Os Males da Língua e a Falsidade do Coração!
No Evangelho (Lc 6, 39 – 45), escutamos a Palavra de Deus, aparentemente muito clara: um
cego não pode guiar outro cego; por que vês o cisco no olho do teu irmão… ?; não existe
árvore boa que dê frutos ruins. O texto parece-nos compreensível e óbvio; mas a compreensão
que a Liturgia nos fez invocar é outra: não é tanto no que se refere à inteligência, mas o que se
refere ao coração; não é tanto um entender quanto um compreender, isto é, abraçar com
todo o ser, tornar nossas as palavras. Ao “foi dito,” Jesus opõe, agora, seu revolucionário “mas
eu vos digo”, que cumpre e transforma, ao mesmo tempo, a lei antiga. A vós que escutais, eu
vos digo…: assim começa a falar Jesus naquele dia (Lc 6, 27) e assim nos fala agora também a
nós. O que nos diz exatamente?
Jesus mostra, aqui, que dirige a seus discípulos uma série de advertências que, em outras
passagens, tinha dirigido, com tom de admoestação, aos fariseus. Foi contra os fariseus que
exclamou: ”Deixai-os! São cegos guiando cegos. Ora, se um cego guia outro cego, os dois caem
no buraco (Mt 15, 14). Torna-se impossível ser luz para os outros, se não se tem essa luz; foi
aos fariseus, sobretudo, que, em várias oportunidades, Jesus gritou: hipócritas! E eis que,
hoje, esta terrível exclamação, “Hipócritas”, encontramo-la num discurso dirigido a seus
discípulos e, portanto, também a nós: Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e, então,
poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão. Tirar primeiro a trave do nosso
olho! É um trabalho que compromete a vida num esforço contínuo para se tornar cada vez
mais semelhante a Cristo. Isso requer um sereno exame de consciência que permita conhecer
os próprios defeitos para não cair no absurdo denunciado pelo Senhor: “Por que vês tu o cisco
no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?” (Lc 6, 41).
Nunca deve acontecer que o discípulo de Jesus exija, dos outros, o que não pratica, ou
pretenda corrigir, no próximo, o que tolera, em si mesmo, talvez, de uma forma mais grave.
Combater o mal, nos outros, e, não o combater, no próprio coração, é hipocrisia, contra a qual
se manifestou o Senhor, com enérgica intransigência. O critério para distinguir o autêntico
discípulo do hipócrita são as palavras e as obras: “Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos”
(Lc 6, 44). Assim como o fruto manifesta a qualidade da árvore, do mesmo modo as obras do
homem mostram a bondade ou a malícia do seu coração.
Jesus Cristo põe uma dupla comparação: a da árvore que, se é boa, dá frutos bons, e a do
homem que fala das coisas que tem no coração. “O tesouro do coração é o mesmo que a raiz
da árvore – afirma São Beda –. A pessoa que tem um tesouro de paciência e de perfeita
caridade no seu coração produz excelentes frutos: ama o seu próximo e reúne as outras
qualidades que Jesus ensina: ama os inimigos, faz o bem a quem o odeia, abençoa a quem o
amaldiçoa, reza pelo que o calunia, não se rebela contra quem lhe bate ou o despoja, dá
sempre, quando lhe pedem, não reclama o que lhe tiraram, deseja não julgar e não condenar,
corrige com paciência e com carinho os que erram. Mas, a pessoa, que tem no seu coração um
tesouro de maldade, faz, exatamente, o contrário: odeia os seus amigos, fala mal de quem o
ama, e todas as outras coisas condenadas pelo Senhor”.
Ensina São João Crisóstomo: “Brilhe a vossa luz, ou seja, haja grande virtude, haja fogo
abundante, brilhe uma luz inefável, porque, quando a virtude alcança esse grau, é impossível
ficar definitivamente oculta… Nada torna o homem tão ilustre, por mais que o queira ocultar,
do que a prática de virtude” (Comentário ao Evangelho de São Mateus, 15, 7-8).
