O prólogo de São Lucas
3º Domingo do Tempo Comum – C – Ne 8,2-10; Sl 18; 1 Cor 12,12-30; Lc 1,1-21
São Lucas, ao escrever a vida de Jesus Cristo, tem preocupações históricas, pois ele nos dá notícias que fez uma “acurada investigação de tudo desde o princípio” (Lc 1,3) e conhece as narrações anteriores existentes (Lc 1,1), as “tradições”. Essas coisas foram transmitidas por escrito, nem sempre pelos apóstolos, pois dos quatro evangelistas, apenas Mateus e João são apóstolos. Tendo intenções teológicas, o Evangelho segundo Lucas quer ser uma “narração dos fatos”. Inclusive a maneira como foram escritos os livros sagrados projeta luz sobre a fé do cristão, que passa a acreditar de maneira mais razoável. Um filho de Deus não pode ser crédulo, supersticioso. Não dependendo do exame da razão, sua fé deve ser autêntica e razoável.
Parece que no começo houve muitos cristãos que procuravam guardar por escrito as memórias apostólicas, já que “muitos tentaram compor uma narração dos fatos” (Lc 1,1). É algo natural: tanto os que viram Jesus Cristo em carne mortal, quanto os que conheceram o fervor dos primeiros cristãos, queriam guardar palavras sobre o nosso Salvador. Amavam Jesus e queriam guardá-lo na mente, no coração e nos escritos. A pregação dos Apóstolos era algo importante não somente para eles, mas para todos nós. Não é difícil pensar que os cristãos daquele tempo já pensavam no bem espiritual dos seguidores de Jesus que viriam depois deles e, por isso, queriam transmitir por todas as formas o tesouro que se chama Jesus Cristo.
Certamente, sabe-se pela história que nem todos os primeiros cristãos tinham uma fé correta sobre Jesus, por isso alguns textos seriam naturalmente descartados por não expressarem a fé verdadeira. A maior dificuldade de alguns discípulos de Jesus que vieram do judaísmo era entender a Trindade de pessoas em Deus, uma vez que tinham crescido na fé de Moisés, a qual afirma verdadeiramente que Deus é somente um (Dt 6,4-7). Como entender que Jesus é Deus? Não seria ele apenas um ungido por Deus de maneira especial ou um profeta mais poderoso que todos os anteriores? Talvez se pudesse entender Jesus como um dos momentos do único Deus, um modo de Deus manifestar-se? As nossas perguntas já mostram algumas respostas que alguns daqueles primeiros cristãos davam sobre Jesus Cristo. Consequentemente os textos que eles escreveram sobre Jesus estavam cheios dessas opiniões, segundo as quais Jesus seria um simples homem no qual habita Deus, um filho de Deus especialmente adotado, um profeta poderoso. Para a grande Igreja, que confessa Jesus como Deus que se fez homem (Jo 1,14), as respostas judeu-cristãs não serviam, nem seus textos; eram respostas heréticas.
Outros discípulos de Jesus vieram do mundo pagão. Ao contrário dos anteriores, a dificuldade dos heleno-cristãos era entender a unidade de Deus, pois, pelo histórico no politeísmo, era mais fácil para eles aceitar a Trindade de Pessoas. Jesus seria para esses cristãos heréticos um deus de segunda categoria, uma divindade subordinada, uma pessoa divina que utilizaria de maneira externa “sua humanidade”, um eón ou um ser mais desenvolvido. Todas essas opiniões, rejeitadas pela Igreja Católica, deveriam ser igualmente rechaçadas em seus escritos. Os textos ditos apócrifos não cabiam no contexto da fé católica. Lucas, com razão, diz que existiram várias pessoas que tentaram compor narrações sobre Jesus Cristo e que o texto que ele escreve a Teófilo insere-se neste contexto, porém, diferentemente de outros, o seu texto é um trabalho de exatidão histórica.
