O duplo objeto do Magistério infalível da Igreja

As últimas palavras no Evangelho de São Mateus de Jesus aos seus discípulos foram (cf. Mt 28,18-20):

Toda a autoridade sobre o céu e sobre a terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!

A missão de Jesus não terminou com ele, mas deve continuar nos seus discípulos, que foram enviados a continuar a sua missão profética e ensinar a Palavra de Deus. Esse ensino, confiado à sociedade dos discípulos, a Igreja, quando revestido de autoridade, é chamado de magistério. Essa palavra pode se referir tanto ao ato de ensinar como ao conteúdo do ensinamento – também chamado de doutrina – ou ainda ao conjunto de agentes desse ensino, os mestres, que são o Papa e os bispos em comunhão com ele. O que Jesus ensinou e mandou ensinar se orienta à salvação dos homens e, por isso, ele garante a integridade desse ensino pelo Espírito da Verdade, que conduz à verdade plena (cf. Jo 16,13). A esse respeito, diz o Catecismo da Igreja Católica, no parágrafo 2035:

O grau supremo na participação da autoridade de Cristo está garantido pelo carisma da infalibilidade. Esta «é tão ampla quanto o depósito da Revelação divina»; e estende-se também a todos os elementos de doutrina, mesmo moral, sem os quais as verdades salvíficas da fé não podem ser guardadas, expostas e observadas.

À Igreja, sempre em vista da salvação, cabe ensinar as verdades sobre a fé e a moral, o que deve ser crido e o que deve ser vivido, para conhecer e amar a Deus. Ao falar da infalibilidade do magistério da Igreja, o Catecismo aponta o seu alcance. A Igreja é infalível ao propor uma verdade como revelada por Deus e, portanto, contida no depósito da fé, mas não apenas. A infalibilidade se estende para além da Revelação divina a toda verdade que se conecta à Revelação de tal forma que, para salvaguardar aquela, é necessário afirmar essa. A esse respeito, precisa a Declaração Mysterium Ecclesiae, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1973:

Segundo a doutrina católica, a infalibilidade do Magistério da Igreja estende-se não só ao depósito da fé, mas também a tudo aquilo que é indispensável para que o mesmo possa ser guardado ou exposto como se deve.

A implicação disso é que a Igreja pode propor algo para ser crido definitiva e infalivelmente que não tenha sido revelado por Deus, em razão da sua relação com a Revelação – e por ela, com a salvação dos homens. Por isso, a teologia fala de um duplo objeto do Magistério infalível. Essa distinção aparece na Profissão de Fé que acompanha o Juramento de fidelidade ao assumir um ofício a exercer em nome da Igreja, após o texto do Credo:

Creio (credo) também firmemente em tudo o que está contido na palavra de Deus, escrita ou transmitida pela tradição, e é proposto pela Igreja, de forma solene ou pelo Magistério ordinário e universal, para ser acreditado como divinamente revelado.

De igual modo aceito firmemente e guardo (amplector ac retineo) tudo o que, acerca da doutrina da fé e dos costumes, é proposto de modo definitivo pela mesma Igreja.

Também o Código de Direito Canônico, a partir da modificação feita em 1998, pelo Motu Proprio Ad Tuendam Fidem, no cânon 750, faz a mesma distinção:

§ 1. Deve-se crer (credenda sunt) com fé divina e católica em tudo o que se contém na palavra de Deus escrita ou transmitida por Tradição, ou seja, no único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é proposto como divinamente revelado quer pelo magistério solene da Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal; isto é, o que se manifesta na adesão comum dos fiéis sob a condução do sagrado magistério; por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer doutrinas contrárias.

§ 2. Deve-se ainda firmemente aceitar e acreditar (amplectenda ac retinenda sunt) também em tudo o que é proposto de maneira definitiva pelo magistério da Igreja em matéria de fé e costumes, isto é, tudo o que se requer para conservar santamente e expor fielmente o depósito da fé; opõe-se, portanto, à doutrina da Igreja Católica quem rejeitar tais proposições consideradas definitivas.

