Homilia do Padre Françoá Costa – XXXII Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Creio na ressurreição da carne

 

A nossa Ressurreição, como a de Cristo, será obra da Santíssima Trindade (cf. Cat. 989). Logo após a morte do ser humano há o juízo particular (cf. Hb 9,27) e ele experimenta céu (ou purgatório com preparação para o céu) ou inferno em sua alma, não em seu corpo, que fica enterrado e com o tempo chegará à completa putrefação. Contudo, a fé cristã professa que ressuscitaremos com os nossos corpos (cf. 1 Cor 15,12-14.20; Cat. 990). Além disso, a valorização de uma antropologia realista também nos leva a ver a conveniência dessa doutrina: Deus criou o homem inteiro, corpo e alma. Por que negar ao corpo os bens eternos que a alma desfruta?

Em 2 Mac 7,1-2.9-14 se vê claramente a confiança na ressurreição; além disso se pode observar (2 Mac 7,9.14) que há uma ressurreição para a vida (céu) e outra para a morte (inferno). Nos tempos de Cristo havia judeus que acreditavam na ressurreição (fariseus) e outros que não acreditavam (saduceus). No texto de Lc 20,27-38, a questão é a ressurreição. De fato, começa falando do grupo religioso judeu que negava a ressurreição: “alguns saduceus – que negam a ressurreição, aproximaram-se de Jesus” (Lc 20,27).

Ao interpretar a Sagrada Escritura em favor de sua falta de fé na ressurreição, Jesus diz que eles estavam errados (cf. Mc 12,24). Deus que fez o homem do nada pode muito bem ressuscitá-lo a partir daquilo que ele já foi. São Paulo fala de um “corpo espiritual” (1 Cor 15,44): é o mesmo corpo do sujeito em questão, mas transfigurado, em sua máxima vivificação graças ao Espírito Santo.

No século II, Santo Ireneu afirmava que a doutrina da ressurreição dos mortos faz parte da fé apostólica (Adversus haereses, III, 12, 3). Orígenes nos dá notícia de que no século III, a ressurreição dos mortos era ridicularizada pelos os infiéis (Contra Celsum, I, 7). Santo Agostinho, no século V, afirmava que em seu tempo essa doutrina era a que mais recebia oposição.

A objeção é antiga. Porfírio, homem do século II, formulou-a da seguinte maneira: “como ressuscitará um indivíduo que perece no mar e que é comido pelos peixes, cujas partículas ficam dispersas através da cadeia alimentar: os pescadores comem os peixes e os homens são devorados pelos cachorros, e estes são comidos pelas aves?”

Atenágoras de Atenas, apologista cristão do século II, fez eco dessa objeção para depois combatê-la: o poder de Deus pode “distinguir e reunir em suas próprias partes e membros aquele que, despedaçado, foi parar numa multidão de animais de toda espécie, que costumam atacar tais corpos e saciar-se deles, tenham ido parar em só desses animais ou em muitos, e destes em outros e, dissolvido juntamente com eles, tenha voltado, conforme a natural dissolução, aos primeiros princípios. Parece ser isso o que mais perturba alguns, entre aqueles cuja sabedoria é admirável; não sei por que consideram tão grandes as dificuldades correntes entre o vulgo” (Sobre a ressurreição dos mortos, I, 3).

Na segunda parte da supracitada obra, Atenágoras enumera vários argumentos a favor da ressurreição dos mortos:

1º) o homem, todo ele, alma e corpo, foi criado para a vida eterna: “se o Criador de todo este universo fez o homem para participar da vida racional e, feito contemplador de sua magnificência e sabedoria que em tudo brilham, permanecer sempre nessa contemplação, segundo o seu desígnio e conforme a natureza que lhe coube como sorte, a causa da criação nos garante a permanência para sempre e a permanência garante a ressurreição, pois sem ela não seria possível ao homem permanecer para sempre” (II, 13);

2º) o ser humano é alma e corpo, esta é a sua natureza conforme o desígnio de Deus para ele: “agora, como universalmente, toda a natureza consta de alma imortal e de corpo que foi adaptado a essa alma no momento da criação; como Deus não destinou tal criação, tal vida e toda a existência à alma por si só ou ao corpo separadamente, mas aos homens, compostos de alma e corpo, a fim de que pelos mesmos elementos dos quais se geram e vivem, cheguem, terminada a sua vida, a um só e comum termo; como de corpo e alma se formam um só animal que sofre o mesmo que alma e corpo sofrem, que age e realiza tanto o que se refere à vida sensível como ao juízo racional, é inteiramente necessário que todo esse conjunto se refira a um só fim e desse modo, em tudo concorra a uma só harmonia e à mesma união de sentimentos no homem” (II, 15);

