O Luteranismo

Por Quadrante 

 Lutero foi profundamente religioso, mas também angustiado; era dotado de firme confiança em Deus, mas desconfiava da própria salvação. Esse homem de contrastes, pai direto do protestantismo, foi o responsável por uma das maiores rupturas na história da humanidade.

 Martinho Lutero nasceu em 10.11.1483, em Eisleben, Alemanha. Teve uma infância dura, sujeito em casa e na escola a uma disciplina severa. A partir de 1501, na Universidade de Erfurt, estudou a filosofia nominalista de Ockham (as palavras designam apenas coisas individuais; não atingem os “universais”, as realidades presentes em todos os indivíduos, como por exemplo a natureza humana; em conseqüência, nada pode ser conhecido com certeza pela razão natural, exceto as realidades concretas: esta pessoa, aquela coisa). Esse sistema dissolvia a harmonia multissecular entre a ciência e a fé, pois tinha as verdades da fé como “não-racionais”, impenetráveis para a razão; todo o conhecimento da Revelação se fundaria na fé, e a moral se fundaria unicamente na vontade de Deus.

Quando ainda era estudante, a caminho da universidade Lutero foi quase fulminado por um raio; naquele momento, fez o voto de entrar no convento. Essa decisão precipitada era fruto do seu temperamento escrupuloso e pessimista, que receava sobretudo o juízo de Deus sobre os seus pecados. Em julho de 1505, entrou para o convento dos agostinianos de Erfurt. Em 1507, foi ordenado presbítero. Em 1510 ou 1511, passou algumas semanas em Roma, onde conheceu a vida da Cúria e a exuberância das devoções populares; na época, não chegou a impressionar-se muito com o que viu ali, nem isso abalou a sua fidelidade à Igreja, mas mais tarde a corrupção romana viria a tornar-se alvo preferencial dos seus ataques. Foi nomeado professor de Sagrada Escritura em Wittenberg. No entanto, vivia sempre angustiado e inquieto, dominado pelo temor ao pensar na sua fragilidade moral e nos insondáveis juízos de Deus; jejuava, praticava vigílias de oração, mas não conseguia a paz.

Foi nas Epístolas de São Paulo (especialmente aos Romanos e aos Gálatas) que encontrou a solução: pouco importava o que fizesse ou deixasse de fazer, o essencial era agarrar-se firmemente à fé confiante em Cristo Salvador. Baseava-se especialmente em Rom 1,17 e Gál 3,12.22, interpretados à luz dos escritos de Santo Agostinho, que sublinhara o a força do pecado sobre a natureza humana nos seus escritos contra o herege Pelágio. O pecado seria inextinguível, mas a fé sozinha bastaria para salvar o crente.

Em 31.10.1517, afixou à porta da igreja de Wittenberg, conforme o costume das disputas acadêmicas do tempo, uma lista de 95 teses (em latim) que tratavam do primado do Papa (defendido por ele, na ocasião), das indulgências (cuja doutrina e cuja praxe atacava) e de temas conexos. Excomungado pela bula Exsurge, Domine, lançada contra ele pelo papa Leão X, o reformador queimou a bula em praça pública em 1520, rompendo definitivamente com a Igreja. Se as 95 teses tinham sido apenas um brado de revolta contra uns desvios muito reais na praxe administrativa eclesiástica do seu tempo, agora se tratava de uma revolução contra a Igreja católica e tudo o que ela representava.

 

A revolta espalhou-se rapidamente pela Alemanha e pelo estrangeiro, trazendo à tona todos os desvios doutrinais e ódios políticos que fermentavam havia tempo contra a Igreja e o imperador alemão, oficialmente católico. Encontrou ressonância fácil entre os príncipes da Alemanha – especialmente o príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico o Sábio – que tinham antigos ressentimentos contra a Santa Sé por questões políticas. Também a pequena nobreza logo apoiou Lutero, porque da revolução religiosa esperava uma revolução social que satisfizesse os seus anseios. Em pouco tempo, o problema religioso pessoal de Lutero tinha-se tornado o problema da nação alemã.

Em 1521, houve uma reunião da Dieta em Worms, na qual Lutero não aceitou retratar-se das suas teses revolucionárias. Foi condenado à morte pela assembléia, mas autorizado a sair livremente das dependências do palácio em que se realizava a Dieta. Frederico o Sábio escondeu-o por dez meses no Castelo da Wartburg (maio 1521 a março de 1522), onde o reformador começou a tradução da Bíblia para o alemão, obra de linguagem magistral, que só completaria em 1534. No castelo, Lutero sofreu crises nervosas muito violentas, que considerava assaltos diabólicos.