Acompanha o Motu Próprio, a Nota doutrinal explicativa da fórmula conclusiva da Professio fidei, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1998, que assim explica:

No que se refere à natureza do assentimento a dar às verdades propostas pela Igreja como divinamente reveladas (1° parágrafo) ou a considerar de modo definitivo (2° parágrafo), é importante sublinhar que não há diferença quanto ao caráter pleno e irrevogável do assentimento a dar aos respectivos ensinamentos. A diferença é quanto à virtude sobrenatural da fé: tratando-se das verdades do 1° parágrafo, o assentimento funda-se diretamente sobre a fé na autoridade da Palavra de Deus (doutrinas de fide credenda); tratando-se invés das verdades do 2° parágrafo, o mesmo funda-se na fé da assistência do Espírito Santo ao Magistério e na doutrina católica da infalibilidade do Magistério (doutrinas de fide tenenda).

Quanto a cada categoria, diz o mesmo documento, sobre as doutrinas de fide credenda:

Com a fórmula do primeiro parágrafo (…), pretende afirmar-se que o objeto ensinado é constituído por todas as doutrinas de fé divina e católica que a Igreja propõe como divina e formalmente reveladas e, como tais, irreformáveis.

Tais doutrinas estão contidas na Palavra de Deus escrita e transmitida e são definidas com um juízo solene como verdades divinamente reveladas ou pelo Romano Pontífice, quando fala « ex cathedra », ou pelo Colégio dos Bispos reunido em Concilio, ou então são infalivelmente propostas pelo Magistério ordinário e universal para se crerem

Essas doutrinas comportam da parte de todos os fiéis o assentimento de fé teologal. Assim, quem obstinadamente as pusesse em dúvida ou negasse, cairia na censura de heresia, como afirmado pelos correspondentes cânones dos Códigos Canônicos.

E ainda, sobre as doutrinas de fide tenenda:

O objeto ensinado nesta fórmula [do 2º parágrafo da Profissão de fé] abrange todas as doutrinas relacionadas com o campo dogmático ou moral, que são necessárias para guardar e expor fielmente o depósito da fé, mesmo que não sejam propostas pelo Magistério da Igreja como formalmente reveladas.

Tais doutrinas podem ser definidas de forma solene pelo Romano Pontífice, quando fala « ex cathedra », ou pelo Colégio dos Bispos reunido em Concílio, ou podem ser infalivelmente ensinadas pelo Magistério ordinário e universal da Igreja como «sententia definitive tenenda ». Todo o crente é obrigado, portanto, a dar a essas verdades o seu assentimento firme e definitivo, baseado na fé da assistência dada pelo Espírito Santo ao Magistério da Igreja e na doutrina católica da infalibilidade do Magistério em tais matérias. Quem as negasse, assumiria uma atitude de recusa de verdades da doutrina católica e portanto já não estaria em plena comunhão com a Igreja Católica.

O fundamento desse alcance do Magistério é explicado já por Santo Tomás, na Suma Teológica (I, q. 32, a. 4), quanto ao modo de algo pertencer indiretamente à fé, pela sua relação com o que foi revelado:

Algo pertence à fé de duas maneiras. De um modo, diretamente; como aquelas coisas que nos foram principalmente transmitidas por Deus, como o fato de Deus ser Trino e Uno, o Filho de Deus ter se encarnado e outras verdades semelhantes. E, sobre essas verdades, sustentar algo falso leva, por si só, à heresia, especialmente se houver obstinação.

De outro modo, algo pertence indiretamente à fé, quando dele decorre algo contrário à fé (…). Sobre esse tipo de questão, alguém pode sustentar falsamente algo sem perigo de heresia, antes que se tenha considerado ou determinado que dessa afirmação decorre algo contrário à fé, e especialmente se essa opinião não for sustentada com obstinação.

Porém, depois que isso se torna evidente – sobretudo se foi determinado pela Igreja – que dessa afirmação decorre algo contrário à fé, errar nesse ponto não seria isento de heresia. E por isso, muitas coisas que antes não eram consideradas heréticas agora são reputadas como tal, porque atualmente é mais evidente o que delas decorre.

