O Mito da minha solidão

“Para dizer a verdade, devo rir um pouco sobre o mito da minha solidão”. Essa foi a resposta tranquila e serena que o Papa Bento XVI deu, a bordo de um avião, quando se dirigia à sua primeira visita apostólica ao continente africano, ao ser perguntado a respeito de sua pressuposta solidão. Como já disseram, “o Papa é o homem mais solitário do mundo”. Certamente, num contexto de turbulência dialética dentro da aeronave, e num tom provocantemente suspeito, a pergunta não parece tão ingênua quanto a solicitude franca da resposta. O Papa parece ter saído pela tangente. Às vezes, é melhor que seja assim. Diante dos lobos inimigos e ferozes, a atitude mansa do cordeiro ameniza o acinte pernicioso da investida do tosquiador. 

Uma paulada atrás da outra tem sofrido esse mártir vivo da Igreja de Cristo. Primeiro, foi a interpretação distorcida de uma frase que ele pronunciara na Universidade de Ratisbona na Alemanha, em 2006, citando o imperador bizantino Manuel II Paleólogo, que se referia a uma controvérsia com um erudito persa, envolvendo a pessoa de Maomé. Fizeram de seu discurso uma espécie de “instrumentalização”, como afirmara na ocasião o cardeal francês Paul Poupard. Uma onda de protestos se levantou, sobretudo, no mundo mulçumano, e durante quase uma semana, o Papa ficou sozinho sem que ninguém lhe desse o devido apoio. Vozes inflamadas de ódio e ira exigiam que o Papa se desculpasse. Parecia interpor-se um obstáculo intransponível na primorosa relação ecumênica, penosamente construída durante décadas. Eu estava em Roma e presenciei, talvez, o mais difícil pronunciamento do Angelus do Papa Bento XVI. Sua voz embargada e o semblante triste denunciavam o amargor de sua alma, exposta ao vendaval de queixas que percorria, especialmente, o mundo oriental. Foi o Papa Paulo VI quem disse que “a fumaça de Satanás tinha entrado na Igreja”. E ela permanece lá. 

Agora, no início deste ano de 2009, com o provimento de suspensão ou “remissão da excomunhão aos quatro bispos consagrados pelo arcebispo Lefebvre”, rumores de insatisfação se levantaram contra o Papa Bento XVI, dentro e fora da Igreja, inclusive, de seus colaboradores mais próximos, dentro da própria cúria Romana. O cardeal Van Thuan já dizia que quando os inimigos estão fora de casa, devemos nos preocupar, mas quando eles estão instalados dentro de nossa própria casa, a preocupação deve ser redobrada. E eu penso que ele tinha razão. Por que só a Igreja Católica tem de tolerar a insatisfação hipócrita de tantos de seus tão estranhos “filhos”? Por que quem trabalha e difama uma grande empresa é obrigado a sair dela, e na Igreja tem de ser diferente? Quem detrai sua própria família não é digno dela, apesar de todos os seus defeitos e pecados. E que pecados!! Nesse sentido, pelo menos um esforço mínimo de coerência deveria corresponder ao desejo de permanência nela. 

A tal ponto chegou o clamor do vozerio dissonante em relação ao “provimento” da remissão, que o próprio Papa Bento XVI considerou oportuno escrever uma carta “aos  [seus] amados irmãos no ministério episcopal”, no intento de esclarecer a intenção “suprema e fundamental da Igreja e do sucessor de Pedro neste tempo” – e que é a de conduzir os homens para Deus -, e, ao mesmo tempo, apaziguar os ânimos sublevados. Mais do que um apelo fremente à unidade, trata-se de um desabafo em que o Papa chama a atenção de atitudes mesquinhas e fingidas de pessoas que se sentem acima de qualquer suspeita, achando-se no direito de, inclusive, atacar o próprio Papa “com uma virulência de lança em riste”, como ele mesmo reconhece no texto da missiva. Ele chama cada um à consciência pura da urgência testemunhal de uma Igreja unida a tantos cristãos e homens de boa vontade que se esforçam por não permitir que “Deus possa desaparecer do horizonte dos homens e que, com o apagar-se da luz vinda de Deus, a humanidade seja surpreendida pela falta de orientação, cujos efeitos destrutivos se manifestam cada vez mais”. 

