Mortificação e Penitência

O Sacrifício Voluntário

Conta-nos o Evangelho que Jesus, depois de ter repreendido severamente São Pedro, porque – cheio de um carinho mal entendido – queria afastá-Lo da Cruz (Mt 16,23), dirigiu o olhar aos outros discípulos e lhes disse com firmeza: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16, 24).

Lemos também no Evangelho que, certa vez, Jesus estava acompanhado de muito povo. Era o tempo em que as multidões o seguiam com um entusiasmo, e em que a fé de muitos alternava com a emotividade superficial e com o interesse. Cristo, que conhecia bem os homens e os amava, quis gravar-lhes na alma a idéia clara de que, sem tomar a Cruz, era impossível segui-lo pelo seu caminho, pois é caminho de amor. E assim, voltando-se para os que o cercavam, alertou-os: Quem não carrega a sua cruz e me segue não pode ser meu discípulo. E, para deixar essa afirmação bem vincada, ilustrou-a com uma comparação: falou-lhes de um homem que, desejando construir uma torre, errou nos cálculos e não previu os meios necessários para edificar. Aconteceu o inevitável: fracassou, de modo que todos os que o viam ficavam zombando dele e diziam: Este homem principiou a edificar, mas não pôde terminar! O Senhor esclareceu que assim aconteceria com aqueles que quisessem segui-lo sem renúncia e sem Cruz (cfr. Lc 14, 25-30).

Reparemos que, nessas passagens do Evangelho, Jesus fala de algo que depende de nós. Algo que podemos fazer ou não – Se alguém quiser… -, algo que pertence, portanto, à nossa livre iniciativa.

Sempre a Cruz deve ser tomada livremente. Em primeiro lugar, a que Deus nos envia sem nós a procurarmos, ou seja, a Cruz do sofrimento inesperado, que devemos saber abraçar com fé e amor. Mas há outra Cruz santa que – com a ajuda da graça – depende totalmente da nossa decisão, da nossa generosidade, e é justamente a dos sacrifícios voluntários. Se nós queremos, sacrificamos um fim de semana para dar assistência aos pobres; se nós queremos, deixamos de ir ao cinema para visitar um doente; se nós queremos, assumimos os trabalhos mais pesados em casa. Mas ninguém nos impõe nada. Se não queremos, não fazemos nada disso.

Homem Velho e Homem Novo

Sacrifícios voluntários? Mortificação? Penitência? Meter na nossa vida mais “cruzes”, quando a vida já traz tantas sem que as procuremos? Por quê?

Vamos deixar que, mais uma vez, o Espírito Santo nos responda pela boca de São Paulo.

Este Apóstolo serve-se com freqüência de uma comparação: a imagem dos dois homens que estão sempre brigando dentro de nós: o homem velho e o homem novo. Poderíamos traduzir por “homem modelado pelos parâmetros mundanos, pagãos” e “homem modelado – conforme a imagem de Cristo – pela graça do Espírito Santo”.

Assim, escrevendo aos Efésios, o Apóstolo pede-lhes: Não persistais em viver como os pagãos, que andam à mercê das suas idéias frívolas […]. Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelos desejos enganadores. Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em justiça e santidade verdadeiras (Ef 4, 17.22-24). É claro que está lhes propondo uma luta árdua, mediante a qual deverão arrancar – quase como se arranca a pele – o homem velho, para revestir-se do homem novo.

As mesmas idéias, mais sinteticamente expostas, encontramo-las na Carta aos Colossenses: Vós vos despistes do homem velho com os seus vícios, e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem dAquele que o criou (Col 3, 9-10).

Um terceiro texto, dirigido aos Gálatas, completa os anteriores: Os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências (Gál 5, 24). Para entender o que quer dizer, é preciso ter presente que, na mesma carta, havia explicado o que é a carne e as suas concupiscências (palavra que significa aqui maus desejos), mostrando que por carne entende – como é comum em textos bíblicos – o homem egoísta, afastado da graça de Deus e mergulhado no materialismo, cujo deus é o ventre […] e só tem prazer no que é terreno (Fil 3, 19).

Característica típica do homem velho é a de se deixar dominar pelos desejos da carne, que – como explica detalhadamente o Apóstolo – se chamam fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdia, facções, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes (Gál 5, 19-21).

Esta é a carne que deve ser crucificada, ou seja, mortificada, dominada e vencida com a renúncia, com o sacrifício, com a Cruz.

Meio de Purificação

A mortificação voluntária – que faz parte essencial da luta do cristão – é um meio necessário de purificação. Santo Agostinho tem um pensamento muito profundo a este respeito. Lembra que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e que o pecado “deformou” essa imagem e apagou a semelhança. A graça de Deus, recebida no Batismo, fez-nos renascer para uma vida nova. É tarefa nossa colaborar com a graça para limpar os males que nos deformam; só assim ela nos devolverá à “forma” primeira, que é a imagem do ser de Deus (1).

Como é sugestiva esta idéia, para nos ajudar a compreender que a formação cristã não se limita ao conhecimento da verdade, da doutrina – ler, estudar, aprender -, mas exige um trabalho de purificação – de limpar, de extirpar, de endireitar, de podar o que procede do egoísmo -, para podermos “arrancar a triste máscara que forjamos com as nossas misérias” (2), e estarmos em condições de ir reproduzindo fielmente em nós os traços do nosso modelo, Jesus Cristo.

Pensemos seriamente qual é o nosso homem velho, quais são as nossas paixões e concupiscências, para assim podermos descobrir as mortificações que precisamos fazer a fim de arrancar de nós as máscaras deformantes. Não é muito difícil adivinhar. Difícil é concretizar… e fazer.

