo o que nele existe.
Comerei porventura as carnes dos touros
ou beberei o sangue dos cabritos?
Oferece a Deus sacrifícios de louvor
e cumpre os votos feitos ao Altíssimo.
Invoca-Me no dia da tribulação:
Eu te livrarei e tu Me darás glória».
LEITURA II – Rom 4,18-25
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos
Irmãos:
Contra toda a esperança, Abraão acreditou
que havia de tornar-se pai de muitas nações,
como tinha sido anunciado:
«Assim será a tua descendência».
Sem vacilar na fé,
não tomou em consideração nem a falta de vigor do seu corpo,
pois tinha quase cem anos,
nem a falta de vitalidade do seio materno de Sara.
Perante a promessa de Deus,
não se deixou abalar pela desconfiança,
antes se fortaleceu na fé, dando glória a Deus,
plenamente convencido
de que Deus era capaz de cumprir o que tinha prometido.
Por este motivo é que isto «lhe foi atribuído como justiça».
Não é só por causa dele que está escrito «Foi-lhe atribuído»,
mas também por causa de nós,
que acreditamos n’Aquele que ressuscitou dos mortos,
Jesus, Nosso Senhor,
que foi entregue à morte por causa das nossas faltas
e ressuscitou para nossa justificação.
AMBIENTE
Quando Paulo escreveu aos romanos, preocupava-o bastante a ameaça de cisão da Igreja: os cristãos oriundos do judaísmo e os cristãos oriundos do paganismo tinham perspectivas diferentes da salvação e pareciam em rota de colisão. As crises recentes em Corinto e na Galácia convenceram Paulo da gravidade da situação.
Esse problema também era sentido em Roma? No ano 49, um édito do imperador Cláudio obrigara os judeus a deixar Roma; a comunidade cristã ficara então totalmente entregue aos cristãos de origem pagã… Mas em 57/58, muitos judeus tinham já regressado e a comunidade cristã contava outra vez com um grupo significativo de judeo-cristãos. Estes, ao retornarem, encontraram uma comunidade cristã com características diferentes da que tinham deixado, dirigida por cristãos convertidos directamente do paganismo e completamente emancipada em relação às tradições judaicas. É de crer que os cristãos de origem judaica não se sentissem bem acolhidos e que não se coibissem de criticar as novas orientações. A questão provocou uma certa instabilidade na comunidade.
Dirigindo-se aos romanos e à Igreja em geral, o apóstolo vai procurar sublinhar aquilo que deve unir todos os crentes – judeus, gregos ou romanos. Para Paulo, apesar da universalidade do pecado (nesse aspecto, judeus e não judeus estão em pé de igualdade), Deus oferece a todos, de forma gratuita, a mesma salvação e de todos faz, em igualdade de circunstâncias, seus filhos. É por Cristo que essa salvação é oferecida aos homens. O cumprimento da Lei não salva, pois a salvação é um dom de Deus. Ao homem, resta-lhe acolher esse dom na fé (a fé é, neste contexto, entendida como adesão à proposta de salvação que, em Cristo, Deus oferece aos homens).
Como exemplo, Paulo apresenta a figura de Abraão (cf. Rom 4,1-12). O apóstolo demonstra que essa figura modelar para judeus e pagãos não foi salva pela Lei nem pelas obras, mas pela fé. O texto que nos é proposto insere-se neste ambiente.
MENSAGEM
Paulo deixa claro – com argumentação tirada da própria Escritura – porque é que Abraão foi o depositário da “promessa” e se tornou uma fonte de bênção para a sua descendência
. Segundo Paulo, Abraão tornou-se uma referência fundamental para todos os crentes – judeus e não judeus – não por ter realizado obras meritórias ou por ter cumprido estrita e escrupulosamente a Lei; mas Abraão tornou-se um modelo para todos por ter sido o “homem da fé” (isto é, por ter sabido acolher o dom de Deus e por ter sabido responder-Lhe com a entrega incondicional, com a obediência radical, com a confiança ilimitada).
