O celibato sacerdotal: a origem das incompreensões

Na perspectiva do próximo Ano Sacerdotal, convocado pelo Santo Padre com início em 19 de Junho e que terá como tema «Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote», temos o gosto de oferecer aos leitores uma reflexão sobre o celibato sacerdotal, publicada em L’Osservatore Romano, ed. port., 13-XII-08.

Subtítulos da Redacção da CL.

A Encíclica Sacerdotalis caelibatus

Não é difícil recolher um elenco abundante de críticas à lei do «celibato sacerdotal». A Igreja não se esquece delas nem as descuida. Paulo VI quis iniciar a Encíclica Sacerdotalis caelibatus (1967) expondo «honestamente» o «coro de objecções» que se elevava de todos os lados, nos anos que seguiram o pós-concílio. Não era porventura verdade que o celibato dos ministros sagrados não era claro no Novo Testamento? E as razões adoptadas a seu favor pelos antigos escritores eclesiásticos não eram porventura inspiradas «num excessivo pessimismo pela condição humana na carne», com argumentos «já não concordantes com todos os ambientes socioculturais, nos quais a Igreja hoje é chamada a agir»? Que responder a quem julgava errada a decisão de «fazer coincidir o carisma da vocação sacerdotal com o carisma da perfeita castidade», afastando deste modo do sacerdócio «aqueles que teriam a vocação ministerial, sem ter a da vida celibatária»? O que responder a quem se dizia convencido de que «a preocupante rarefacção do clero» deveria ser atribuída «ao peso da obrigação do celibato» e acusava a Igreja de impedir com a sua lei «a plena realização do plano divino de salvação, colocando em perigo, às vezes, a mesma possibilidade do primeiro anúncio evangélico»? Não era talvez verdade que o sacerdote celibatário acabava por se encontrar «numa situação física e psicológica não natural, nociva para o equilíbrio e a maturidade da sua personalidade humana»? Não era porventura verdade que o matrimónio «teria consentido aos ministros de Cristo um testemunho mais completo da vida cristã inclusive no campo da família», não dando oportunidade «a desordens e dolorosas faltas, que ferem e entristecem toda a Igreja»? O que responder a quem via na lei eclesiástica do celibato «uma injusta violência e um desprezo injustificável pelos valores humanos da criação» e temia que os candidatos ao sacerdócio chegassem a aceitá-la passivamente, com uma formação «em todos os casos, desproporcionada à entidade, às dificuldades objectivas e à duração da obrigação» que tinham que assumir? A todas estas objecções – já enumeradas nos primeiros números da Encíclica (5-13) – Paulo VI deu uma resposta clara e atormentada.

A fórmula «lei do celibato»

Desde então passaram mais de quarenta anos, mas elas, em vez de se desfazerem, talvez se tenham consolidado e agudizado, inclusive na mente e no coração de alguns padres. Parece-nos, todavia, que a urgência eclesial dos nossos tempos não seja a de continuar a investigar sobre as objecções, mas procurar, no espírito e na experiência dos próprios ministros sagrados, as raízes «doentes» das quais sempre podem germinar.

A primeira raiz, que seria preciso garantir na sua sanidade original, está ligada à linguagem que herdámos, e que hoje deveria ser definitivamente limpa e esclarecida. A fórmula «lei do celibato» é antiga e consolidada, mas conserva uma certa ambiguidade que não se teve suficientemente em conta. Foi repetidamente esclarecida pelo magistério da Igreja, unindo ao termo «lei» expressões que falam de «escolha livre e perpétua», de «celibato voluntário e consagrado», de «dom ou carisma do celibato», e outros mais. Mas isto não exclui que, na mente de alguns, se tenha radicado a desagradável impressão de ter recebido de Deus a pura vocação para o sacerdócio, mas de ter sido depois obrigado (ou até só «forçado») pela «lei» eclesiástica, à aceitação do celibato. Que esta aceitação deva ser «livre e motivada» não impede o facto de que a chamada ao celibato pareça chegar do exterior, com a força de uma disciplina eclesiástica que poderia até não existir, ou que poderia mudar com o tempo. Sobre esta exposição radicalmente incorrecta – e veremos rapidamente porquê – todas as outras dificuldades, subjectivas e objectivas, podem sempre enraizar-se e proliferar nos momentos de provação ou de perturbação, e destruir progressivamente a serenidade e a consciência de um padre. A sensação dolorosa – mesmo se teologicamente não reflexa – de ter que suportar um carisma, em virtude de uma disciplina eclesiástica, pode tornar-se dila­cerante com o tempo e suscitar um processo de auto-justificação, quando infelizmente se descobrisse transgressor de uma «lei» que o espírito inicialmente partilhou, mas só enquanto lei. O erro é substancial, e a fórmula tradicional «lei do celibato sacerdotal» corre o risco de o perpetuar.

Na realidade, em sentido estrito, uma «lei» do celibato sacerdotal, assim entendida, não existe. A lei da Igreja do Ocidente não atribui o carisma do celibato àqueles que são chamados ao sacerdócio, mas diz que são chamados ao sacerdócio aqueles que receberam de Deus o carisma da virgindade consagrada. Existe sim uma «lei», mas ela consiste, precisamente, em reclamar para a Igreja o direito de «chamar ao sacerdócio» apenas aqueles que ela quer e considera idóneos. De facto, não existe, uma «vocação sacerdotal» totalmente dependente da subjectividade do candidato que se apresenta. Existe uma vocação sacerdotal só quando, quem se oferece para o ministério, é a pessoa dotada daquelas características que a Igreja considera necessárias. E na Igreja latina, uma das características de quem se oferece deve ser aquela de se sentir chamado também para a sagrada virgindade.