Na realidade, todos notamos em nós mesmos defeitos que nos prejudicam, hábitos, vícios de diversas espécies, que nos dominam; falhas de caráter que atrapalham o nosso trabalho; atitudes desagradáveis ou omissões no nosso relacionamento com os outros… Pois bem, é aí que deve entrar a nossa cruz, ou seja, os sacrifícios necessários para corrigir tais defeitos.

Fazer Penitência

A fé nos mostra o imenso valor que podem ter os padecimentos – os sofrimentos que Deus manda ou permite -, como meio de nos unirmos à Cruz de Cristo, a fim de reparar – expiar – pelos nossos pecados e pelos pecados de todo o mundo.

Também o sacrifício voluntário pode ter – e muitas vezes deve ter – uma função reparadora, de penitência pelos pecados.

O Catecismo da Igreja Católica, ao falar dos tempos e dias de penitência, cita as práticas penitenciais que são mais tradicionais na Igreja, porque o próprio Cristo se referiu a elas no Sermão da Montanha (cfr. Mt 6, 1 e segs.), a saber: a oração, o jejum e a esmola. E frisa de modo particular o valor que tem a mortificação – o jejum e outras privações voluntárias -, como meio de reparação dos pecados (cfr. ns. 1434 e 1438).

É muito próprio do espírito de um cristão determinar-se a cumprir algumas dessas práticas penitenciais – além do jejum e da abstinência de carne prescritos pela lei da Igreja – sobretudo em dias ou períodos especialmente relacionados com a Paixão de Jesus, como são as sextas-feiras e o Tempo da Quaresma. Todo bom católico deveria definir bem, até por escrito, o seu “plano” de penitências para a Quaresma (não comer tal ou qual doce ou refrigerante, reduzir a assistência à tv, abster-nos de bebidas alcoólicas, aumentaro tempo diário de oração, dedicar mais tempo a obras sociais, fazer freqüentes visitas à igreja para rezar algumas orações de joelhos, etc.).

Na realidade, porém, não deveríamos limitar-nos às obras de penitência em datas ou tempos determinados. Todos os dias deveriam estar enriquecidos – polvilhados – por algumas pequenas privações, oferecidas por amor e com alegria, como atos de reparação pelos pecados próprios e alheios, e também como exercícios de autodomínio que nos ajudassem a “converter-nos”: a ser mais senhores de nós mesmos e a mudar, a “converter-nos”, com a graça de Deus.

Em maio do ano 2000, o Papa celebrou em Fátima a beatificação dos meninos Jacinta e Francisco. Ao elevar os dois pastorinhos à glória dos altares, o Santo Padre fez questão de realçar a generosidade com que ambos, a pedido de Nossa Senhora, se entregaram à penitência “pelos pobres pecadores”. De Francisco, dizia o Papa que “suportou os grandes sofrimentos da doença que o levou à morte sem nunca se lamentar. Tudo lhe parecia pouco para consolar Jesus; morreu com um sorriso nos lábios. Grande era, no pequeno Francisco, o desejo de reparar as ofensas dos pecadores, esforçando-se por ser bom e oferecendo sacrifícios e oração. E Jacinta, sua irmã, quase dois anos mais nova que ele, vivia animada dos mesmos sentimentos”. Citava depois o Papa as palavras com que Jacinta se despediu de Francisco, pouco antes de este morrer: “Dá muitas saudades minhas a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e dize-lhes que sofro tudo quanto Eles quiserem para converter os pecadores” (3).

Como é tocante essa lição dos pequeninos, dos simples, que ouvem e entendem a voz de Deus, por meio de Maria! (cfr. Lc 10, 21). Podemos ter a certeza de que a perda do sentido da penitência, entre os cristãos, anda em paralelo com a perda do sentido do pecado, e que isto significa que enfraqueceu muito ou se perdeu o sentido do amor de Deus.
É interessante recordar que, no mesmo Ano Santo de 2000, o Santo Padre ajudou-nos a revigorar uma verdade da nossa fé que tem uma relação mmuito estreita com a necessidade da penitência: a doutrina das indulgências. Com elas, com efeito -ao realizar, com as devidas condições, as obras indulgenciadas- , entramos em comunhão com o tesouro do “amor, do sofrimento suportado, da pureza” de todos os nossos irmãos na fé, que deixaram atrás de si como que um “saldo” de méritos, unidos às riquezas dos méritos de Cristo, de Maria e dos santos; é um imenso tesouro que a Igreja encaminha a cada um de nós, como uma transfusão de sangue puro (4), por meio da indulgência, para a purificação da “pena temporal” devida pelos nossos pecados, ou seja, da pena que deveríamos pagar no Purgatório, por não termos expiado suficientemente os nossos pecados aqui na terra.
E esse mesmo dom da indulgência, esse tesouro de méritos e graças que “circula” no Corpo místico de Cristo, pode ser aplicado sempre às almas do Purgatório, com as quais estamos estreitamente unidos pela Comunhão dos santos. Mediante esse “intercâmbio maravilhoso de bens espirituais” , podemos auxiliar pais, parentes, amigos, conhecidos…, todos os que se encontram no estado de purificação que chamamos Purgatório, para que possam ir logo ao encontro do abraço eterno de Deus . É uma maravihosa comunhão e ajuda mútua na penitência: na expiação e a purificação (5) (Cfr. Bula pontifícia Incanationis mysterium, nn. 9 e 10).

(Adaptação de um trecho do livro de F.Faus, A sabedoria da Cruz)

1 Sermão 125,4

2 São Josemaria Escrivá, Via Sacra, VI estação

3 João Paulo II, Homilia na Beatificação, Fátima 13.05.2000

4 Cf. São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 544

5 Bula Incanationis mysterium, num. 9 e 10

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