3º) o prêmio ou o castigo é para o homem inteiro, corpo e alma unidos: “chamo de composto o homem com seu corpo e alma, e digo que esse é o responsável por todas as suas ações e receberá o prêmio ou castigo por elas. Ora, se um julgamento justo dará sobre o composto a sentença das obras, nem a alma sozinha receberá a recompensa do que realizou junto com o corpo, pois por si ela é insensível aos pecados que possam ser cometidos pelos prazeres, alimentos ou cuidados corporais, nem o corpo sozinho, pois por si mesmo ele é incapaz de discernir a lei e a justiça. Ao contrário, é o homem, composto de alma e corpo, que recebe o julgamento de cada uma das obras por ele feitas” (II, 18);

4º) a felicidade última do homem só é alcançada na eternidade e, dessa maneira, o homem inteiro, corpo e alma, devem estar no céu: “também não pode ser fim do homem a felicidade da alma separada do corpo, pois não se deve considerar a vida ou o fim de um dos elementos de que o homem se compõe, mas a vida e o fim do composto dos dois. Com efeito, assim é todo homem ao qual cabe como sorte a presente existência, e a vida deste é a que deve ter algum fim peculiar. Ora, se o fim deve ser o composto, não é possível encontrar esse fim nem enquanto os homens vivem, pelas causas muitas vezes alegadas, nem a alma separada do corpo, uma vez que tal homem não pode sequer subsistir, pois logo o corpo se desfaz e se dispersa totalmente, embora a alma permaneça por si mesma. Portanto, é absolutamente necessário que o fim do homem apareça em outra constituição do composto e do próprio animal. E se isso acontece necessariamente, é absolutamente necessário que se dê a ressurreição dos corpos mortos e até totalmente dissolvidos e que reconstituam os mesmos homens, mas dos homens mesmos que viveram a vida anterior. Mas não é possível reconstituir os mesmos homens, se não se devolvem os mesmos corpos às mesmas almas, e não é possível que as mesmas almas recebam de outro modo os mesmos corpos, a não ser pela ressurreição” (II, 25).

Como se pode ver, Atenágoras defende a ressurreição apoiando-se constantemente no poder de Deus, por um lado, e na natureza dos homens, por outro. Além disso, defende a identidade do corpo glorioso (após a ressurreição) com o corpo que tínhamos: se não há identidade entre os corpos, não seriamos nós mesmos!

Como corolário, poderíamos afirmar que essa identidade corpórea refuta a doutrina da reencarnação: nós não seríamos nós mesmos se adquiríssemos diversos corpos em sucessivas encarnações. Além disso, porque somente a alma pagaria por atos feitos conjuntamente com o seu corpo? Há na teoria da reencarnação uma falsa antropologia. Ademais, a teoria da reencarnação deixa a salvação nas mãos dos homens e não valoriza suficientemente o mistério pascal de Cristo: ele nos salvou, abriu-nos o céu! O Catecismo da Igreja Católica é categórico: “não voltaremos mais a outras vidas terrestres. “Os homens devem morrer uma só vez” (Hb 9,27). Não existe “reencarnação” depois da morte” (Cat. 1013).

A ressurreição do homem acontece, conforme a fé cristã, segundo o modelo da ressurreição de Cristo. É importante, portanto, considerarmos essa dimensão cristológica da ressurreição de todos os homens que, de alguma maneira, se encontram em Cristo, já que ele assumiu a natureza humana. Contudo, de maneira especial, a cristificação do homem se entende melhor na “ressurreição para a vida”. Afirma um famoso teólogo que a ressurreição dos homens é o desenvolvimento máximo da união do homem com Cristo. Precisamente aqui a escatologia aparece como Cristologia consumada (cf. M. SCHUMAUS, Teología Dogmática, VII: Los novísimos, Madrid 1961, p. 216 em J. J. ALVIAR, Escatología. Pamplona: EUNSA, 2004, 176). O Verbo encarnado assume não somente a natureza humana concreta, mas une a si a natureza humana enquanto tal, enquanto realidade que se perpetua na história, encarnada nos diversos sujeitos. Cristo une a si a realidade humana e a realidade cósmica, arrasta-as consigo numa história que passa pelo esvaziamento e termina na glória. Jesus Cristo partilha ao máximo, até à morte, a realidade humana, para depois fazer com que os homens participem plenamente de sua energia vivificante. A ressurreição dos mortos é o difundir-se dessa energia divina e divinizadora desde a natureza humana concreta assumida pelo Filho até à natureza humana na sua totalidade (alma e corpo). O Espírito Santo identificou-nos com Cristo no momento do nosso batismo e levará até ao fim essa obra divina, que só terminará (desde o ponto de vista da perfeição final) na nossa plena identificação com Cristo no dia da ressurreição; então seremos entregues ao Pai como filhos no Filho (cf. J. J. ALVIAR, Escatología. Pamplona: EUNSA, 2004, 176-177).

 

Pe. Françoá Costa

 

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