Homilia de D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB – XI Domingo do Tempo Comum – Ano C

A mulher pecadora na casa de Simão

 

Lc 7,36-8,3

 

Meus caros irmãos e irmãs,

 
A Liturgia da Palavra para este domingo,  põe em evidência um tema sempre presente na Sagrada Escritura: a misericórdia de Deus frente aos pecadores.  As leituras deste domingo colocam diante de nossos olhos três figuras de convertidos. A primeira é a do rei Davi, como salienta a primeira leitura ((2Sm 12,7-10.13), tirada do segundo livro de Samuel, onde nos apresenta um dos diálogos mais dramáticos do Antigo Testamento. No centro deste diálogo há uma sentença proferida pelo profeta Natan ao rei Davi no ápice do seu apogeu político, mas que caiu no nível mais baixo da sua vida moral. Para compreender a tensão dramática deste diálogo, é preciso ter presente o horizonte histórico e teológico no qual ele se situa. Davi foi um escolhido de Deus para reinar sobre seu povo. É inicialmente colocado ao lado do rei Saul, para se tornar depois seu sucessor (cf. 1Sm 16, 1-23). O desígnio de Deus refere-se também à sua descendência, ligada ao projeto messiânico, que encontrará em Cristo, chamado o “filho de Davi”, a sua plena realização.

 
A figura de Davi é assim, ao mesmo tempo, imagem de grandeza histórica e religiosa. Contrasta muito mais com a baixeza em que ele cai, quando, obcecado pela paixão por Betsabeia, a arranca do seu esposo, um dos seus guerreiros mais fiéis, ordenando depois friamente o seu assassinato.  E podemos perguntar: Como pode um eleito de Deus agir assim?  Mas por intermédio das palavras pronunciadas por Natan, Davi foi profundamente tocado e desenvolve um arrependimento sincero. O seu coração se abre à oferta da misericórdia e se coloca a caminho da conversão.

 
O Apóstolo São Paulo, um outro convertido, no trecho da sua carta aos Gálatas, sobressai outro aspecto do caminho da conversão. Na rota de Damasco, o rosto radioso e a voz forte de Cristo o fez sair do seu zelo violento de perseguidor e fez acender nele o novo zelo do Crucificado, que reconcilia os próximos e os distantes na sua cruz (cf. Ef 2,11-22). Paulo tinha compreendido que em Cristo toda a lei se cumpre e quem adere a Cristo une-se a Ele, cumpre a lei. Levar Cristo, e com Cristo o único Deus, a todas as nações tinha se tornado a sua missão.  Imbuído desta forte identidade com Jesus Cristo, chega mesmo a dizer: “Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).

 
E texto do evangelho relata a conversão de uma mulher conhecida na cidade como pecadora (v. 37).  O texto nos situa em um ambiente de banquete na casa de um fariseu chamado Simão.  O “banquete” é, neste contexto, o espaço da familiaridade, da irmandade, onde os laços entre as pessoas se estabelecem e se consolidam.  Não há qualquer indicação acerca de anteriores contatos entre Jesus e a mulher pecadora, embora possamos supor que alguém teria falado a ela sobre Jesus e teria ela percebido nele uma atitude diferente dos mestres da época, sempre preocupados em evitar os pecadores notórios e em condená-los.  E Santo Agostinho, comentando este Evangelho, diz: “Ela aproxima-se, pois, não da cabeça, mas dos pés do Senhor: ela, que tanto caminhara no erro, abraça agora os pés da santidade.  Com seus próprios cabelos, enxuga-lhe os pés, os beija e perfuma.  Seu silêncio diz tudo: sem pronunciar uma só palavra, ela exprime o seu amor” (S. AGOSTINHO, Sermo 99, 1-2.3.6; PL 38, 595-596.598).

 
A outra figura central deste episódio é Simão, o fariseu. Ele representa aqueles zelosos defensores da Lei que evitavam qualquer contato com os pecadores e que achavam que o próprio Deus não podia acolher nem deixar-se tocar pelos transgressores notórios da Lei e da moral. Jesus procura fazê-lo entender que só a lógica de Deus pode gerar o amor e, portanto, a conversão e a vida nova. Jesus empenha-se em mostrar a Simão que não é marginalizando e segregando que se pode obter uma nova atitude do pecador; mas que é amando e acolhendo que se pode transformar os corações.  O perdão não se dá a troco de amor, mas dá-se, simplesmente, sem esperar nada em troca. A reação de Jesus resulta da sua missão.  É Deus que vem ao encontro do pecador, para dar-lhe dignidade e para o convocar para o banquete escatológico do Reino.