No texto que nos é proposto, Paulo descreve a grandeza e a profundidade da fé de Abraão. O exemplo apontado é talvez o mais conhecido e emblemático: apesar da idade avançada de Abraão e de Sara, a sua esposa, o patriarca não titubeou, não argumentou, não duvidou, quando Deus lhe anunciou o nascimento de Isaac. O facto dá conta da altura, da profundidade, da força, da heroicidade da fé de um homem que fez da sua vida uma entrega completa nas mãos de Deus, que confiou incondicionalmente em Deus, que esperou “contra toda a esperança” (vers. 18). Estas últimas palavras são uma expressão bíblica utilizada para definir a atitude do homem que reconhece tudo dever a Deus e que se entrega incondicionalmente nas suas mãos.
Para Paulo, não há qualquer dúvida: não foram as obras de Abraão, mas sim a sua fé (entrega, obediência, confiança) que o tornaram “o eleito” de Deus e uma fonte de vida e de bênção para os seus descendentes.
A conclusão é óbvia: não são as obras que fazemos que nos asseguram a salvação; mas o que nos assegura a vida plena e definitiva é a nossa fé – isto é, uma adesão radical, confiante, ilimitada à oferta de salvação que, em Jesus, Deus nos faz. A salvação não é uma conquista do homem, mas um dom de Deus, oferecido gratuitamente por amor, e que o homem é convidado a acolher com fé, com serenidade, com confiança.
ACTUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes linhas:
• Este texto convida-nos a tomar consciência daquilo que deve ser a essência da nossa experiência religiosa. Manter uma relação verdadeira e forte com Deus não é primordialmente praticar todos os actos de piedade que conhecemos ou que inventamos, observar escrupulosamente os mandamentos da santa Igreja, ou cumprir à letra cada parágrafo do código de direito canónico… A “justificação” não está na Lei, mas na fé; por isso, a nossa experiência religiosa deve ser um encontro com esse Deus do amor, que nos oferece gratuitamente a salvação; e desse encontro deve resultar um abraçar a proposta de Deus, com total confiança e com total entrega.
• Se a salvação é sempre um dom do amor de Deus e não uma conquista nossa, não se justifica qualquer atitude de arrogância ou de exigência do homem face a Deus. Temos de aprender a ver tudo o que somos e temos, não como a retribuição pelo nosso bom comportamento, mas como um dom gratuito de Deus – dom que nunca merecemos, por mais “bonzinhos” que sejamos. Diante dos dons de Deus, resta-nos o louvor e o agradecimento, por um lado, e a confiança, a entrega e a obediência, por outro.
• A reflexão de Paulo convida-nos, na mesma linha, a corrigir a imagem que fazemos de Deus… Ele não é um comerciante esperto, que paga com a mercadoria que tem em stock (a salvação) uma outra mercadoria que nós lhe vendemos (o nosso bom comportamento). Deus não precisa do nosso bom comportamento para nada… A salvação que Ele nos oferece é algo totalmente gratuito, que resulta do seu amor infinito e da sua vontade de nos ver plenamente felizes e realizados.
• Como é que eu respondo ao dom de Deus? Com o orgulho e a auto-suficiência de quem não precisa de Deus para ser feliz e para se realizar? Com a “esperteza saloia” de quem pretende negociar com Deus para obter a salvação? Ou com o reconhecimento de que a salvação é um dom não merecido que, apesar de tudo, Deus me oferece e me convida a acolher?
ALELUIA – Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor enviou-me a anunciar o evangelho aos pobres
e a liberdade aos oprimidos.
EVANGELHO – Mt 9,9-13
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
Jesus ia a passar,
quando viu um homem chamado Mateus,
sentado no posto de cobrança dos impostos,
e disse-lhe: «Segue-Me».
Ele levantou-se e seguiu Jesus.
Um dia em que Jesus estava à mesa em casa de Mateus,
muitos publicanos e pecadores
vieram sentar-se com Ele e os seus discípulos.
Vendo isto, os fariseus diziam aos discípulos:
«Por que motivo é que o vosso Mestre
come com os publicanos e os pecadores?».
Jesus ouviu-os e respondeu:
«Não são os que têm saúde que precisam de médico,
mas sim os doentes.
Ide aprender o que significa:
‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’.
Porque Eu não vim chamar os justos,
mas os pecadores».
AMBIENTE
O nosso texto faz parte de uma longa secção, na qual Mateus põe Jesus – com as suas palavras e as suas acções – a anunciar o “Reino”. Essa secção vai de Mt 4,23 a 9,35.
