Trabalho. Unidade de Vida!
Dom José Maria Pereira
O Evangelho, em Lc 10, 38-42, apresenta Jesus a caminho de Jerusalém e que, em Betânia, é recebido em casa de Marta, irmã de Maria e Lázaro, por quem o Senhor havia chorado e a quem havia ressuscitado. Na casa dos três irmãos, que Jesus amava, de todo o coração, encontrou Ele a acolhida e o repouso necessários para descansar, depois de uma longa jornada. Lázaro, neste caso, não comparece. Jesus passa pela sua aldeia e – diz o texto – Marta recebeu -O em sua casa (Lc 10, 38). Este pormenor dá a entender que, das duas, Marta é a mais idosa, a que governa a casa. De fato, depois de Jesus ter entrado, Maria senta-se aos seus pés e ouve-O, enquanto Marta andava atarefada com muitos serviços, certamente devido ao Hóspede extraordinário. Parece que vemos a cena: uma irmã que anda toda atarefada, e a outra como que raptada pela Presença do Mestre e das suas palavras. Um pouco depois, Marta, evidentemente ressentida, não resiste mais e protesta, sentindo-se até no direito de criticar Jesus: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” Marta pretenderia até ensinar o Mestre! Mas Jesus, com grande calma, responde: “Marta, Marta! (este nome repetido exprime afeto). Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (Lc 10, 41-42). A Palavra de Cristo é claríssima: nenhum desprezo pela vida ativa, nem muito menos pela generosa hospitalidade; mas uma chamada clara ao fato de que a única coisa, deveras necessária, é outra: ouvir a Palavra do Senhor; e o Senhor, naquele momento, está ali, presente na Pessoa de Jesus! Todo o resto passará e nos será tirado, mas a Palavra de Deus é eterna e dá sentido ao nosso agir cotidiano.
O diálogo de Jesus, com Marta, tem um tom familiar cheio de confiança, que nos faz pensar na grande amizade do Senhor com os três irmãos.
Santo Agostinho comenta esta cena da seguinte maneira: “Marta ocupava-se, em muitas coisas, dispondo e preparando a refeição do Senhor. Pelo contrário, Maria preferiu alimentar-se do que dizia o Senhor. Não reparou, de certo modo, na agitação contínua de sua irmã e sentou-se aos pés de Jesus, sem fazer outra coisa senão escutar as Suas palavras. Tinha muito bem compreendido o que diz o Salmo: “Descansai e vede que Eu sou o Senhor” (Sl 46, 11). Marta consumia-se, Maria alimentava-se; Marta abarcava muitas coisas, Maria só atendia a uma. Ambas as coisas são boas.”
Por séculos, quis-se apresentar Marta e Maria como dois modelos de vida contrapostos: em Maria, quis-se representar a contemplação, a vida de união com Deus; em Marta, a vida ativa de trabalho; mas, a vida contemplativa não consiste em estar aos pés de Jesus, sem fazer nada: isso seria uma desordem! Os afazeres de cada um são precisamente o lugar em que encontramos a Deus, “o eixo sobre o qual assenta e gira a nossa chamada à santidade” (São Josemaria Escrivá). Sem um trabalho sério, consciente, prestigioso, seria muito difícil, para não dizer impossível, ter uma vida interior profunda e exercer um apostolado eficaz, no meio do mundo.
A maioria dos cristãos, chamados a santificar-se no meio do mundo, não se podem considerar como dois modos contrapostos de viver o cristianismo. Pois, uma vida ativa, que se esqueça da união com Deus, é algo inútil e estéril; uma suposta vida de oração, que prescinda da preocupação apostólica e da santificação das realidades ordinárias, também, não pode agradar a Deus. A chave está, pois, em saber unir essas duas vidas, sem prejuízo nem de uma nem de outra. Esta união profunda entre ação e contemplação pode viver-se de modos muito diversos, segundo a vocação concreta que cada um recebe de Deus.
