Homilia Sexta-Feira da Semana Santa | Ano C

O mistério da sexta-feira santa

Sexta-feira Santa – C – Is 52,13-53,12; Sl 30; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1-19,42

Hoje é um dia de crise! Os discípulos de Jesus Cristo tinham acreditado e esperado que ele seria o Salvador, porém, nesse momento, eles estão vendo que o seu Cristo está morto. A sexta-feira santa dos apóstolos deve ter sido verdadeiramente desastrosa: por um lado, o sentimento de culpa de que eles não tinham sido leais a Jesus; por outro, a verificação de que a sua esperança estava morta ali diante deles. Precisamente nesse momento de crise profunda, a Igreja é fundada.

O corpo de Jesus é como um muro no qual se faz um buraco para que tenhamos acesso à eternidade. Na sexta-feira santa isso acontece literalmente, quando “um dos soldados transpassou-lhe o lado com a lança e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19,34). É certo, assim como a antiga Aliança está escrita em tábuas de pedra pelo dedo de Deus (Ex 31,18), a nova Aliança deve estar escrita nas tábuas da carne de Jesus pelo mesmo dedo de Deus. Mas esse processo é dolorido, é feito com o fogo do Espírito.

Muitos Padres da Igreja viram em Jo 19,34 o surgir da Igreja com a seguinte lógica: assim como do primeiro Adão dormido, Deus fez, da costela dele (do lado de Adão), Eva, esposa do homem; assim do novo Adão dormido, o Cristo na cruz, Deus fez, a partir do lado aberto do Filho, uma nova Eva, a Igreja, a Esposa de Jesus Cristo. Nesse sentido, é interessante observar que o Cristo estava dormido (morto) e, portanto, teremos que entrar na morte Dele para entender como tudo isso aconteceu.

Na mente de Paulo, há uma relação profunda entre Gn 2,24, que fala da união matrimonial, e a união entre o Cristo e a Igreja, concluindo, portanto, que o amor-respeito (cf. Ef 5,33) entre os cônjuges deve ser uma imagem da realidade do amor-respeito entre o Cristo e a Igreja. Ao extrair esse ensinamento a partir da união matrimonial segundo Gn 2, 24, o Apóstolo também está mostrando que Adão e Eva eram “týpoi”, isto é, figuras ou imagens de realidades maiores e mais excelentes e, no caso concreto, o sono de Adão do qual surge Eva é figura do sono (morte) de Cristo do qual surge a Nova Eva, a Igreja. Sendo assim, a costela de Adão, Eva, é apenas reflexo da costela de Cristo, a Igreja. Certamente com essas explicações já nos encontramos muito próximos de afirmar que a Igreja é o Corpo de Cristo.

São Justino (+165) é um dos primeiros a intuir o nascimento da Igreja do lado do Senhor ao afirmar: “Depois que esse Justo foi crucificado, nós florescemos como povo novo e brotamos como espigas novas e férteis, da maneira como os profetas predisseram”. O fato de Justino colocar o surgimento do povo novo após a crucificação de Cristo sugere que ele tenha em conta o clássico tema do lado aberto do Senhor, do qual jorra água e sangue. O santo filósofo é bem categórico quando diz que “da mesma forma que Eva foi formada do lado de Adão adormecido, assim a Igreja nasceu do coração transpassado de Cristo morto na cruz”. Santo Ambrósio (+397) também afirma: “Da mesma forma que Eva foi formada do lado de Adão adormecido, assim a Igreja nasceu do coração transpassado de Cristo morto na cruz” (Lc 2,85-89). Observe-se que o santo bispo de Milão usa como sinônimos a palavra lado e coração, ainda que o texto de Jo 19, 34 use a expressão “lado”.

São João Crisóstomo (+407), fixando-se no poder do sangue de Cristo, nos faz ir até o templo de Jerusalém, no qual, como afirma o Evangelho segundo Mateus, logo após a morte de Jesus, “o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo” (Mt 27,51). Lucas relata a mesma coisa (cf. Lc 23,45). Em João, porém, o que se rasga é o lado do Senhor do qual jorra sangue e água, e, consequentemente, jorra a Igreja, o novo Templo, nascida do lado do Senhor, do seu sangue: “Cristo formou a Igreja de seu lado traspassado, assim como do lado de Adão foi formada Eva, sua esposa. Por esta razão, a Sagrada Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gn 2,23), que São Paulo refere, aludindo ao lado de Cristo. Pois assim como Deus formou a mulher do lado do homem, também Cristo, de seu lado, nos deu a água e o sangue para que surgisse a Igreja. E assim como Deus abriu o lado de Adão enquanto ele dormia, também Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono de sua morte” (São João Crisóstomo, Das Catequeses, 3, citado na Liturgia das Horas, II, Sexta-feira Santa, segunda leitura do Ofício de Leituras).

No momento mais difícil, de prova, de morte, de falta de fé e de esperança por parte dos discípulos do Senhor, surge o dom da Igreja e dos sacramentos da água e do sangue, isto é, o batismo e a eucaristia. Mesmo que a Igreja Católica passe por diversas crises no seu peregrinar terreno, ela é a Igreja que surge da crise, ela tem a imunidade que vem do Senhor e, portanto, está preparada para enfrentar os dissabores deste mundo. Uma Igreja que surge do sangue do Redentor nada tem a temer, ela é o Corpo de Cristo fixado no Universo para o resgate de todos os povos. A Igreja sabe que sua Cabeça é o próprio Jesus Cristo e por isso encontra-se segura, pois mesmo em tempos de crise ela já está de olhos fixos na vitória, na ressurreição.

Nós somos membros da Igreja, isto é, membros do Corpo de Cristo. Precisamos entender os momentos de crise, tanto os pessoais como os coletivos, como espaços de oportunidade. Assim como mistério da sexta-feira santa foi a nossa salvação no corpo de Cristo, isto é, na Igreja surgida do sono (morte) do Redentor, assim também, para nós, a sexta-feira santa é oportunidade de vida.

Padre Françoá Costa

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