Homilia do Padre Françoá Costa – XXXI Domingo do Tempo Comum – Ano A

Comediante sagrado

Não é a primeira vez que encontramos a oposição entre Jesus e os fariseus. Ao folhear o Evangelho, se percebe que esse grupo estava constantemente armando ciladas contra Jesus. Lemos noutra passagem: “os fariseus vieram perguntar-lhe para pô-lo à prova” (Mt 19,3). Quem eram os fariseus? Era um dos vários grupos que compunham o judaísmo de então. Eles eram extremadamente religiosos, daí a meticulosidade em observar mandamentos e preceitos. E havia muitos preceitos… Lê-se, por exemplo, no Talmude: “seiscentos e treze mandamentos foram entregues a Moisés, trezentos e sessenta e cinco negativos, correspondendo ao número dos dias do ano solar, e duzentos e quarenta e oito positivos, correspondendo às partes do corpo do homem” (Talmude babilônico, Makkot, 24). É lógico: quem tem tantos mandamentos a cumprir pode estar todo o dia agoniado procurando não cair em faltas contra tais preceitos.

Mas, também é lógico: diante de tanta coisa religiosa para ser cumprida, não é difícil viver uma vida dupla. Explico-me: como há uns mandamentos cuja prática deixa patente, diante dos outros, o que é bom; para que eu seja considerado bom, tenho que observar esses mandamentos fidelissimamente. Não obstante, existem as fraquezas humanas, as debilidades; todas elas colaboram para que haja certo fastio no cumprimento de tantas coisas. O perigo então é cumprir aquilo que externamente mostra uma boa conduta e não cumprir aqueles que os outros não podem julgar porque simplesmente não podem ver o cumprimento de tais preceitos.

Graças a Deus que o cristianismo não é uma religião de mandamentos, mas a revelação da vida, isto é, de que Deus enviou o seu Filho para que vivêssemos já neste mundo a vida dos filhos de Deus, salvados, divinizados. Uma das consequências dessa vida nova será cumprir os dez mandamentos, mas, repito, a vivência de tais precitos surge como algo co-natural a essa vida nova em Cristo pela ação do Espírito Santo.

Ainda assim, também nós, cristãos, temos o perigo real de sermos “hipócritas”. Caso falte em nós a unidade de vida – essa coerência nas ações, nas palavras e nos pensamentos com a vida em Cristo – estamos no caminho da comédia sagrada.

Explicava S. Isidoro que “a palavra grega ‘hipócrita’ traduz-se ao latim por ‘simulator’ (simulador), que é aquele que, sendo mal por dentro, aparece externamente como bom; em efeito, ‘hypo’ significa ‘falso’ e ‘crisis’, ‘juízo’ ”. E o mesmo autor continua: “o nome ‘hipócrita’ vem dos atores de teatro, lá eles cobrem os próprios rostos, maquiando-se com cores diversas que fazem recordar a tal ou qual personagem: umas vezes representam o papel de homem, outras, de mulher”. Santo Agostinho conhecia a palavra ‘hipócrita’ para os comediantes, ou seja, aqueles que representam aquilo que não são. Desta maneira, dizia o santo bispo de Hipona, na vida espiritual também é hipócrita quem aparenta o que não é.

Pelo teor das palavras de Jesus se conclui facilmente a atitude de comediantes que tinham os escribas e fariseus: “dizem e não fazem. Atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos homens, mas não querem movê-los sequer com um dedo” (Mt 23,3-4).

A hipocrisia – diz Santo Tomás de Aquino – é uma espécie de simulação. Mas como a simulação é uma mentira através das obras ou das coisas, a hipocrisia “é uma classe de simulação: aquela segundo a qual uma pessoa finge ser distinta do que verdadeiramente é, como no caso do pecador que quere aparentar ser justo”. Leiamos mais uma vez o Evangelho: “sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (MT 23,27-28).

Deus nos livre de representar uma comédia sagrada e, desta maneira, sermos comediantes na vida espiritual. Assim acontece com aquele cristão que procura comportar-se de tal maneira que todos os chamem ‘santo’, mas na verdade a sua vida está composta de incoerências graves. Ninguém tem que andar por aí se denunciando, ninguém está obrigado a fazê-lo. Na verdade, é suficiente que o cristão – para ter unidade de vida – procure lutar de verdade para pensar, amar e atuar como Cristo. Uma pessoa que luta para ser bom, de verdade, mas mesmo assim é fraco e cai não é um hipócrita. Graças a Deus existe o sacramento da confissão. Uma pessoa que luta para agradar a Deus, mas sente a própria fraqueza e inconstância é uma pessoa normal. É até providencial o fato de que o Senhor permite que vejamos a nossa própria debilidade até o último momento da nossa vida, desta maneira descobrimos que tudo o que de bom temos vem de Deus, a ele a glória e infinitas ações de graças.


Pe. Françoá Costa

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