Direito dos enfermos à assistência religiosa

INTRODUÇÃO

Na Bíblia, o ser humano, visto sempre em relação com Deus, é, antes de tudo, apresentado como criatura. Criado à imagem e semelhança de Deus, não tem em si mesmo sua origem, nem sua razão de ser. O Antigo Testamento expressa simbolicamente essa dependência e a fragilidade da vida humana com a imagem do ser humano “plasmado da argila” (Gn 2,7).

A enfermidade põe em evidência a fragilidade e a precariedade da existência humana. Ao mesmo tempo, abre a pessoa enferma para a tomada de consciência dos valores permanentes e transcendentes. O enfermo, entregue aos cuidados dos outros, é levado também a descobrir a solidariedade como essencial para a realização humana. A recuperação da saúde pode então assumir o aspecto de uma “ressurreição”, de uma vida nova.

Deus não criou o ser humano para a morte, mas para a vida (cf. Jo 10,10). Por isso, ele é chamado a esforçar-se por preservar a vida e a saúde. Afirma o Ritual da Unção dos Enfermos e sua assistência pastoral, em sua Introdução: “Por disposição da divina providência, o homem deve lutar ardentemente contra toda doença e procurar com empenho o tesouro da saúde, para que possa desempenhar o seu papel na sociedade e na Igreja, contanto que esteja sempre preparado para completar o que falta aos sofrimentos do Cristo pela salvação do mundo, esperando a libertação da criatura na glória dos filhos de Deus” (Ritual, introdução, nº 3).

Em Jesus Cristo, a fragilidade humana, assumida até à paixão e à morte na cruz, adquire um valor redentor, tornando-se meio de expressão de um amor fiel e total (cf. Fl 2,6-8). A Igreja, num mundo marcado pela doença e a morte, revela-se como sacramento universal da salvação (cf. Concílio Vaticano II, LG 48) e, como tal, assume como suas “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” dos homens, preferencialmente dos mais pobres. Seguindo Jesus Cristo, que veio para libertar o ser humano da escravidão do pecado, a Igreja anuncia eficazmente a vida e a ressurreição em Cristo, manifestando e ao mesmo tempo operando, o mistério do amor de Deus para com o homem (cf. Concílio Vaticano II, GS 45).

A enfermidade não diminui a dignidade da pessoa humana. Os enfermos são sinais e imagens do Cristo Jesus. Servir aos doentes é servir ao próprio Jesus Cristo em seus membros sofredores: “Estive enfermo e me visitastes… cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,36.40). Aqui situa-se a pastoral da saúde e, dentro dela, o direito do enfermo em receber assistência e o dever dos discípulos de Cristo em prestar essa assistência.

A Pastoral da saúde visa à promoção integral da saúde individual e social, a partir de uma visão evangélica do ser humano. Vai ao encontro dos enfermos tanto nos hospitais como nas casas de moradia. Daí a importante distinção entre Pastoral da saúde hospitalar e Pastoral da saúde domiciliar.

A Pastoral da saúde nos hospitais será tanto mais fácil quanto melhor for o relacionamento dos agentes de pastoral com a equipe hospitalar. Por isso, é preciso que os agentes de pastoral da saúde tenham formação adequada e conheçam os seus direitos e deveres.

O presente trabalho apresentará os direitos do enfermo em receber assistência religiosa em entidades civis e militares de internação coletiva, de acordo com o Código de Direito Canônico e com a legislação estatal. Evidentemente, direitos e deveres são correlatos. Ao direito do enfermo, corresponde o dever dos agentes de pastoral da saúde em prestar assistência religiosa.

A LEGISLAÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante o direito à assistência religiosa aos cidadãos que estiverem em locais de internação coletiva, conforme o artigo 5º, inciso VII: “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. Inclusive há uma lei federal de 14 de julho de 2000, que dispõe sobre esse inciso constitucional. Segundo a Lei nº 9.982/2000, artigo 1º, a assistência religiosa prevista na Constituição Federal compreende o seguinte:

Aos religiosos de todas as confissões assegura-se o acesso aos hospitais da rede pública ou privada, bem como aos estabelecimentos civis e militares, para dar atendimento religioso aos internados, desde que em comum acordo com estes, ou com familiares em caso de doentes que não mais estejam no gozo de suas faculdades mentais”.