Enquanto Lutero se conservava na Wartburg, a agitação crescia na Alemanha. Apareceu a corrente dos anabatistas, chefiados por Thomas Münzer, que interpretava ousadamente o pensamento de Lutero, negando o batismo às crianças (segundo diziam, o sacramento só seria eficaz em quem tivesse fé) e rebatizando os adultos, revivendo a velha idéia donatista de uma “Igreja de perfeitos”. Posto a par da confusão, Lutero deixou seu esconderijo e voltou a Wittenberg. Conseguiu, com o apoio do “braço secular”, restabelecer a ordem em Wittenberg, mas teve que enfrentar a revolta dos camponeses (1524-1525) que, esmagados por tributos, valiam-se da doutrina anabatista para proclamar a sua liberdade frente a todos os senhores civis e eclesiásticos. Lutero hesitou diante dessa insurreição, mas acabou optando por esmagar violentamente os revoltosos; Münzer foi decapitado. Essa atitude fez com que Lutero perdesse parte de sua popularidade; a sua nova “Igreja” não seria já a do povo, mas a dos príncipes e senhores feudais, enquanto os anabatistas, refugiados na Holanda e em outros países, ganhariam a adesão das classes mais humildes.

Os últimos anos de vida do reformador, casado com a ex-freira Catarina de Bora, foram angustiosos por diversos motivos: aos aborrecimentos e às decepções somavam-se os achaques corporais; via que a indisciplina e a busca de interesses particulares se alastravam nos territórios reformados. Passou a depositar as suas esperanças num próximo fim do mundo; em 1543, escreveu ansioso: “Vem, Senhor Jesus, vem… Os males ultrapassaram a medida. É preciso que tudo estoure. Amém”. Finalmente, morreu em 18.02.1546 na sua cidade natal, Eisleben.

Lutero foi certamente um homem de religiosidade profunda, dotado de firme confiança em Deus, diligente no trabalho e desinteressado de si. A esses dons, porém, associava-se um temperamento apaixonado, que podia chegar às raias do doentio; uma convicção cega de que tinha recebido uma missão profética; uma propensão à discussão violenta, ao exagero trágico e até ao cinismo.

 

Com o correr do tempo e das dissensões entre os partidários da reforma luterana, a doutrina da fé sem as obras se tornou o “evangelho” de Lutero e dos demais reformadores, que logo lhe associaram os outros princípios básicos do protestantismo: o de que somente a Bíblia é fonte de fé, e o de que não há sacerdócio ministerial transmitido através do sacramento da Ordem. Em conseqüência, Lutero também não reconhecia o caráter de sacrifício da Missa, que ficava reduzida a um memorial, à representação meramente simbólica do Santo Sacrífício do Calvário; não admitia a transubstanciação, mas apenas uma “certa presença” de Cristo na Eucaristia, para a qual cunhou o termo “empanação”; aboliu os conventos e a vida religiosa; negou o culto aos santos, sobretudo a Nossa Senhora, e os sufrágios pelas almas do purgatório. Quanto à remissão dos pecados cometidos depois do batismo, poderia obter-se pela confissão feita diretamente a Deus.

A Igreja luterana foi organizada sobretudo pelo seu discípulo Philip Melanchton (1497-1560). Em matéria doutrinal, segue os princípios que acabamos de expor. No começo, todas as funções de catequese, sustento do clero e das escolas de teologia etc., foram assumidas pelos príncipes seculares da Alemanha e, logo depois, também os da Dinamarca e da Suécia; a Igreja luterana foi, até a unificação alemã em 1870, uma Igreja de Estados nacionais. Neste século, as diversas igrejas particulares luteranas organizaram-se em cerca de uma dezena de Confederações e Ligas mundiais, que atuam de maneira independente e costumam ser governadas por sínodos de pastores. Não têm sacerdócio nem sacramentos válidos – com exceção do Batismo -, porque perderam a sucessão apostólica e consideram os sacramentos meros símbolos; o culto segue, no entanto, em grandes linhas, a missa católica, embora com mais ênfase na pregação e nos hinos litúrgicos. O luteranismo foi corroído em grande medida pelo modernismo, uma vez que essa corrente nasceu no seu seio. Há um bom diálogo ecumênico católico-luterano, e um sínodo de pastores reconheceu recentemente que a veneração prestada à Santíssima Virgem é uma forma válida de piedade cristã.

Fontes principais:

Estêvão Bettencourt, Religiões, Igrejas e seitas, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1997

Manuel Guerra Gomez, Los nuevos movimientos religiosos, EUNSA, Pamplona, 1993.

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