Na primeira parte da secção (cf. Mt 5-7), Mateus apresenta o “sermão da montanha”: num discurso magnífico, Jesus apresenta a “lei” e o programa desse “Reino” que Ele veio propor: é o anúncio do “Reino” por palavras.
Na segunda parte da secção (cf. Mt 8-9), Mateus apresenta o anúncio do “Reino” através das acções de Jesus. O autor coloca-nos diante de três conjuntos de acções ou “milagres” de Jesus que tornam presente a realidade do “Reino” (cf. Mt 8,1-15; 8,23-9,8; 9,18-31); entre cada um desses conjuntos aparecem reflexões sobre o significado dos “gestos” de Jesus e apelos ao seu seguimento… O nosso texto (cf. Mt 9,9-13) insere-se precisamente neste esquema: é um apelo ao seguimento de Jesus.
Em resumo, temos nesta secção o anúncio do “Reino” nas palavras e nos gestos de Jesus. As palavras de Jesus anunciam a chegada desse mundo novo no qual os pobres e os débeis receberão a salvação de Deus; os gestos de Jesus mostram a realidade desse tempo novo de felicidade, de alegria, de libertação para todos. Os discípulos, evidentemente, são convidados a aderir a esse “Reino” que Jesus vem propor e a tornarem-se testemunhas desse mundo novo.
O texto que nos é proposto apresenta dois episódios distintos. No primeiro, temos o chamamento do publicano Mateus (vers. 9); no segundo, temos a descrição de um banquete em casa de Mateus e de uma controvérsia com os fariseus (cf. vers. 10-13).
Os publicanos estavam catalogados como pecadores públicos notórios. Eram os cobrado
res de impostos que, além de estarem ao serviço do opressor romano, tinham a fama (e é preciso dizer, também o proveito) de explorarem os pobres. A linguagem oficial associava-os aos ladrões, aos pagãos, aos assassinos e às prostitutas. Os publicanos eram considerados, para todos os efeitos, pecadores públicos, permanentemente afectados de impureza e que nem sequer podiam fazer penitência, pois eram incapazes de reconhecer todos aqueles a quem tinham defraudado. Os fariseus, muito ciosos da sua santidade, mudavam de passeio quando, na rua, viam um publicano vir ao seu encontro.
Eram, portanto, gente desclassificada (apesar de rica), impura, considerada amaldiçoada por Deus e, portanto, completamente à margem da salvação.
Tudo isto nos permite perceber o inaudito da situação criada por Jesus: Ele não só chama um publicano para o seu grupo de discípulos, como também aceita sentar-Se à mesa com ele (estabelecendo assim com ele laços de familiaridade, de fraternidade, de comunhão). O comportamento de Jesus é, não só atentatório da moral e dos bons costumes, mas uma verdadeira provocação.
MENSAGEM
O relato da vocação de Mateus (vers. 9) não é substancialmente distinto do relato do chamamento de outros discípulos (cf. Mt 4,18-22): em qualquer dos casos fala-se de homens que estão a trabalhar, a quem Jesus chama e que, deixando tudo, seguem Jesus. Os “chamados” não são “super-homens”, seres perfeitos e santos, estranhos ao mundo, pairando acima das nuvens, sem contacto com a vida e com os problemas e dramas dos outros homens e mulheres; mas são pessoas normais, que vivem uma vida normal, que trabalham, lutam, riem e choram… No entanto, todos são chamados ao seguimento de Jesus. O verbo “akolouthéô”, aqui utilizado na forma imperativa, traduz a acção de “ir atrás” e define a atitude de um discípulo que aceita ligar-se a um “mestre”, escutar as suas lições e imitar os seus exemplos de vida… É, portanto, isso que Jesus pede a Mateus. Mateus, sem objecções nem pedidos de esclarecimento, deixa tudo e aceita ser discípulo, numa adesão plena, total e radical a Jesus e às suas propostas de vida. Mateus define aqui o caminho do verdadeiro discípulo: é aquele que, na sua vida normal, se encontra com Jesus, escuta o seu convite, aceita-o sem discussão e segue Jesus de forma incondicional. A esta adesão ao chamamento de Deus chama-se “fé”.
