Homilia do Mons. José Maria II – XX Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Vim lançar fogo!

O fogo aparece frequentemente na Sagrada Escritura como símbolo do Amor de Deus, que
purifica os homens de todas as suas impurezas. O amor, como fogo, nunca diz basta, tem a
força das chamas e ateia-se no trato com Deus: Ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se
o fogo na minha meditação, exclama o Salmista… No dia de Pentecostes, o Espírito Santo – o
Amor Divino- derrama-se sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de fogo que lhes purificam
o coração, os inflamam e os preparam para a missão de estender o Reino de Cristo por todo o
mundo.
Jesus diz-nos, hoje, no Evangelho da Missa: “ Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como
gostaria que já estivesse aceso!”(Lc 12, 49). Em Cristo, o amor divino alcança a sua máxima
expressão: “De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito” (Jo 3,16) . Jesus
entrega voluntariamente a sua vida por nós, “e ninguém tem maior amor do que aquele que
dá a própria vida por seus amigos” (Jo, 15, 13). Por isso confidencia-nos também a impaciência
santa que o domina enquanto não vir cumprido o seu batismo, a sua própria morte na Cruz
pela qual nos redime e nos eleva: Tenho que ser batizado com um batismo, e como me sinto
ansioso enquanto não se realizar!
O Senhor quer que o seu amor se ateie no nosso coração e provoque um incêndio que o
invada por completo. Ama-nos com um amor pessoal e individual, como se cada um de nós
fosse o único objeto da sua caridade. Em nenhum instante cessou de amar-nos, de ajudar-nos,
de proteger-nos, de comunicar-se conosco; não só quando correspondíamos às suas graças,
mas também quando nos afastávamos dEle, entregues à pior de todas as ingratidões que é o
pecado. O Senhor sempre nos mostrou a sua benevolência.
O amor reclama amor, e este demonstra-se por meio de obras, pelo empenho diário em
chegar ao trato íntimo com Deus e por identificar a vontade própria com a dEle. A segunda
leitura anima-nos a esta luta diária, sabendo que estamos rodeados por uma tão grande
nuvem de testemunhas: os santos, que presenciam o nosso combate, e todos aqueles que
temos ao nosso lado e a quem tanto podemos ajudar com o nosso exemplo. Sacudindo todo o
lastro que nos detém e o pecado que nos envolve- continua a Leitura-, corramos com
perseverança pelo caminho que nos é proposto pondo os olhos no autor e consumador da fé,
Jesus. É nEle que cravamos os olhos, como o corredor que, uma vez começada a corrida, não
se deixa distrair por nada que lhe desvie a atenção da mete; assim, afastaremos com decisão e
energia toda e qualquer ocasião de pecado, pois ainda não resististes até o sangue,
combatendo contra o pecado. Temos de chegar até esse ponto, se for preciso, mesmo que se
trate apenas de não cometer um simples pecado venial. É melhor morrer do que ofender a
Deus, por mais leve que seja a ofensa.
Temos que dizer sim ao Amor; temos que dar-lhe uma resposta afirmativa nas mil pequenas
situações diárias: ao negarmo-nos a nós mesmos para servir os que convivem ou trabalham
conosco, na mortificação pequena, que nos ajuda a dominar a impaciência e a irritação; na
pontualidade em todos os nossos compromissos espirituais e humanos; no esforço com que
procuramos melhorar o recolhimento interior nos tempos dedicados à oração mental; na
aceitação alegre dos contratempos, quando a vontade de Deus não confirma os nossos planos
ou o nossos querer…Assim se forjam as pequenas vitórias que Deus espera todos os dias
daqueles que o amam. Mas também por amor temos que dizer não muitas vezes: à
curiosidade da vista; ao corpo que pede mais conforto e menos sacrifício; ao desejo de

