A messe é grande, mas os operários são poucos
Lc 10,1-12.17-20
Caros irmãos e irmãs,
A Liturgia da Palavra deste domingo nos oferece inúmeras reflexões, contudo, no conteúdo das leituras, nota-se dominar a temática do “envio” tanto na primeira leitura, onde um profeta anônimo é enviado a proclamar o amor que Deus tem pelo seu Povo, como também na segunda leitura, onde o apóstolo Paulo deixa claro que o testemunho da cruz é o caminho a ser percorrido, isto é, testemunhar Cristo, que nos amou e fez da sua vida um dom a todos.
Mas é, sobretudo, no Evangelho que a temática do “envio” aparece de forma mais desenvolvida. Os discípulos de Jesus são enviados ao mundo para continuar a sua obra e para propor a Boa Nova do Reino aos homens de toda a terra, sem exceção; e devem fazer isto com urgência, com simplicidade e com amor. O texto do Evangelho começa por nos apresentar o número dos discípulos enviados: 72 (v. 1). Trata-se, evidentemente, de um número simbólico, que deve ser posto em relação com Gn 10, onde esse número se refere à totalidade das nações pagãs que habitam a terra. Significa, portanto, que a proposta de Jesus é uma proposta universal, destinada a todos os povos, de todas as raças.
Depois, São Lucas assinala que os discípulos foram enviados dois a dois. Viajar aos pares era um costume dos judeus na época. A própria Sagrada Escritura nos mostra isto na passagem em que nos narra o episódio dos dois discípulos de Emaús (Lc 24,13ss). O envio desta forma podia ser uma medida prática para defesa e ajuda mútua contra bandidos e eram vistos especialmente como testemunhas (cf. Lc 9,5). Trata-se de assegurar que o seu testemunho tem valor jurídico (cf. Dt 17,6;19,15); e trata-se de sugerir que o anúncio do Evangelho é uma tarefa comunitária, que não é feita por iniciativa pessoal e própria, mas em comunhão com os irmãos.
São Lucas indica ainda que os discípulos são enviados às aldeias e localidades onde Jesus “devia de ir”. Dessa forma, assinala que a tarefa dos discípulos não é pregar a sua própria mensagem, mas preparar o caminho de Jesus e dar testemunho d’Ele. Depois desta apresentação inicial, Lucas passa a descrever a forma como a missão se deve concretizar. Há, em primeiro lugar, um aviso acerca da dificuldade da missão: os discípulos são enviados “como cordeiros para o meio de lobos” (v. 3). Trata-se de uma imagem que, no Antigo Testamento, descreve a situação do justo, perdido no meio dos pagãos (cf. Eclo 13,17; nalgumas versões, esta imagem aparece em 13,21). Aqui, expressa a situação do discípulo fiel, frente à hostilidade do mundo.
Encontramos ainda no Evangelho uma exigência de pobreza e simplicidade: para esta missão: os discípulos não devem levar consigo nem bolsa, nem alforge, nem sandálias; não devem deter-se a saudar ninguém pelo caminho (vers. 4); também não devem saltar de casa em casa (v. 7). Essas indicações de não levar nada para o caminho sugerem que a força do Evangelho não reside nos meios materiais, mas na força da Palavra.
O desprendimento de todo impedimento material para ter como único propósito o anúncio; a indicação de não saudar ninguém pelo caminho indica a urgência da missão, que não permite deter-se nas demoradas saudações típicas da cortesia oriental, podiam impedir o motivo urgente do anúncio do reino; a indicação de que não devem saltar de casa em casa sugere que a preocupação fundamental dos discípulos deve ser a dedicação total à missão e não deter em uma hospitalidade mais confortável.
Os discípulos devem anunciar a todos uma mensagem de esperança e consolação, de paz e caridade. Quando Jesus envia os discípulos diante de si, pelos povoados, recomenda: “Dizei primeiro: ‘Paz a esta casa!’… Curai os enfermos que nela houver” (vv. 5.9). Tudo isto significa que o Reino de Deus se edifica dia após dia, oferecendo já nesta terra os seus frutos de conversão, de purificação, de amor e de consolação no meio dos homens.
Eles devem começar por anunciar “a paz” (vv 5-6). Não se trata aqui, apenas da saudação normal entre os judeus, mas do anúncio dessa paz messiânica que antecede ao Reino. É a paz como um dom divino que é reconciliação e bênção. É o anúncio desse mundo novo de fraternidade, de harmonia com Deus e com os outros, de bem-estar, de felicidade (como é sugerido pela palavra hebraica “shalom”). Além de serem arautos de Jesus, os discípulos são como reservatórios dessa paz. Portanto, se não houver na casa alguém digno dessa paz ela retornará ao enviado que a desejou. Esse anúncio deve ser complementado por gestos concretos, que mostrem a presença do Reino no meio dos homens (v. 9).
Além da paz que já traduz o conteúdo do anúncio (v.5), Jesus explicita melhor a relação gesto-palavra ao afirmar: curai os doentes que nela (na casa) houver e dizei ao povo: o Reino de Deus está próximo de vós (v.9). Tal relação também se evidencia no retorno da missão: eis que vos dei o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo (v.19). Serpentes e escorpiões são conhecidos por serem portadores de um mortífero veneno; mas no AT eram considerados como símbolo de todo gênero de males. Lembremos as serpentes do deserto que eram vencidas com a serpente de bronze fundida por ordem de Moisés. Já no livro do Gênesis a serpente é tida como a causadora de todo o mal na terra (Gn 3,1-14) e o escorpião é símbolo do castigo divino em 1Rs 12,11.14 e ambos aparecem juntos em Dt 8,15.
A tradição targúmica (comentário bíblico do AT feito pelos rabinos) une estas duas espécies com Satanás, o que nos propicia uma melhor interpretação dessa passagem. No final do Evangelho vimos que os discípulos pegarão em serpentes e nada sofrerão (Mc 16,18) é uma referência, embora tímida, deste poder que Jesus entrega a seus discípulos: um poder sobre toda força maligna, como é o inimigo, entendido como Satanás. Finalmente, o retorno dos discípulos confirma a eficácia do poder de Jesus que se operou neles: Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome! (v.17). Confirma também a eficiência do conteúdo da mensagem salvífica, na sua relação gesto-palavra, e dá validade aos meios simples e pobres empregados. Assim Jesus esclarece que o Reino é sinal da vitória espiritual sobre Satanás (v.18) e a vitória material sobre as mazelas e limitações sofridas pelo homem. O Reino é, pois, uma realidade que atinge o homem todo na sua condição de precariedade para salvá-lo e recuperá-lo.
Meus caros irmãos e irmãs, nós também somos chamados a pedir ao dono da messe que envie mais operários para a sua messe. A missão de anunciar o Evangelho não está reservada apenas ao grupo dos Doze ou dos Setenta e Dois, mas é confiada a todos os discípulos, para irem até aos confins da terra. É toda a Igreja que é constituída missionária. Rezar pelas “vocações” é pedir a Deus para fazer de cada batizado um testemunho da Boa Nova da salvação dada em Jesus. E se os operários são poucos, é talvez porque os batizados não estão ainda suficientemente conscientes da sua missão. Todos nós somos chamados a ser “pedras vivas” e transmitir a todos o bom odor de Cristo.
Peçamos ao Senhor, por intercessão da Virgem de Nazaré, para que nunca faltem na Igreja corações generosos que trabalhem para levar a todos a paz, o amor e a ternura do Pai Celeste. Assim seja.
D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB
Mosteiro de São Bento/RJ