No relato de vocação de Mateus há, no entanto, um dado novo em relação a outros relatos de vocação: é que aqui, o “chamado” é um cobrador de impostos. Já sabemos que os cobradores de impostos eram gente desclassificada, excluída da vida social e religiosa do Povo de Deus, catalogada como pecadora, e sem qualquer possibilidade de salvação e de relação com Deus. Jesus, no entanto, pretende demonstrar que, na casa do “Reino”, há lugar para todos, mesmo para aqueles que o mundo considera desclassificados e marginais. Deus tem uma proposta de salvação para apresentar a todos os homens, sem excepção; e essa proposta não distingue entre bons e maus: é uma proposta que se destina a todos aqueles que estiverem interessados em acolhê-la.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 10-13), temos uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, porque Jesus – depois de convidar o publicano Mateus a integrar o seu grupo de discípulos (coisa inaudita, que nenhum “mestre” da época aceitaria) – ainda “desceu mais baixo” e aceitou sentar-Se à mesa com os publicanos e pecadores.
O “banquete” era, para a mentalidade judaica, o lugar do encontro, da fraternidade, onde os convivas estabeleciam laços de família e de comunhão. Sentar-se à mesa com alguém significava estabelecer laços profundos, íntimos, familiares, com essa pessoa. Por isso, o “banquete” é, para Jesus, o símbolo mais apropriado desse “Reino” de fraternidade, de comunhão, de amor sem limites, que Ele veio propor aos homens (Mt 22,1-14; cf. Mt 8,11-12). Ao sentar-Se à mesa com os publicanos e pecadores, Jesus está a dizer, de forma clara, que veio apresentar uma proposta de salvação para todos, sem excepção; e que nesse mundo novo, todos os homens e mulheres (independentemente das suas opções ou decisões erradas) têm lugar. A única condição que há para sentar-se à mesa do “Reino” é estar disposto a aceitar essa proposta que é feita por Jesus.
Os fariseus (que estão mais preocupados com as obras, com os comportamentos externos, com o cumprimento estrito da Lei) não entendem isto. Jesus recorda-lhes que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes” (vers. 12); e cita, a propósito, a frase de Oseias que encontramos na primeira leitura: “prefiro a misericórdia ao sacrifício” (vers. 13). Há, nas afirmações de Jesus, uma certa ironia: os fariseus julgavam-se justos e bons, porque cumpriam a Lei; mas, na perspectiva de Deus, os “justos” não são os que estão satisfeitos consigo próprios e vivem isolados na sua auto-suficiência, mas são todos aqueles que não se conformam com a triste situação em que vivem, estão dispostos a acolher o dom de Deus e a aderir à sua proposta de salvação.
Para Deus, o que é decisivo, portanto, não é o cumprimento estrito das regras, das leis e dos actos de culto; para Deus, o que é decisivo é estar disposto a acolher a proposta de salvação que Ele faz e a entregar-se confiadamente nas suas mãos. Todos aqueles que, na sua humildade e dependência, estão nesta atitude podem integrar a comunidade do “Reino” e fazer parte da comunidade de Jesus, da comunidade da salvação.
Deus chama todos os homens sem excepção. Os que se consideram bons e justos, frequentemente acham que não precisam do dom de Deus, pois eles merecem, pelos seus actos, a salvação; mas a verdade é que a salvação é sempre um dom gratuito de Deus, não merecido pelo homem… O que Deus pede ao homem (seja ele bom ou mau, pecador ou santo, justo ou injusto) é que aceite o dom de Deus, escute o chamamento de Jesus e, sem objecções, com total confiança e disponibilidade, aceite o convite para seguir Jesus, para ser seu discípulo e para integrar a comunidade do “Reino”.
ACTUALIZAÇÃO
A reflexão e a partilha desta Palavra podem fazer-se contando com os seguintes dados:
• A questão essencial é esta: Deus tem um projecto de salvação e de vida plena que oferece, de forma gratuita, a todos os homens. Essa salvação é um dom e não algo que nós podemos exigir de Deus. Todos os homens são chamados a fazer parte da comunidade do “Reino”: Deus não exclui nem discrimina ninguém. O que é decisivo não é o cumprimento das leis e das regras, mas a forma como respondemos ao chamamento que Deus nos faz. Podemos ficar numa atitude de auto-suficiência, achando que não precisamos do dom de Deus porque cumprimos os mandamentos e achamos que Deus não tem outra solução senão salvar-nos; ou podemos escutar o chamamento de Deus, aderir à sua proposta, tornarmo-nos discípulos, seguir confiadamente Jesus no seu caminho de amor e de entrega. De acordo com a catequese de Mateus, a primeira atitude exclui-nos da comunidade da salvação, enquanto que a segunda atitude nos integra na comunidade do “Reino”. Em que atitude estou eu?
