Homilia do D. Anselmo Chagas de Paiva – II Domingo do Tempo Comum – Ano B

Jo 1,35-42

Caros irmãos e irmãs,

Para este domingo a Liturgia da Palavra nos apresenta o tema da vocação. No texto evangélico temos a chamada dos primeiros discípulos por parte de Jesus e na primeira leitura, a chamada do profeta Samuel. Em ambas as narrações é evidenciada a importância da figura que desempenha o papel de mediador, ajudando as pessoas chamadas a reconhecer a voz de Deus e a segui-la. No caso de Samuel, o mediador é o sacerdote Eli, do templo de Silo e no caso dos discípulos de Jesus, o mediador é São João Batista.

Lançando o nosso olhar inicialmente para a primeira leitura observa-se que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus. É Ele quem escolhe e chama. A indicação de que “Samuel ainda não conhecia o Senhor, pois, até então, a palavra do Senhor não se lhe tinha manifestado” (v. 7); isto sugere claramente que o chamamento de Samuel parte de Deus; é uma iniciativa exclusiva de Deus, à qual Samuel, em um primeiro momento, parece estar alheio.  Ele é chamado pelo nome: Samuel, Samuel! Para Deus nós sempre somos um ser único. Chamar pelo nome indica o apreço divino, somos amados de modo pessoal e nos é dada uma missão única.

Deus chama Samuel enquanto este estava deitado, presume-se, durante a noite. É o momento do silêncio, da tranquilidade e da calma.   Este quadro temporal sugere descanso, as tarefas do dia chegaram ao fim e tudo está envolvido na tranquilidade, na calma e no silêncio. Provavelmente, o autor do texto não escolheu este enquadramento por acaso, isto sugere que é mais fácil sentir a presença de Deus e ouvir a sua voz nesse ambiente de silêncio que favorece a escuta.

A maneira como se processa a resposta de Samuel ao chamamento de Deus é também peculiar.  O autor sagrado sublinha a dificuldade de Samuel em reconhecer a voz do Senhor. Deus chamou Samuel por quatro vezes e só na última vez o jovem conseguiu identificar a voz de Deus. O fato sublinha a dificuldade que qualquer chamado tem no sentido de identificar a voz de Deus. É o sacerdote Eli quem compreende “que era o Senhor quem chamava o menino” e que ensina Samuel a abrir o coração ao chamamento de Deus: “Volta a deitar-te e, se alguém te chamar, responderás: ‘Senhor, fala, que teu servo escuta!’” (v. 9).

Na Sagrada Escritura a palavra “escutar” significa acolher no coração e transformar aquilo que se ouviu em compromisso de vida.  Com a resposta, Samuel está a dizer a Deus que aceita embarcar no desafio profético e ser um sinal vivo de Deus, voz “humana” de Deus, na vida e na história do seu Povo.  A vocação é sempre uma iniciativa misteriosa e gratuita de Deus.

A palavra “escutar” deve ser entendida no sentido bíblico pleno.  Ela designa uma atitude global que inclui a obediência.  Escuta-se com o coração, do íntimo de si mesmo, como nos indica também o Salmo 94,8: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações”. Também São Bento escolheu esta palavra para iniciar a sua Regra.  A palavra “escuta” caracteriza a espiritualidade de toda a Regra de São Bento e indica a prioridade da palavra sobre a imagem, do escutar sobre o ver.  

O texto do evangelho nos apresenta os primeiros três discípulos de Jesus: André, um outro discípulo não identificado e Simão Pedro. Os dois primeiros são apresentados como discípulos de São João Batista dizendo: “Eis o cordeiro de Deus!” (v. 36).  Ao dizer: “Eis o cordeiro de Deus!” (v. 36), equivaleria dizer: “Eis o Messias”.  Depois dessa declaração, os discípulos reconhecem em Jesus esse Messias com uma proposta de vida verdadeira e passam a segui-lo. Esse “seguir Jesus” significa caminhar atrás de Jesus, percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu e colaborar com Ele na missão. A reação dos discípulos é imediata. Eles simplesmente seguem Jesus.  Mas o texto apresenta um breve diálogo entre Jesus e os dois discípulos.  Jesus começa com uma pergunta: “O que estais procurando?” (v.38).  Esta pergunta sugere que é importante para os discípulos terem consciência do objetivo que perseguem, do que esperam de Jesus, daquilo que Jesus lhes pode oferecer.