Se fizermos um exame de consciência, sincero, e deixar-nos julgar, pelo Evangelho, seremos
obrigados a admitir, por mais que nos desagrade, que somos todos uns hipócritas.
Nós, cristãos, só contribuiríamos para perpetuar o erro de querer tirar o cisco do olho alheio,
sem remover a trave do nosso, se nos limitarmos a fazer um discurso sobre a hipocrisia da
sociedade ou da Igreja, sem descer nunca a nós mesmos e à nossa multiforme hipocrisia. Uma
sociedade hipócrita é o resultado de indivíduos hipócritas, como um lago poluído é o produto
de tantas gotas de água suja. No livro Eclesiástico, o Senhor exorta-nos exatamente sobre esta
autocrítica muito pessoal: “Quando se sacode a peneira, ficam nela só os refugos: assim os
defeitos da pessoa, na sua maneira de opinar” (Eclo 27, 5). Percorramos o Evangelho para ver
quais são, de acordo com Jesus, as manifestações principais da hipocrisia e para ver se estas
não se encontram, por acaso, todas, ora mais, ora menos, em nossa vida.
Hipócrita é aquele que continuamente acha motivo para falar dos outros, a começar, talvez, do
amigo mais íntimo, e nunca se pergunta se aquilo que detesta nos outros – a vaidade, o
egoísmo, a avareza, a falsidade, a mesquinhez – não se encontra, em medida ainda maior, nele
mesmo! Hipócrita – conforme diz Jesus, num outro contexto – é quem impõe, aos outros,
obrigações morais, muito pesadas, que pretende que os outros não se queixem, que não
avancem reinvindicações, que nunca digam estar cansados, porém reconhecendo, em todo
momento, todos estes direitos para si mesmo (cf. Mt 23, 4).
Hipócrita – ainda de acordo com o que diz Jesus – é quem paga o dízimo das pequenas
colheitas, mas não dá importância alguma às coisas realmente importantes da lei: a justiça
com os pobres, a misericórdia e a fidelidade (cf. Mt 23, 23). Aqui, realmente, descobrimo-nos
todos, parentes próximos dos fariseus. Quantos cristãos pensam estar em dia diante de Deus,
porque pagam o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, isto é, porque dão uma oferta,
talvez miserável, ao pároco que passa benzendo as casas, porque acendem, de vez em quando,
uma vela a Santo Antônio, porque financiam uma obra pia, mas não se põem nunca o
problema se são justos com a família, com os próprios dependentes, se não devoram também
eles as casas das viúvas, impondo condições de aluguel intoleráveis, se exercem, de fato, a
misericórdia com as pessoas e a fidelidade com Deus.
Falando da esmola e da oração, Jesus coloca, às claras, a raiz última e a mola da hipocrisia, que
é a de ser vistos pelos homens: “Quando deres esmola, não mandes tocar a trombeta diante
de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para receber glória humana. Em
verdade vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orardes, não sejais como os
hipócritas, que gostam de orar nas sinagogas e nas esquinas das praças, em pé, para serem
vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam sua recompensa (Mt 6, 2.5).
O que é a hipocrisia? É uma tentativa para ludibriar a Deus; é a falsidade do coração, a ilusão
de contentar a Deus com as aparências, quase se iludindo de que Ele possa se enganar e tomar
por coisa boa o que não é. Entre os homens, é uma atitude que nós chamamos de astúcia,
esperteza, duplicidade. O hipócrita é, no fundo, um falsário, alguém que tenta pagar a Deus
com moeda falsa, alguém que O honra com os lábios, enquanto seu coração está longe de
Deus (cf. Mt 15, 8).