encerrar o expediente antes da hora… Muitas são as sugestões, as moções do Espírito Santo
que nos convidam a corresponder a esse Amor infinito com que Jesus nos ama.
O amor expressa-se na dor dos pecados, na contrição, pois, tantas vezes- sem o percebermos-
dizemos não ao amor e sim aos nossos caprichos… São ocasiões para fazermos um ato de dor
mais profundo pelas coisas em que não soubemos corresponder, e para desejarmos muito
essa confissão frequente na qual sempre encontramos a Misericórdia divina e o remédio para
os nossos males. “Quem não se arrepende de verdade não ama de verdade; é evidente que,
quanto mais estimamos uma pessoa, tanto mais nos dói tê-la ofendido. É este, pois, mais um
dos efeitos do amor”, diz São Tomás de Aquino.
Nós, cristãos, devemos ser fogo que queime os outros, como Jesus abrasou os seus discípulos.
Ninguém que nos tenha conhecido deverá permanecer indiferente; o nosso amor tem de ser
fogo vivo que converta em pontos de ignição, em outras tantas fontes de amor e de
apostolado, todos aqueles com quem convivemos. O Espírito Santo soprará, através de nós,
em muitos que pareciam apagados, e do seu rescaldo de vida cristã sairão chamas que se
propagarão em ambientes que de outro modo teriam permanecidos frios e mortos.
Pouco importa que pareça que valemos pouco, que não podemos fazer quase nada, que não
sabemos, que nos falta formação. O Senhor só quer contar totalmente com cada um. Não
esqueçamos que uma faísca minúscula pode dar início a uma grande fogueira. Como é grato ao
Senhor que lhe digamos na intimidade da nossa alma que somos inteiramente dEle, que pode
contar com o pouco que somos!
O verdadeiro amor a Deus manifesta-se imediatamente numa intensa atividade apostólica,
em desejos de que muitos outros conheçam e amem a Jesus Cristo. “Com a maravilhosa
normalidade do divino, a alma contemplativa expande-se em ímpetos de ação apostólica:
Ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se o fogo na minha meditação. Que fogo é este,
senão o mesmo de que fala Cristo: Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como desejaria que já
estivesse aceso! (Lc 12,49). Fogo de apostolado, que se robustece na oração, no trato íntimo
com Cristo.
É aí que se alimentam as ânsias apostólicas. Junto do Sacrário, teremos luz e forças; falaremos
a Jesus dos filhos, dos pais, dos irmãos, dos amigos, dos colegas da Universidade ou do colégio,
daquela pessoa que acabamos de conhecer, das que encontraremos hoje por motivos
profissionais ou nos pequenos acasos da vida diária.   Nenhuma pessoa deverá partir de mãos
vazias; a todas, de um modo ou de outro, com a palavra, com o exemplo, com a oração,
deveremos anunciar-lhes Cristo que as procura, que as espera e que se serve de nós como
instrumentos.
“Ainda ressoa no mundo aquele clamor divino: Vim trazer fogo à terra, e que quero senão que
arda? – E bem vês: quase tudo está apagado…
“Não te animas a propagar o incêndio?” (Caminho, 801).
No início do texto evangélico, de hoje, Jesus não consegue conter a imensa realidade divina
que leva dentro de si, então ele sai com exclamações ou suspiros que, escutados hoje, por
quem tem fé produzem uma profunda impressão pela força misteriosa que deles se irradia. Tal
é a exclamação com que começa o Evangelho de hoje: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e
como gostaria que já estivesse aceso!” Aquele suspiro está se atuando para cada um de nós e
para a nossa comunidade. Por que não começar logo a rezar: Senhor Jesus, acende em mim

este fogo, renova-me no meu íntimo; quero fazer uma experiência nova do teu amor e do teu
poder; estou também eu entre os “afadigados e cansados”; sou também eu um dos “ossos
áridos”, mas sei que se te deixo agir tu podes de verdade me restaurar e fazer-me viver. Para
mim será uma vida nova e para ti um discípulo novo.
Dizemos a Jesus que conte conosco, com as nossas poucas forças e os nossos escassos
talentos: aqui me tens porque me chamaste. E pedimos a Santa Maria, Rainha dos Apóstolos,
que saibamos ser audazes nesta tarefa de dar a conhecer o amor de Cristo.
Mons. José Maria Pereira

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