Homilia do D. Anselmo Chagas de Paiva – II Domingo da Quaresma – Ano B

A transfiguração de Jesus

Mc 9,2-10

Caros irmãos e irmãs, 

Neste segundo domingo do tempo quaresmal, a Liturgia da Palavra nos apresenta como primeira leitura um texto tirado do Livro do Gênesis (cf. Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18), onde nos mostra Abraão conduzindo seu filho Isaac para o sacrifício. A figura de Abraão se caracteriza como o exemplo do homem que vive numa constante escuta de Deus, portador de uma fé sólida e inabalável, sendo conhecido como o pai de todos os crentes; o nosso pai na fé. 

Segundo o Livro do Gênesis, que compõe o Pentateuco do Antigo Testamento, Deus pede a Abraão: “Sai da tua terra, deixa seus parentes e a casa de seu pai para ir para a terra que eu te mostrarei” (Gn 12,1-4). Em obediência à ordem do Senhor, Abraão deixa tudo, renuncia a tudo: pátria, família, estabilidade e confia apenas em Deus, pois ele tem consciência que só Deus governa a sua vida.  Nesta terra, os seus descendentes formariam uma grande nação e herdariam uma terra “onde corre leite e mel” (Gn 12,7).

Abraão acredita, mesmo sabendo que a esposa Sara é estéril e ele já tem 75 anos para o tempo da promessa. Mas mesmo passando vinte e quatro anos, após receber ele esta promessa, ocorre a visita do Senhor à sua tenda.  No final da visita, Abraão ouve: “Em um ano, a esta época, voltarei à tua casa e Sara terá um filho” (cf. Gn 18,14). E, como para Deus nada é impossível, assim aconteceu: o nascimento de Isaac, filho de um homem de 100 anos e uma mulher estéril de 90, e através de quem Abraão será o pai de um grande povo, o pai de todos os crentes.

Sendo o povo escolhido de Deus, os hebreus conquistariam a terra prometida de Canaã, uma terra de fartura, em comparação com as que Abraão deixara para trás. Foi assim que Abraão foi para Canaã, passando a ser o fundador da nação hebraica. Canaã era a terra prometida por Deus ao seu povo, desde o chamado de Abraão, que habitava a cidade caldeia de Ur, no sul da Mesopotâmia. Foram 24 anos de uma longa espera.

Isaac, este filho da promessa de Deus, começa a crescer, mas o Senhor intervém novamente para fazer um novo pedido a Abraão: Oferecer Isaac em sacrifício (cf. Gn 22, 1-2-9-18). Deus retorna para exigir de Abraão aquilo que lhe fora concedido como graça e sinal do cumprimento de uma promessa: Isaac deve ser sacrificado.  Mesmo diante deste pedido, Abraão é pronto na obediência, sem nenhum questionamento.  Ele sobe ao monte para cumprir os requisitos mais difíceis do Senhor: sacrificar o seu próprio filho.

Abraão encontra-se diante da perspectiva de uma ação que para ele, pai, é certamente,  a  maior e mais difícil. Abraão obedece e se dirige para o Monte Moriá com seu filho Isaac que, sem o saber, leva a lenha para seu próprio holocausto.  Deus parece romper sua palavra e fecha para Abraão toda a esperança para o futuro.  Abraão constrói um altar, coloca a lenha e, depois de amarrar o jovem, pega na faca para o imolar. Abraão confia totalmente em Deus, a ponto de estar disposto até a sacrificar o próprio filho e, com o filho, o futuro, porque sem o seu filho, a promessa da terra prometida não se realiza. É realmente um gesto de fé extremamente radical. 

Mas, no momento decisivo o anjo do Senhor detém o braço de Abraão, e um carneiro substitui o filho no sacrifício (cf. Gn 22,13). Neste momento Abraão é detido por uma ordem do alto: Deus não quer a morte, mas a vida, o verdadeiro sacrifício não proporciona a morte, mas é a vida e a obediência de Abraão que se torna fonte de uma bênção imensa, que se concretizará ao longo dos anos seguintes. Em vista de sua comprovada fidelidade – Deus renova com Abraão sua promessa: descendência numerosa, terra em possessão e bênção para seu povo e a todas as nações da terra. 

O texto evangélico nos apresenta o relato da Transfiguração de Jesus no Monte Tabor.  A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos, e para os crentes, em geral, pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que ele é o Filho amado de Deus.  Na narração da Transfiguração de Jesus vamos encontrar alguns elementos que normalmente acompanham as manifestações de Deus, e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento: o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino.

É sempre em um monte que Deus se revela; e, em especial, é no alto de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo. A mudança do rosto e as vestes brancas e brilhantes recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Monte Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei.  O monte é o lugar de encontro com Deus: Moisés e Elias encontram Deus no Monte Horeb. A Sagrada Escritura nos diz que Jesus, por várias vezes, se retira para o monte, a fim de estar com Deus em oração.

A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto (cf. Ex 40,35; Nm 9,18.22). Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas; além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18). O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer pessoa, diante da manifestação da grandeza, da onipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16).

A mensagem fundamental, presente em todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus: o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias Salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (representada por Moisés) e pelos Profetas (representados por Elias). Jesus é um novo Moisés, isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova Aliança.

O desejo manifestado por Pedro de construir três tendas no alto do monte, pode significar que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus.  O simples fato de ver, mesmo só por um instante, a humanidade de Cristo transfigurada na companhia de Moisés e Elias, cheio de entusiasmo, deseja retê-los: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias” (v.5).  Não deixa de ser a manifestação, nestas suas palavras, de um testemunho de um sentimento sincero.

Mas, logo em seguida, parece surgir uma resposta do próprio Deus a Pedro e aos demais discípulos que ali estavam: “Este é meu Filho amado, escutai-o” (v. 7).  Deus toma a palavra, pede para que reconheçam Jesus como seu Filho amado, e pede para O escutar.  O Evangelho é o lugar no qual Jesus fala-nos hoje: “Quem a vós escuta, a mim escuta” (Lc 10, 16). Com essa palavra: “Escutai-o!”, indica que em Cristo temos toda resposta.  Mas na Transfiguração ele também queria mostrar sua divindade a três de seus Apóstolos, depois de ter anunciado aos doze sua já próxima Paixão e Morte. Quis o Senhor com sua Transfiguração no Monte Tabor incentivá-los, fortalecê-los e prepará-los para o que, em seguida, aconteceria no Monte Calvário.

Como os três Apóstolos do Evangelho, também nós temos necessidade de subir ao Monte da Transfiguração para recebermos a luz de Deus, e para que a sua face ilumine o nosso rosto e nos faça crescer na fé e na oração.  Assim seja. 

Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ.

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