A questão pode ser esclarecida com uma afirmação que pode parecer paradoxal mas é, pelo contrário, simplesmente verdadeira: em todos os nossos seminários, a situação dos candidatos actuais não deveria mudar absolutamente, por pura hipótese, se chegasse um dia o anúncio de que foi modificada a disciplina eclesiástica e que podem ser admitidas ao sacerdócio também as pessoas casadas. E isto porque se supõe que os actuais seminaristas se tenham «apresentado», e se estejam a preparar para o sacerdócio, conscientes e desejosos de ter também o carisma da virgindade consagrada. Mas é esta a realidade? O magistério da Igreja tentou definir cada vez mais atentamente esta verdade. Já a Sacerdotalis caelibatus ensinava: «O sacerdócio é um ministério instituído por Cristo ao serviço do seu Corpo Místico que é a Igreja, a cuja Autoridade pertence então o direito de admitir aqueles que ela julga aptos, isto é, aqueles aos quais Deus concedeu, juntamente com outros sinais da vocação eclesiástica, também o carisma do celibato sagrado» (n. 62; cf. n. 15). A Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis (1992) confirma: «O Sínodo, convencido de que a castidade perfeita no celibato sacerdotal é um carisma, recorda aos presbíteros que ela constitui um dom inestimável de Deus à Igreja e representa um valor profético para o mundo actual. Este Sínodo uma vez mais e calorosamente afirma quanto a Igreja latina e alguns ritos orientais exigem, que o sacerdócio só seja conferido àqueles homens que receberam de Deus o dom da vocação para a castidade celibatária» (n. 29). Portanto um candidato ao sacerdócio que reconhecesse «não ter recebido do Espírito o carisma da virgindade» deveria simplesmente concluir que «não tem a vocação para o sacerdócio».

Celibato e sacerdócio

Outra questão grave é perguntar-se se a formação dos candidatos ao sacerdócio, oferecida hoje nos seminários, respeita verdadeiramente esta lógica profunda. O carisma do «celibato sagrado» tem um conteúdo espiritual próprio, caracterizado pelo «sacerdócio» com o qual deve «convir». Trata-se de uma virgindade propriamente sacerdotal: devendo agir «na pessoa de Cristo» (no anúncio da Palavra e na oferta do Sacrifício), o ministro compromete-se «virginalmente», optando por uma relação pessoal mais íntima e complexa com o mistério de Cristo e da Igreja em benefício da humanidade inteira» (Sacerdotalis caelibatus, n. 54).

Mas este realce, assim específico, não deveria esquecer os três conselhos evangélicos (de «virgindade-pobreza-obediência») que constituem teologicamente um unicum. Os três conselhos não são separáveis: na sua unidade eles evocam a fé na Santíssima Trindade (escolhe-se ser pobre perante o Pai rico de todos os dons; obedientes como o Filho; virgens pelo amor unificador e fecundo do Espírito Santo), eles unem intimamente o cristão ao mistério do Filho encarnado que viveu pobre, casto e obediente; exprimem com radicalidade o dinamismo das três virtudes teologais; conduzem ao redescobrir da estrutura originária do ser humano e an­tecipam o mundo novo. Não se pode «professar» a virgindade, sem professar também a pobreza e a obe­diência. Isto não significa absolutamente que os presbíteros tenham que se tornar monges ou frades, nem que devam explicitar a sua opção com votos particulares. Mas o presbítero não poderá verdadeiramente viver virginalmente, se não escolhe viver também, de maneira muito concreta, o conselho da pobreza e o da obediência: de modo que o Deus sumamente amado (virgindade) se torne também a única riqueza (pobreza), mas na contínua busca da Sua vontade (obediência). E assim como a virgindade tem várias dimensões (espirituais, morais e físicas), devem tê-las também a pobreza e a obediência do presbítero.

Presbyterorum ordinis falou demoradamente deste tema (cf. n. 15-17), mas fez disso só uma questão de espiritualidade pessoal do padre. Talvez tenha chegado o momento em que a questão esteja ligada mais explí­cita e organicamente ao tema da missão, e que se extraiam as consequências, ainda que estruturais, que incidem sobre a formação e a maneira concreta de viver dos presbíteros. Para a obediência evangélica não basta a promessa relativa ao bispo e o respeito dos pronunciamentos excepcionais da autoridade eclesiástica. É preciso que toda a vida se torne um tecido de obediência e que o padre, chamado a agir sobre os fiéis in persona Christi, experimente ele mesmo em primeiro lugar a influência da pessoa de Cristo presente num ministro de Deus, aceitando habitualmente sobre si mesmo a mediação competente e formativa de outro sacerdote, escolhido como guia. Desta obediência objectiva deveria, depois, fazer parte também uma verificação habitual concreta da pobreza evangélica na qual o presbítero deveria emergir alegre, concreta e socialmente. Na minha opinião, impõe-se neste ponto uma última evidência: virgindade, pobreza e obediência (sobretudo a virgindade) não são verdadeiramente vividas fora de uma pertença comunitária realista. Não se trata de imaginar modos de vida monásticos ou conventuais para o padre, mas é necessário que a sua pertença ao presbitério, sob a paternidade do bispo, se exprima em modos de comunhão de vida que, em grande parte, ainda terão de ser inventados e que deveriam ser activos desde os anos de formação, envolvendo os próprios formadores.

ANTÓNIO MARIA SICARI, Carmelita

Consultor da Congregação para o Clero

Referência: Cliturgica

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