Por sua vez, esses primeiros discípulos responderam a pergunta de Jesus com uma outra pergunta: “Rabbi, onde moras?” (v. 38). Neste questionamento está implícita a vontade desses discípulos de aderir totalmente a Jesus, de aprender com Ele, de habitar com Ele, de estabelecer comunhão de vida com Ele. Ao identificarem Jesus como “Rabbi”, isto é, mestre, mostram que ele estão dispostos a seguir as suas instruções, a aprender com Ele um modo de vida; a referência à “morada” de Jesus indica que eles estão dispostos a ficar perto de Jesus, a partilhar a sua vida, a viver sob a sua influência.  E os dois seguiram Jesus, permaneceram por muito tempo com Ele e convenceram-se de que Ele era deveras o Cristo. Imediatamente o disseram aos outros, e assim formou-se o primeiro núcleo daquele que se teria tornado o colégio dos Apóstolos.

Como de fato, quem encontra Jesus e experimenta a comunhão com Ele, não pode deixar de se tornar testemunha da sua mensagem e da sua proposta. Trata-se de uma experiência tão marcante que transborda os limites estreitos do próprio eu e se torna anúncio para os irmãos. O encontro com Jesus, se é verdadeiro, conduz sempre a uma dinâmica missionária.

No texto evangélico aparecem dois verbos importantes: seguir e procurar.  É importante a união dessas duas palavras, pois pode-se procurar e não seguir! O seguir implica numa atitude dinâmica de caminhada e é a isto a que somos todos convidados. Seguir é buscar colocar na nossa vida os valores que o Senhor nos ensinou e viver seu exemplo de vida e entrega. Mas para seguir é preciso permanecer com Ele, estar com ele, como, por exemplo, pela oração e meditação. Assim nossa vida será sempre um constante estar com Jesus.

Mas, como nos mostra as leituras de hoje, Deus tem para cada um uma procura singular.  Esta procura é o primeiro movimento, a primeira iniciativa de nosso encontro e amizade com Deus: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (Jo 15,16).  A essa procura de Deus devemos responder com uma atitude de espera vigilante. Deus nos procura, mas não quer impor a sua presença.  Quer que a sua presença seja descoberta por nós, por um ato livre de escolha e de amor.  Por isso a sua presença se faz meio nublada, não se impõe pela evidência, mas solicita uma adesão de fé.

Possamos estar também nós atentos ao chamado do Senhor que também hoje nos convida a escutá-lo, a segui-lo e a anunciá-lo.  Que Ele mesmo nos auxilie e nos dê ouvidos atentos de discípulos, para que, a exemplo de Samuel, de André, de Pedro, de Paulo e de muitos outros, tenhamos um encontro transformador com Ele, a ponto de repetirmos com o Apóstolo: “Para mim viver é Cristo”.  E vimos ainda que Jesus mostrou aos seus primeiros Apóstolos o local onde morava.  E eles ficaram com Ele.  Construamos também nós uma morada no nosso coração, onde Cristo possa habitar, onde Ele possa instruir-nos e conversar conosco.  Assim seja.

Peçamos a intercessão da Virgem Maria por todos os seminaristas, pelos sacerdotes, pelos religiosos e pelas religiosas, para que tenham plena consciência da importância do seu papel espiritual, e que possam levar os jovens uma resposta favorável à chamada de Deus, repetindo como o profeta Samuel: ‘Senhor, fala, que teu servo escuta!’” (v. 9).  Assim seja.

 

Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ

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