E também nas Quaestiones de quodlibet (IX, q. 8 co.), sobre a infalibilidade do julgamento da Igreja não apenas em questões estritamente de fé, mas também em coisas que comprometem a fé:

Algo pode ser considerado possível por si mesmo, mas, em relação a algo extrínseco, pode ser encontrado como impossível. Digo, portanto, que o julgamento daqueles que presidem a Igreja pode errar em qualquer questão, se forem consideradas apenas as pessoas enquanto tais. Porém, se levarmos em conta a divina providência, que dirige sua Igreja pelo Espírito Santo para que não erre, como Ele mesmo prometeu em Jo 16, que o Espírito, ao vir, ensinaria toda a verdade – isto é, sobre as coisas necessárias para a salvação –, é certo que o julgamento da Igreja universal não pode errar nas questões que dizem respeito à fé.

Por isso, deve-se confiar mais na sentença do Papa, a quem compete determinar questões de fé, quando ele a proclama, do que na opinião de qualquer grupo de homens sábios sobre as Escrituras. (…)

No entanto, em outros tipos de julgamentos que se referem a fatos particulares, como questões relacionadas a posses, crimes ou semelhantes, é possível que o julgamento da Igreja erre devido a testemunhos falsos. A canonização de santos está situada entre esses dois casos. Contudo, dado que o culto que prestamos aos santos é, de certo modo, uma profissão de fé, pela qual acreditamos na glória dos santos, é piedosamente crível que, mesmo nesses casos, o julgamento da Igreja não possa errar.

Conforme recorda Santo Tomás, o magistério autêntico da Igreja diz respeito apenas às questões de fé e moral. Se o Papa emitisse um juízo sobre um tema alheio a isso, esse seu ensino não constitui o magistério da Igreja. Contudo, se se tratar de um tema que atine indiretamente à fé, de modo que ela esteja implicada nele, como é o caso de determinadas afirmações filosóficas que fundamentam a doutrina da fé, em vista da revelação, esse tema também é assunto do sagrado magistério, enquanto compromete a fé. Assim é o caso da canonização dos santos, discutida no texto acima, em que a Igreja promove alguém como modelo de fé a ser cultuado. Também pode ser iluminadora a explicação dada por De Lugo (De fide, disp. 20, sect. 3, n. 111), em favor do ensinamento moral do Sumo Pontífice:

frequentemente a honestidade ou desonestidade de um ato prescrito ou proibido não depende apenas de um princípio revelado, mas também de algum outro princípio de jurisprudência ou de filosofia moral, que é evidente pela luz natural da razão, como, por exemplo, o fato de que algum contrato é ou não é usurário, ou que algum matrimônio é ou não é válido. E, no entanto, mesmo nesses decretos universais, os teólogos comumente reconhecem uma assistência infalível, para que a Igreja não possa ser enganada na ordem dos costumes. Isso ocorre porque o Pontífice é, no âmbito espiritual, o pastor comum de todos os fiéis, a quem todos são obrigados a ouvir e obedecer naquilo que pertence à salvação. Assim, da mesma forma, em relação às censuras de doutrina necessárias ou relacionadas à salvação, nas quais os fiéis não estão menos obrigados a ouvir seu pastor e doutor universal, nem menos obrigados a obedecê-lo ao abraçar ou evitar uma doutrina que ele prescreve ou proíbe, deve-se acreditar que ele tem a mesma assistência do Espírito Santo, para que os fiéis não sejam enganados, mesmo que tal juízo dependa em parte de princípios cognoscíveis pela luz natural da razão. Daí que, como os teólogos frequentemente dizem, o Pontífice tem um poder direto sobre as coisas espirituais e, ao menos, um poder indireto sobre todas as coisas temporais, quando é necessário dispor delas também em ordem ao fim da salvação espiritual, ao qual todas as coisas temporais devem ser subordinadas e servir. Assim também se deve dizer que ele pode, como que com poder e assistência direta, definir questões sobre doutrinas reveladas, mas, como que indiretamente, sobre doutrinas naturais e cognoscíveis pela luz natural, quando o conhecimento destas também serve para estabelecer e julgar a doutrina da salvação e teológica.

O magistério é na Igreja um exercício específico do seu munus docendi, que deriva do poder de jurisdição. Assim sendo, cabe à Igreja ensinar sobre a fé e a moral e, caso ela obrigue à adesão definitiva a esse ensinamento, por meio dos seus sagrados pastores, ela está privada do erro, porque errando ela afastaria os fiéis da fé salvífica, o que não é permitido por Deus. Dotada de autoridade, a Igreja pode exigir a adesão a um ensinamento. Se errasse ao fazê-lo, ela afastaria da verdade, o que se opõe à sua missão salvífica.