• A história de Mateus dá-nos algumas indicações acerca da forma como responder ao chamamento de Deus. Mateus, convidado por Jesus a integrar a comunidade do “Reino”, considerou tudo como secundário, abandonou os projectos pessoais (que passavam pela aposta nos bens materiais, mesmo se conseguidos com recurso à exploração e à injustiça) e correu atrás de Jesus. É esta resposta pronta, decidida, radical, plena, que eu dou aos desafios de Deus? O “Reino” é, para mim, algo de fundamental, que se sobrepõe a todos os outros valores, ou um projecto secundário, que me ocupa nas horas vagas, mas não é uma prioridade na minha vida?
• A Palavra de Deus que aqui nos é proposta sugere também que na comunidade do “Reino” não há cristãos de primeira e cristãos de segunda (conforme cumprem ou não as leis e as regras). O que há é pessoas a quem Deus chama e que respondem ou não ao seu convite. De qualquer forma, não pode haver, na comunidade cristã, qualquer tipo de discriminação ou de marginalização…
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 10º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 10º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.
2. UMA “NOBRE SIMPLICIDADE”.
No recomeço do tempo comum na liturgia (já há duas semanas), fomos convidados à economia dos meios. Depois de uma longa série de domingos festivos, reencontrámos o tempo comum. A celebração reencontra um aspecto comum (tal não significa rotina!), talvez com menos cânticos e com menos arranjos florais e admonições… É tempo para deixar as comunidades, de modo sereno, ter tempo para reencontrar o seu Senhor. A “nobre simplicidade” recomendada pelo Concílio encontra, no tempo comum, um momento favorável à sua expressão. O silêncio e a economia de símbolos farão reforçar as palavras, os gestos e símbolos habituais da liturgia dominical.
3. UMA MESMA ACLAMAÇÃO AO EVANGELHO.
Estamos no tempo comum. Do 10º ao 14º domingo, os textos bíblicos estão centrados na missão da Igreja. Podemos, pois, unificar estes cinco domingos, através da mesma aclamação ao Evangelho ou de algum cântico sobre a missão, a repetir em todos estes domingos.
4. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.
No final da primeira leitura:
Bendito sejas, nosso Deus, pela comunhão que nos ofereces: o que Te agrada não são as grandes despesas, mas um coração amável, o desejo de Te conhecer em todo o tempo e a fidelidade dos nossos pensamentos para Ti.
Livra-nos de Te esquecer, preserva-nos dos sentimentos fugidios, sustenta a nossa fraqueza pelo teu Espírito.
No final da segunda leitura:
Nosso Pai, nós Te damos glória pelos modelos de fé que Tu nos deste por Abraão, mas sobretudo por Jesus, Ele que se entregou pelas nossas faltas e Tu ressuscitaste para nossa justificação.
Que o teu Espírito reavive a nossa fé, que nós estejamos plenamente convencidos de que tens o poder de cumprir o que prometeste, a nossa ressurreição.
No final do Evangelho:
Deus nosso Pai, nós Te damos graças pela primeira vinda do teu Filho, pois Ele tornou-Se tão próximo de nós, sentou-se até à mesa dos pecadores, para nos convidar a segui-l’O.
Nós Te pedimos por todas as nossas comunidades: que o teu Espírito nos torne acolhedores para com todos os nossos próximos e que as nossas assembleias sejam sinais vivos da universalidade da tua salvação.
5. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
Pode-se escolher a Oração Eucarística para a Reconciliação I, em harmonia com a primeira leitura e o Evangelho.
6. PALAVRA PARA O CAMINHO.
«Segue-Me!» Espantoso ver Mateus, o publicano, levantar-se imediatamente e seguir Jesus! O pôr em prática a nossa fé em Cristo exprime-se através dos gestos concretos da nossa vida quotidiana. Para nós, quais? As belas ideias e os mais generosos projectos permanecem estéreis se ficarem letra morta. O nosso amor é mais consistente que “o nevoeiro da manhã, como o orvalho da madrugada, que logo se evapora”? A verificar!
Fonte: Dehonianos