Outra polêmica que reacendeu os ânimos foi a declaração do Papa de que a distribuição de preservativos só aumenta a proliferação da AIDS, agravando ainda mais o problema. Ou mais categoricamente, que “essa doença não se vence distribuindo preservativos”. Foi sua resposta à pergunta se a Igreja propõe remédios ineficazes contra a AIDS. A reação frenética às suas palavras por parte de grupos patrocinadores desse moderno método de incentivo à promiscuidade e à prostituição barata – coisa sobre a qual ninguém nunca fala -, poderíamos dizer que beirou às raias da blasfêmia ofensivamente provocante contra o Santo Padre. Meios de comunicação nada confiáveis apresentaram o Papa com uma camisinha sobre a cabeça, ao invés da mitra; jornais esboçaram a figura do Papa distribuindo preservativos na África; e, na França, uma empresa anunciou que fabricaria a embalagem do preservativo com a imagem do Papa e uma frase dizendo: “Eu digo não”! Tudo isso sem falar dos discursos inflamados de ódio e abjeção contra o Sumo Pontífice. Também, uma página da internet fez uma charge de Cristo sobre uma barca com o seguinte slogan: “Depois da multiplicação dos pães, a multiplicação dos preservativos”. 

Nenhum cristão decente e digno do nome que carrega, é capaz de saber ou de ver tais virulências intencionais sem indignação ou repulsa. Por que não fazem isso com os representantes de outras grandes  religiões, como Buda e Maomé? Só porque a estranha Religião de Cristo prega o amor aos inimigos? (“Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam”? – Lc 6,27). O homem contemporâneo perdeu o temor de Deus, e caminha em direção ao mais completo descalabro moral. Jean Guitton já afirmara que o homem que levou milhões de anos para descobrir o fogo, nos últimos tempos tem avançado tão vertiginosamente rápido no aprofundamento das técnicas e da ciência – em todos os níveis dessa, se não bem orientada, avassaladora e mefistofélica brincadeira de querer ser Deus, a ponto de, inclusive, manipular germes inofensivos e indefesos da criação divina -, mas, confessava o grande filósofo do século passado, com a alma penetrada de inflexão e tristeza, que, de maneira paradoxal, moralmente, o homem não progredira em absolutamente nada. Que o diga o azedume em querer arrancar Deus a todo custo da consciência dos homens e da constituição da sociedade. Sem Deus, tudo perde o sentido, e a perversidade gratuita de um povo, orienta-o fatalmente para sua autodestruição. 

Não deve ser novidade para nenhum cristão católico se o mundo e a imprensa odeiam o Papa Bento XVI. Foi o próprio Senhor quem disse: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro, me odiou a mim” (Jo 15,18). Humanamente, é um ódio incompreensível. Divinamente, talvez compreensível. Deus sabe porque a sua ira não se acende implacavelmente sobre todos os que se inflamam contra o seu Reino e sua Igreja. Ele sabe porque o trigo deve crescer ao lado do joio (Mt 13,24-30). Não obstante, devemos constatar que o coração dos homens se enche de ira e ódio quando eles sabem que estão perdendo terreno. Se o Papa fala tanta “asneira”, a ponto de contradizer as expectativas de seu auditório, por que será que tantas consciências vivem perturbadas e agitadas com suas afirmações? Se o que ele diz não corresponde à verdade, por que será que tanta gente vive incomodada? Com certeza, porque uma voz diferente se levanta para dizer o contrário do que o mundo gostaria de ouvir, indo contra seu desejo desenfreado de liberdade, que mais o aprisiona na dispersão interior de si mesmo do que o torna propriamente livre. 

Por essas e tantas outras razões, muitos pensam que o Papa está sozinho, remando contramaré. Mas, não é verdade. Sim, com certeza, ele já foi abandonado por aqueles que, vencidos pela sua própria cegueira, já se venderam a Satanás e se tornaram inimigos da verdade. Mas, o que é a Verdade? A Verdade é o próprio Cristo colocado ao alcance de todos – a Verdade encarnada de Deus -, que nem Pôncio Pilatos foi capaz de reconhecê-lo, tão obnubilado estava pelas falsas concepções da legítima autoridade (Jo 18, 38-19,1-11). Apenas os intransigentes, e unilaterais, e interesseiros, fechados em suas pobres e mesquinhas convicções, não conseguem perceber a boa vontade do Papa em ajudar a humanidade a entrar pelo caminho de uma nova civilização que permita, também, intuir a necessidade de “humanizar a sexualidade, isto é, renovar o modo de se relacionar com o próprio corpo e o corpo dos outros”. E esse é apenas um de tantos outros aspectos essenciais que poderiam melhorar a convivência entre os homens. Tenho certeza de que o Papa não está entre aqueles que, dominados pelo pessimismo existencial de Nietzsche, não se preocupam em “melhorar” a humanidade. 

Quanto ao mais, acusamos o Papa porque não temos coragem de nos acusar a nós mesmos. De fato, ninguém está muito disposto a dar “um tiro no pé” ou, quem sabe, uma martelada no próprio dedo. 

Pe. Gilvan R. dos Santos
Arquidiocese de Aracaju
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma

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