O objeto primário ou direto do magistério da Igreja é a Revelação. Tudo o que está contido no depósito da fé, isto é, na Tradição e nas Escrituras, deve ser crido com fé divina e católica, porque revelado por Deus e, se algo é como tal definido pelo Magistério da Igreja – o que é estritamente chamado de dogma – deve-se crer como doutrina revelada. Assim, a ressurreição de Cristo é claramente atestada pela Escritura, então deve ser crida como ensinada por Deus e é de fide credenda; também o é a Imaculada Conceição de Maria, proclamada como tal pelo Papa Pio IX.

O objeto secundário ou indireto do Magistério é constituído pelas verdades conexas com o depósito da fé. Essa conexão pode ser lógica (as verdades filosóficas ou as conclusões teológicas) ou histórica (os fatos dogmáticos). A esse ensinamento se deve crer em razão da assistência do Espírito Santo ao Magistério da Igreja, no exercício da sua infalibilidade. Não se trata de algo crido porque proposto por Deus, mas porque proposto para crer pela Igreja, que nesses casos é preservada do erro. Ambos os tipos de definição são igualmente definitivas, mudando apenas a razão da fé que se deve prestar. Quanto ao tipo de verdade compreendida pelo objeto secundário, precisa novamente a  Nota doutrinal explicativa da fórmula conclusiva da Professio fidei:

As verdades relativas a este segundo parágrafo podem ser de diversa natureza, revestindo, por conseguinte, um caráter diverso segundo o seu relacionamento com a revelação. Há, de fato, verdades que têm conexão necessária com a revelação em virtude de uma relação histórica; outras verdades, ao invés, evidenciam uma conexão lógica, que exprime uma etapa na maturação do conhecimento, que a Igreja é chamada a realizar, da mesma revelação. O fato de estas doutrinas não serem propostas como formalmente reveladas, uma vez que acrescentam ao dado de fé elementos não revelados ou ainda não reconhecidos expressamente como tais, nada tira ao seu carácter definitivo, que se exige ao menos pela ligação intrínseca com a verdade revelada. Além disso, não se pode excluir que, num determinado momento do progresso dogmático, a compreensão tanto das realidades como das palavras do depósito da fé possa progredir na vida da Igreja e o Magistério chegue a proclamar algumas dessas doutrinas também como dogmas de fé divina e católica.

São exemplos dessas doutrinas os ensinamentos morais da Igreja, aos quais se refere o supracitado parágrafo 2035 do Catecismo, como aqueles sobre a eutanásia, a prostituição e a fornicação, como também o ensinamento sobre o sujeito da ordenação sacerdotal – reconhecido como definitivo na Ordinatio Sacerdotalis, de São João Paulo II – e sobre o ministro da unção dos enfermos – conforme a  Nota sobre o Ministro do Sacramento da Unção dos Enfermos, da Doutrina da Fé, de 2005. Todas essas têm conexão lógica com a revelação. São exemplos com conexão histórica as canonizações dos santos, a invalidade das ordenações anglicanas – declaradas como tal pelo Papa Leão XIII, na Carta Apostólica Apostolicae Curae, de 1896, e declarações sobre a legitimidade de um Concílio Ecumênico ou sobre a eleição de um Papa.

Em tempos em que a Igreja é questionada em todas as instâncias, é fortalecedor para a fé meditar no alcance do cuidado de Nosso Senhor com a sua Igreja. O mundo questiona a moral da Igreja, outros cristãos questionam a sua fé, dentre os próprios fiéis católicos se questiona sobre a Tradição da Igreja, sobre o Concílio Vaticano II e sobre a validade da eleição dos últimos papas. Em nada disso o Senhor deixa de acompanhar a sua Igreja, porque até nisso, tudo tão necessário para a salvação e santificação dos fiéis, o Senhor preservou a sua noiva; até aí a Igreja pode ensinar isenta de erro, para sanar tantas dúvidas nos corações dos seus filhos. Até a consumação dos séculos, o Senhor Jesus está conosco.

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