Razão Humana na Teologia

 •1.      Sentidos do termo razão;

•2.      A razão na linguagem teológica;

•3.      Declarações da Igreja sobre a relação fé e razão;

•4.      Uso da razão na Teologia;

 

•1.     Sentidos do termo razão;

Normalmente entendemos a razão como a característica principal do ser humano, o que o distingue dos demais seres. Ela é considerada como uma faculdade humana com a qual o homem compreende o mundo que o circula, que o abre ao ser. Essa faculdade é diferente do sentimento, da experiência e da vontade. Não se opõe a elas, mas lhes é complementária.

Para a filosofia tomista a razão é o aspecto discursivo e ativo da potência intelectual humana. Diferencia-se do intelecto, pois este último é a “potência que constitui a alma humana em seu grau de perfeição.” A razão é entendida como o movimento do intelecto. O intelecto está no começo e no final da atividade discursiva da razão.

“A intelecção é a simples apreensão da verdade inteligível; o raciocínio é o movimento do pensamento procedendo de um objeto de conhecimento a outro para alcançar a verdade inteligível. O raciocínio é para a intelecção o que o movimento é a para o repouso ou a aquisição é para a posse; há entre estes termos a mesma relação que entre o imperfeito ao perfeito[1].”

A distinção clássica tomista entre intelecto (potência intuitiva e abstrativa) e razão (potência discursiva) recorda a distinção platônica entre dianoia e nous.

A razão universal é típica da Ilustração. É a razão constitutiva do homem que pode e deve atrever-se a conhecer, independente das autoridades. É meio inato ao homem de progresso, sinal de uma dignidade humana e oposta a toda forma de obscurantismo, de superstição e de ignorância. É segura de si mesma e crítica do saber tradicional ao ponto de se tornar objeto de culto (Revolução Francesa); no entanto, essa razão reduz os horizontes cognoscitivos, nessa época. Kant declara que a razão é incapaz de conhecer as essências das coisas e o homem é incapaz de se abrir à realidade. A razão pura se encontra epistemologicamente separada de Deus, do mundo e da alma humana, que são para elas meras idéias da razão ou ficções mentais.

A razão dialética do Idealismo é uma super-razão que tem por sujeito último a totalidade do ser (o Espírito Absoluto).

A razão científica moderna, também chamada de “razão instrumental” é a versão mais recente da razão ilustrada. Está totalmente vinculada à técnica, é uma razão sem conteúdo próprio e sem princípios intelectivos próprios. A razão é aqui o instrumento intelectual humano para um procedimento a serviço do progresso científico. Essa razão se encontra desacreditada na chamada “post-modernidade” que a reprova a incapacidade de fazer o mundo mais justo e habitável, sendo o homem condicionado pelas instâncias do poder. Se mostra, de fato, incapaz de construir um discurso sobre a totalidade; a razão post-moderna é uma razão fragmentária, responsável pelo “pensamento débil” atual.

•2.     A razão na linguagem teológica:

Na linguagem teológica dos Concílios Vaticano I e II, a razão é a faculdade intelectual de conhecer que possuem as criaturas como participação da correspondente perfeição não-criada (em Deus). A razão é também a capacidade de conhecer o nexo intrínseco das coisas, procedendo do sensível ao inteligível com as forças naturais.

A Teologia admite certo obscurecimento nessa capacidade humana como conseqüência do pecado original. A razão encontrará pois dificuldades no seu exercício, que serão maiores nas questões morais e nas questões relacionadas ao fim último do homem.

•3.     Declarações do Magistério da Igreja sobre as relações entre fé e razão:

  • a) O Concílio de Nicéia: foi o primeiro Concílio Ecumênico da Igreja, realizado no ano 325, para combater a heresia de Ario, que apresentava uma nova forma de compreender o dogma trinitário. Esse autor entendia a relação entre as pessoas divinas, assim como os neo-platônicos, que acreditavam que havia uma divindade hierarquizada em três hipóstasis: Uno – Inteligência – Alma. Cristo seria uma criatura do Pai. O Concílio respondeu a essa corrupção doutrinal afirmando que o Filho era em tudo igual ao Pai e que foi gerado desde toda a eternidade desde o Pai, mas não foi criado. Para isso, os Padres Conciliares formaram a expressão homoousios, quer dizer o filho é consubstancial ao Pai. Com isso a fé cristã usou pela primeira vez uma expressão proveniente da filosofia grega (ousia = substância) para expressar uma verdade de fé. Essa expressão não foi uma traição à verdade bíblica (objeção do “protestantismo liberal”), mas justamente o contrário: “o Concílio queria dar a entender inequivocamente que a Bíblia deve ser tomada literalmente e que ela não pode ser diluída em acomodações filosóficas e numa espécie de racionalidade capaz de explicar tudo. As reclamações que a filosofia fazia à fé tomaram uma direção oposta à buscada por Ario: enquanto que este media o Cristianismo com a vara da razão ilustrada e o remodelava de acordo com ela, os Padres conciliares utilizaram a filosofia para por em evidencia, de forma inconfundível, o fator diferenciador do Cristianismo[2].”
  • b) A Bula Ab Egyptiis do Papa Gregório IX aos professores da Universidade de Paris em 1228 reconhece a utilidade da filosofia nos assuntos teológicos; em 1231 o mesmo Papa enviou uma Bula chamada Parens Scientiarum ao abade de São Vitor e ao prior dominicano de Paris. Ali se mitiga proibições contra Aristóteles, emanadas do Concílio provincial de Paris em 1210.
  • c) Durante todo século XIX a Igreja defendeu a razão em assuntos teológicos contra o fideísmo de L Bautain (1796 – 1867); contra o tradicionalismo de A. Bonnetty (1798-1879). Um documento da Congregação do Índice afirmou: “ainda quando a fé está por em cima da razão, sem dúvida, não pode ocorrer entre elas nunca uma dissensão ou conflito real, posto que ambas procedem da mesma e única fonte de verdade eterna e imutável, que é Deus. Antes se ajudam mutuamente.” A Igreja condenou o semi-racionalismo de J. Hermes (1775-1831) e de A. Gunther (1783-1863). Na Constituição Dogmática sobre a fé católica do Concílio Vaticano I (1869-1870) lemos:

“Quando a razão iluminada pela fé busca diligentemente, com piedade e prudência, então chega a conseguir, com a ajuda de Deus, uma certa inteligência muito frutuosa dos mistérios, bem seja por analogia com o que conhece pela via natural, bem seja pela conexão de uns mistérios com outros e com o fim do homem. Sem dúvida, nunca poderá a ser capaz de penetrá-los como verdades que constituem seu objeto próprio. Mas, ainda que a fé esteja por cima da razão, jamais pode haver um verdadeiro conflito entre elas: posto que o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a fé é o que comunicou ao espírito humano a luz da razão, Deus não pode negar-se a si mesmo, nem a verdade pode jamais contradizer a verdade. Esta aparência imaginária de contradição se origina na maioria das vezes, bem porque os dogmas de fé não foram entendidos ou expostos segundo a mente da Igreja, ou porque se tomam como conclusões da razão o que só são falsas opiniões.”

•4.     Exercício da razão na Teologia:

O uso adequado da razão é imprescindível para a Teologia. A ciência sobre Deus adquire assim a condição de sólido e verdadeiro conhecimento humano e se livre de sérios perigos, como o fideismo e o racionalismo. A razão introduz na Teologia o sentido crítico necessário e as comprovações respeitosas do conteúdo da fé permitem ao crente satisfazer as legítimas perguntas da sua inteligência. Podemos resumir a tarefa da razão na Teologia assim:

  • a) Procura analisar os dados da revelação, tenta comprovar seu valor, descobrir relações e definir objetos, delimitando suas propriedades e elementos constitutivos;
  • b) A razão teológica tenta fundamentar os preâmbulos da fé e faz ver que a Palavra de Deus merece ser aceita e crida;
  • c) Procura entender melhor as verdades da fé, advertir o sentido e a profundeza da cada uma delas e encontrar as articulações que unem umas às outras;
  • d) Examina as objeções contra a fé e procura dar uma resposta racional a estas;
  • e) A razão teológica procura fazer passar o conteúdo da fé desde o aspecto pessoal a uma expressão universal e pública, que possa ser compreendida e ensinada a outros.

 


[1] E. Gilson, O Tomismo, Pamplona, 2ª ed., 1989, p. 377.

[2] J. RATZINGER, Teoria dos princípios teológicos, Barcelona, 1985, 134.

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