A mesma Lei, no seu artigo 2º, afirma:

Os religiosos chamados a prestar assistência nas entidades definidas no artigo 1º deverão, em suas atividades, acatar as determinações legais e normas internas de cada instituição hospitalar ou penal, a fim de não por em risco as condições dos pacientes ou a segurança do ambiente hospitalar ou prisional”.

Observe-se que não é o Estado brasileiro o responsável pela prestação de serviço religioso, mas é a Igreja e os representantes habilitados das diversas religiões. Aqui não se trata de capelães militares, que ministram assistência religiosa junto às Forças Armadas. Os agentes de pastoral da saúde devem conhecer e respeitar as normas de cada estabelecimento.

O direito de receber assistência religiosa, portanto, está destinado às pessoas que se encontram confinadas em alguma entidade civil ou militar de internação coletiva, tais como instituições asilares, presídios, abrigos e internatos de crianças e adolescentes e entidades militares onde haja pessoal internado sem acesso à liberdade. Todas as pessoas que se encontrem asiladas por quaisquer motivos em algum lugar fechado poderão receber, se assim o desejarem, a visita de representantes habilitados da Igreja ou de cultos da religião ou doutrina que professem.

O Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, assinado na Cidade do Vaticano em 13 de novembro de 2008 e ratificado pelo Congresso Nacional em 2009, no seu artigo 8º, dispõe o seguinte:

A Igreja Católica, em vista do bem comum da sociedade brasileira, especialmente dos cidadãos mais necessitados, compromete-se, observadas as exigências da lei, a dar assistência espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em condições normais a prática religiosa e a requeiram. A República Federativa do Brasil garante à Igreja Católica o direito de exercer este serviço, inerente à sua própria missão”.

A Igreja Católica tem o dever e o direito de prestar assistência espiritual aos internados em estabelecimentos de saúde e o Estado brasileiro reconhece e garante esse direito e, consequentemente, o direito do paciente em receber assistência religiosa.

No Código de Direito Canônico, encontram-se os seguintes cânones referentes aos deveres dos presbíteros (párocos, capelães e sacerdotes em geral):

Cânon 530 – As funções especialmente confiadas ao pároco são as seguintes:

1° – administrar o batismo;

2° – administrar o sacramento da confirmação aos que se acham em perigo de morte, segundo o cânon 883, n.3;

3° – administrar o viático e a unção dos enfermos, salva a prescrição do cânon 1003, §§ 2 e 3, e dar a bênção apostólica;

4° – assistir aos matrimônios e dar bênção nupcial;

5° – realizar funerais;

6° – benzer a fonte batismal no tempo pascal, fazer procissões fora da igreja, e dar bênçãos solenes fora da igreja;

7° – celebrar mais solenemente a Eucaristia nos domingos e festas de preceito.

Cânon 566 § 1. É necessário que o capelão esteja munido de todas as faculdades requeridas para um cuidado pastoral adequado. Além das que são concedidas por direito particular ou por delegação especial, o capelão, em virtude de seu ofício, tem faculdade de confessar os fiéis entregues a seus cuidados, pregar-lhes a palavra de Deus, administrar- lhe o Viático e a unção dos enfermos, como também conferir o sacramento da confirmação aos que se encontram em perigo de morte.

Cânon 843 – § 2. Os pastores de almas e os outros fiéis, cada um conforme o seu próprio múnus eclesiástico, têm o dever de cuidar que todos os que pedem os sacramentos estejam preparados para recebê-los, mediante devida evangelização e instrução catequética, segundo as normas dadas pela autoridade competente.

Cânon 1001 – Cuidem os pastores de almas e os parentes dos enfermos que estes sejam confortados em tempo oportuno com esse sacramento.

Cânon 1003 – § 1. Todo sacerdote, e somente ele, pode administrar validamente a unção dos enfermos.

§ 2. Têm o dever e o direito de administrar a unção dos enfermos todos os sacerdotes encarregados da cura de almas, em favor dos fiéis confiados a seus cuidados pastorais; por causa razoável, qualquer outro sacerdote pode administrar esse sacramento, com o consentimento, ao menos presumido, do sacerdote acima mencionado.

Veja-se que a assistência pastoral compreende verdadeira evangelização, instrução catequética e celebração dos sacramentos, de acordo com o cânon 843 § 2.