A base de todas essas narrações é aquilo que foi visto e escutado pelas testemunhas, ou seja, pessoas que presenciaram Jesus e suas ações (Lc 1,2). Nós, os cristãos, cremos pelo testemunho dos Apóstolos. Eles nos transmitiram Jesus Cristo (Fonte de Revelação) a partir daquilo que viram e ouviram do próprio Senhor, o Verbo da vida (1 Jo 1,1), seja pela pregação (Tradição), seja pelos escritos (Bíblia). A Revelação e o Revelador é Jesus Cristo, Palavra do Pai (Jo 1,1); a transmissão da Palavra é Tradição; pô-la por escrito é Bíblia. Interpretar tudo isso é tarefa autêntica dos Apóstolos e seus Sucessores, os Bispos, detentores do Magistério, uma vez que são eles os que estão envolvidos nessa nuvem misteriosa. Pretender, pois, entender as Escrituras à margem do evento apostólico é jogar-se em floresta fechada sem cachorro nem bússola. Mais ainda, a Escritura, por ser um livro da Família chamada “Católica”, fecha-se, habitualmente, àqueles que não têm o Espírito da Família. Desta feita, “É neles que se cumpre a profecia de Isaías [6,9], que diz: Certamente haveis de ouvir, e jamais entendereis. Certamente haveis de enxergar, e jamais vereis” (Mt 13,14).
Nesse sentido, há que considerar os fatos divinas “conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra” (Lc 1,2). A nossa conformidade é com a fé das testemunhas de Jesus. Isto é, temos que ser “formados com” (conformados) pela fé que realmente nos transforma em “o mesmo Cristo”. Pelo contrário, a heresia nos deforma. Efetivamente, as pessoas começam por não acreditarem mais na intercessão dos santos e terminam por negar a Deus e abraçar a “religião” secular, laicista, inimiga de Deus e da salvação das pessoas. Uma tal transformação não pode ser somente doutrinal, mas também nas palavras, na vida, nos costumes e no mais profundo do ser.
Jesus entrega aos seus discípulos aquilo que recebeu do Pai; os Apóstolos, aquilo que receberam de Jesus; nós, aquilo que os Apóstolos nos transmitiram através da sucessão. A responsabilidade é muito grande, pois é preciso que entreguemos o que recebemos com fidelidade. Não se pode mexer na mensagem do Salvador, nem na fonte, alterando a Tradição, nem no fim, mudando a mente das pessoas com interpretações erradas. Contudo, como dizia São Vicente de Lerrins: progresso, sim; alteração, não. Afirma o mesmo santo: “É, portanto, necessário que, pelo passar das idades e dos séculos, cresçam e progridam tanto em cada um como em todos, no indivíduo como na Igreja inteira, a compreensão, a ciência, a sabedoria. Porém apenas no próprio gênero, a saber, no mesmo dogma o mesmo sentido e a mesma significação” (Da Primeira Exortação de São Vicente de Lerins, presbítero, Cap. 23: PL 50,667-668).
Ser testemunhas “desde o princípio” significa a mais firme fidelidade, uma vez que “o princípio” é uma referência à qual se recorre muito. Jesus mesmo se refere ao princípio para restabelecer o plano de Deus para o matrimônio e a família: “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas desde o princípio não era assim” (Mt 19,8). Quando a gente percebe que uma conta matemática está errada, mesmo que seja por pouca diferença, começamos de novo “ap arches” (desde o princípio). Quando percebermos que estamos concluindo fora da Tradição, mesmo que seja somente com uma pequena diferença, “façamos as contas” de novo “ap arches”. Quanto às intervenções interpretativas dos começos, recordemo-nos que, segundo a ética da medicina, só se pode intervir no embrião para ajudá-lo, não para prejudicá-lo nem para matá-lo.
Qual o princípio da nossa vida interior? O batismo, sacramento da Fé. Sendo assim, todo crescimento interior nosso seja de acordo com o Batismo e da Fé. Viver “desde o princípio” é beber continuamente da fonte batismal. Em vez de ler esse ou aquele santo para imitar a espiritualidade dele, uma tal leitura deveria servir-nos para que aprendamos dele a ir deixando o Espírito produzir em nós espiritualidade “ap arches”: fidelidade, lealdade, firmeza, piedade, penitência etc. Não sem fundamento, os santos nos deram doutrinas, espiritualidades e costumes profundamente cristãs, tão inspirados “no princípio” que têm como modelos os primeiros cristãos. Uma análise tranquila do que procuram viver pelos filhos “do princípio” nos nossos tempos, faz-nos ver um amor profundo a Jesus Cristo e à sua Santíssima Mãe, amizade com os amigos de Deus (anjos e santos), a santificação do trabalho e de outras coisas ordinárias como eixo, a glória de Deus como fim, naturalidade e discrição desejadas. Enfim, a vida dos primeiros cristãos converteu o império romano. Portanto, aqui encontra-se a nossa inspiração: “ap arches”.
Padre Françoá Costa
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