Sobre os hipócritas, o Evangelho pronuncia a mais terrível das ameaças: “Já receberam sua
recompensa” (Mt 6, 2). Como se dissesse: Deus não lhes deve mais nada. Quando esta é uma
atitude consciente e deliberada, este é, deveras, um pecado terrível; é, na prática, um ateísmo,
porque significa crer num Deus que tem olhos, mas não vê, tem ouvidos, mas não ouve; é
esquecer que o Deus bíblico é um Deus vivo e santo que perscruta os corações e lê os
pensamentos antes que se formem na mente. São Paulo tem estas palavras de fogo: “Não vos
iludais, de Deus não se zomba; o que alguém tiver semeado, é isso que vai colher” (Gl 6, 7). A
hipocrisia é, por isso, antes de tudo, uma ingenuidade, uma insensatez, uma mentira de pernas
curtas, destinada a ser desmascarada já nesta vida.
A Palavra de Deus conduziu-nos a uma salutar autocrítica; dela deve despontar em nós um
desejo intenso de ser de verdade “honestos com Deus”! Quando, no fim do Pai-Nosso,
dizemos hoje: “Livrai-nos do mal”; hoje, é deste mal que devemos pedir a libertação: do mal da
hipocrisia.
“A boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Ou, como está em Eclesiástico: “a palavra
mostra o coração do homem. Pois, é no falar que o homem se revela” (Eclo 27,7-8). A palavra
humana pode fazer maravilhas: levantar, animar, comover, corrigir positivamente, ensinar,
aconselhar. Mais ainda: pode ser veículo da Palavra divina, a boa notícia da salvação,
Evangelho. Contudo, quantas vezes a língua é instrumento que manifesta a inveja, a revolta, o
ciúme, a ira, a falta de educação, o desprezo, o ódio… Vários mandamentos têm sérias
implicações com relação à palavra “mal dita”, pois são os pecados da língua, do mau uso da
palavra, dom de Deus: blasfêmias e sacrilégios; desrespeito aos pais; desrespeito à dignidade
das pessoas através das palavras em discussões, brigas, acusações; piadas sem-vergonhas e
palavras de baixo calão.
Outro mau uso da palavra é a mentira. Mentir é dizer o que é falso com a intenção de enganar.
Ora, o diabo é o pai da mentira. Jesus ensina o amor incondicional da verdade: “Seja o vosso
sim, sim, e o vosso não, não. O que passa disso vem do Maligno” (Mt 5,37). Somos obrigados a
honrar e testemunhar a verdade. Devemos evitar a duplicidade, a bajulação, a simulação, a
ironia e a hipocrisia no falar. Também, evitar a fanfarronice, ou seja, aumentar ou divulgar os
próprios feitos por vaidade.
“A língua é um fogo! É o universo da malícia!” (Tg 3,6). Daí o mal da calúnia que é falar mal dos
outros, acrescentando à crítica a mentira. Toda calúnia é uma infâmia, traz a marca da
injustiça. Se qualquer agressão verbal mostra o que há no coração de quem fala, a calúnia
denota uma alma especialmente sórdida: porque a calúnia, ou é filha da frivolidade
irresponsável, que repete falsidade sem apurá-las, pelo prazer de maldizer; ou visa
maldosamente destruir, afundar, fazer mal. Infelizmente, maldizer e caluniar virou “esporte
social” para alguns.
A nossa língua está frequentemente em perigo de ficar “contaminada”, e é por isso que
precisamos manter a vigilância, zelando pela veracidade e prudência das nossas palavras. A
língua deve ser, na vida do cristão, a ponte por onde passa a Palavra da Verdade, que é a
mensagem de Jesus. Afinal, Jesus disse: “Ora, eu vos digo: de toda palavra vã que se proferir,
há de se prestar conta no dia do juízo. Por causa das tuas palavras, serás justificado; e por
causa das tuas palavras, serás condenado” (Mt 12, 36-37).
Que a Virgem Maria nos ajude em nossa conversão diária! Ser guia, ajudar as pessoas com
dificuldade no caminho, supõe enxergar bem. Em vez de criticar e de querer corrigir os outros,
os seguidores de Jesus trabalham sobre os próprios defeitos e limitações. É este o testemunho
que dão ao mundo, corrigindo, em si mesmos também os problemas que veem nos outros.