Sobre os direitos do paciente, pode-se ler:

Cânon 213 – Os fiéis têm o direito de receber dos Pastores sagrados, dentre os bens espirituais da Igreja, principalmente os auxílios da Palavra de Deus e dos sacramentos.

Cânon 843 § 1. Os ministros sagrados não podem negar os sacramentos àqueles que os pedirem oportunamente, que estiverem devidamente dispostos e que pelo direito não forem proibidos de os receber.

O cânon 213 apresenta um dos principais direitos dos fiéis: o direito à Palavra de  Deus e aos sacramentos da Igreja. Repete quase textualmente o começo do texto da Constituição dogmática Lumen Gentium, nº 37. Com uma diferença, no entanto. O documento conciliar refere-se aos fiéis leigos. O Código, apoiado no Concílio, aplica esse direito a todos os fiéis sem distinção, sem esquecer a correlação de direitos e deveres. Ao direito dos fiéis, corresponde o dever dos pastores em anunciar a Palavra e celebrar os sacramentos.

O cânon 843 §1 estabelece os critérios para a celebração válida dos sacramentos da Igreja: a oportunidade, a devida disposição e a ausência de impedimentos.

Especificamente, quanto ao sujeito do sacramento da unção dos enfermos, o cânon 1004 §1 estabelece que “a unção dos enfermos pode ser administrada ao fiel que, tendo atingido o uso da razão, começa a estar em perigo por motivo de doença ou velhice”.

De acordo com esse cânon, para a recepção válida da unção dos enfermos, requer-se que o sujeito seja batizado, tenha atingido o uso da razão, possua a devida intenção e comece a estar em perigo de morte, por doença ou velhice. Quando o Código fala em começar em estar em perigo, não se refere ao chamado articulum mortis, ou seja, aos instantes que precedem imediatamente a morte. Para Hortal, trata-se de qualquer estado de saúde que inspire cuidados, pondo em risco a vida, mesmo que esse risco se preveja como ainda algo afastado.

CONCLUSÃO

A Pastoral da Saúde, na sua dimensão político-institucional, recomenda que os cidadãos procurem se informar como funcionam os Conselhos de Saúde nas suas cidades, quem são os conselheiros e quais são as suas atribuições, a fim de conscientizar a população dos seus direitos e deveres.

A Pastoral da Saúde, na sua dimensão solidária, requer agentes de pastoral com formação adequada. No programa de formação específica, deve constar o estudo da legislação eclesial e estatal. Para uma visita hospitalar, os agentes de Pastoral da Saúde devem conhecer e respeitar as normas do hospital e a administração do estabelecimento de saúde deve garantir o direito do paciente em receber assistência religiosa. Direito reconhecido e protegido pela Constituição Federal do Brasil.

Em contextos diferentes e sempre novos, o cristão é chamado a reviver a parábola do bom samaritano (Lc 10,30-35.36-37), seguindo o exemplo de Jesus Cristo.

Na última ceia, Jesus Cristo inclinou-se para lavar os pés dos apóstolos, antecipando o sacrifício da cruz. Com esse gesto, convidou os seus discípulos a entrar na lógica do seu amor. Na cruz de Cristo, o sofrimento foi associado ao amor: o amor que cria o bem, que tira o bem do mal, que se entrega, especialmente aos mais pobres e necessitados.

BIBLIOGRAFIA

CNBB. Pastoral da Saúde. Disponível em www.pastoraldasaudenacional.com.br

CNBB. Pastoral da Unção dos Enfermos. Disponível em www.cnbb.org.br

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. 2ª Ed. São Paulo, Loyola, 1987.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Disponível em www.planalto.gov.br

DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II. Disponível em www.vatican.va

HORTAL, J. Os sacramentos da Igreja na sua dimensão canônico-pastoral. São Paulo, Loyola, 1987.

RITUAL DA UNÇÃO DOS ENFERMOS E SUA ASSISTÊNCIA PASTORAL. 7ª Ed. São Paulo, Paulus, 2000.

Pesquisa feita pelos Padres: Pe. Jair Cardoso Alves Neto (Arquidiocese de Cuiabá-MT); Pe. Carlos Steffen (Arquidiocese de Porto Alegre-RS) e Pe. Marcos Antônio Rocha (Diocese de Divinopólis-MG).

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