O trabalho, longe de ser obstáculo, há de ser meio e ocasião de uma intimidade afetuosa com Nosso Senhor, que é o mais importante. Ou seja, é no meio de nossos trabalhos cotidianos e, através deles, não apesar deles, que Deus convida a maioria dos cristãos a santificar o mundo e a alcançar a santificação nele, com uma vida transbordante de oração que vivifique e dê sentido a essas tarefas. A um grupo numeroso ensinava S. Josemaria Escrivá: “Deveis compreender agora – com uma nova clareza – que Deus vos chama a servi-Lo nas e a partir das tarefas civis, materiais, seculares, da vida humana. Deus espera-nos, cada dia, no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar, e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçam nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir (…). Não há outro caminho: ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca. Por isso, posso afirmar que a nossa época precisa devolver à matéria e às situações aparentemente vulgares o seu sentido nobre e original; pondo-as ao serviço do Reino de Deus, espiritualizando-as, fazendo delas o meio e a ocasião para o nosso encontro contínuo, com Jesus Cristo” (Temas Atuais do Cristianismo, nº 114). Temos que chegar ao amor de Maria, enquanto levamos a cabo o trabalho de Marta. Pois, o trabalho alimenta a oração, e a oração “embebe” o trabalho. E isso até se chegar ao ponto de o trabalho, em si mesmo, enquanto serviço feito ao homem e à sociedade, converter-se em oração agradável a Deus. Numa palavra, o trabalho é o meio com que nos santificamos.
E isto é o que verdadeiramente importa: encontrar Jesus. No meio desses afazeres diários, não esquecer, em momento algum, “o Senhor das coisas”; e, menos ainda, quando esses afazeres se referem mais diretamente a Ele, pois, do contrário, talvez acabássemos por realizá-los com a atenção posta em nós mesmos, procurando neles somente a nossa realização pessoal, o gosto ou a mera satisfação de um dever cumprido, e deixando de lado a retidão de intenção, esquecendo o Mestre.
Marta, ao acolher Jesus, em sua casa, também nos ensina que devemos abrir o coração para o próximo, todo o próximo que se aproxima de nós ou de quem nós nos aproximamos. É toda uma atitude de acolhimento, entre os esposos, entre pais e filhos, entre irmãos, entre os vizinhos, no trabalho, em nossas comunidades paroquiais, etc.
É importante que acolhamos Jesus, como Maria, colocando-nos aos seus pés, para ouvi-Lo; mas, é importante, também, que O acolhamos, como Marta, proporcionando-Lhe descanso e alimento, contanto que tudo seja feito no Senhor.
O ensinamento é que a luta diária, bem como, as ações religiosas, não podem ser vazias de sentido, mas devem nascer da experiência íntima e pessoal com Jesus.
No livro Deus Fala Conosco, Domingos do Tempo Comum, Ano C, Pe. Manoel Augusto Santos, apresenta três meios para manter a paz, vivendo santamente a vida diária.
Diz Pe. Manoel, em sua homilia:
” l. Fazer oração. Percebam, no Evangelho, as palavras de Jesus não são tanto uma reprovação a Marta como um elogio da atitude de Maria. Uma se agitava, outra se alimentava. Em toda vocação há necessidade em escutar a voz do Senhor. Em qualquer situação, profissão ou empenho, há que ter aberto esse canal de escuta interior. Com vida de oração, evitamos que as coisas nos absorvam, prendam, afoguem ou vivamos em um frenesi de ocupações.
Por isso, reservar, diariamente, tempo para escutar a Palavra de Deus, para dialogar com o Senhor, falando com Ele sobre nós e sobre Ele, sobre a vida Dele que está no Evangelho e a nossa. Unir vida material e vida espiritual. Na oração iremos entender, valorizar a vida, iremos ponderar, pesar os acontecimentos com fé e a partir da fé. Da oração conseguiremos força para suportar as dificuldades, as perdas, as dores. Rezar os problemas e as alegrias. E colocar tudo nas mãos Dele.
- Ter retidão de intenção, ou seja, fazer todas as coisas por amor de Deus, oferecendo a Ele. Ótimo é fazer antes, durante e depois de cada trabalho ou ação. Esquecendo antes, pois durante e depois. Se esquecer antes e durante, pois fazer depois. E se esquecer antes, durante e depois, quando lembrar, ainda que muito tempo depois. “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10, 31).
lll. Manter a presença de Deus. Muitas vezes, nas nossas atividades, não poderemos, ao mesmo tempo, recitar fórmulas de oração ou meditar. Mas podemos criar “clima”: uma imagem, uma jaculatória, essa oração tão breve que pode ser apenas “Jesus”. E se pode fazer sem ninguém notar. Não precisa pronunciar palavras ou fazer gesto algum. Pode ser que não desapareçam as trevas, mas teremos a lanterna que iluminará os nossos passos.
Uma só coisa é necessária. Estar com Ele. “Segura na mão de Deus e vai”, lembra um canto conhecido. E Santa Teresa: “Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa, Deus não muda. Quem tem a Deus, nada lhe falta””.
Que a Virgem Santíssima nos alcance o espírito de trabalho de Marta e a presença de Deus e de Maria, daquela que, sentada aos pés de Jesus, escutava embevecida as suas palavras.
Dom José Maria Pereira