 

A figura de Simão, o fariseu, representa aqueles que, instalados nas suas certezas e numa prática religiosa feita de ritos e obrigações bem definidos e rigorosamente cumpridos, se acham em regra com Deus e com os outros. Consideram-se no direito de exigir de Deus a salvação e desprezam aqueles que não cumprem escrupulosamente as regras e que não têm comportamentos social e religioso corretos.

 
O fariseu que recebe Jesus à mesa fixa o seu olhar sobre o que se vê: uma pecadora que introduziu-se na sua casa e, para ele, trata-se apenas de uma pecadora. Jesus, por outro lado, lança o seu olhar sobre a mulher procurando ver, através do seu comportamento, tudo o que se passa no seu coração: se ela chora, é porque é infeliz e lamenta o seu passado; se ela molha com as suas lágrimas e limpa com os seus cabelos os pés de Jesus, se ela os beija e sobre eles derrama perfume precioso, é para manifestar o seu grande amor. Não é preciso mais nada para Jesus. Ele perdoa, não porque ela pecou muito, mas porque amou muito. Se ela amou mal; sobretudo, é a sua fé que a salva. Ela faz a experiência do Amor louco de Deus que perdoa, experiência que o fariseu ainda não fez. Porque o fariseu e os convidados se guiam pelas aparências e olham a mulher apenas no passado. Jesus olha para além das aparências, abre à mulher um futuro diferente, e ela parte em paz.

 
Certamente a cena foi chocante para Simão.  Ao convidar Jesus para estar em sua casa, tencionava ele conhecer mais de perto aquele que diziam vir da parte de Deus, mas tudo parece desmoronar, quando ele mesmo pensa: “Se este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é uma pecadora” (v. 39).  Com isto, nota-se que esta mulher que se aproxima é conhecida por ser da má vida, por ser uma prostituta. Mas o escândalo acontece para Simão, sobretudo, devido a falta de reação de Jesus.

 
Simão pensava ter convidado um homem de Deus. Se ao menos Jesus tivesse retirado os seus pés, se tivesse protestado, buscando seguir a Lei que determina ser cúmplice do pecado aquele que se deixa tocar por uma mulher impura, amenizaria a questão. O paradoxo é grande! Jesus é o Filho de Deus feito homem, totalmente santo, sem qualquer pecado. A cena é incompreensível: de um lado, a pureza, a presença mesmo de Deus; do outro, a impureza, o pecado, a água suja das nossas misérias. Mas Jesus dá a esta mulher um amor que transfigura os seus gestos ambíguos. Faz deste encontro uma ocasião para manifestar a maneira de agir de Deus para com os pecadores. Jesus não aprova o seu pecado, mas acolhe esta mulher tal como ela é. Aceita o que ela é capaz de lhe dar. Se Ele a tivesse afastado, tê-la-ia encerrado no seu pecado.  Jesus lhe dá um amor que ela nunca tinha recebido, um amor gratuito, para a fazer nascer de novo. Ele transforma a água suja dos seus pecados em fonte purificadora, transfigurada pelo amor divino.  Ela, por haver recebido um perdão infinito e gratuito, pôde, por sua vez, mostrar um grande amor, e nascer para a vida. É isso que Jesus nos convida a viver quando vamos até Ele!

 
Jesus nos explica o dinamismo da conversão autêntica, indicando-nos como modelo a mulher pecadora resgatada pelo amor. O seu modo de se colocar diante de Jesus, lavando com as lágrimas os seus pés e secando-os com os cabelos, beijando-os e perfumando-os com óleo, era feito para escandalizar aqueles que viam as pessoas da sua condição com o olhar impiedoso dos juízes. Ao contrário, impressiona a ternura com que Jesus trata esta mulher, por muitos explorada e por todos julgada. Finalmente encontrou em Jesus um olhar puro, um coração capaz de amar sem explorar. No olhar e no coração de Jesus ela recebe a revelação de Deus que é amor. Este afeto purificante e restabelecedor realiza-se quando há no homem uma correspondência de amor, que implica o reconhecimento da lei de Deus, o arrependimento sincero, o propósito de uma vida nova.

 
Estamos no ano da misericórdia. Podemos acolher a Palavra deste domingo sob essa luz, tentando descobrir as atitudes bem presentes na liturgia da Palavra deste domingo: Amor, Misericórdia, Perdão, Bondade… Peçamos ao Senhor que nos dê esses dons e que saibamos partilhar com todos os nossos irmãos a graça de uma autêntica e plena conversão ao amor de Cristo.  Assim seja!

 

D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ.

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