Pe. Francisco Faus

Introdução

Antes de entrar no tema, parece conveniente ter em conta três considerações prévias:

A) Em primeiro lugar, é patente a importância que o Magistério (Papa, Congregação do Clero) vem dando ultimamente ao tema da direção espiritual pessoal. Ao longo de vários decênios, como sabemos, esta tem sido uma prática um tanto descuidada: não raramente, p.e., em alguns seminários, a direção espiritual tem-se limitado quase que exclusivamente à orientação coletiva, por meio de palestras, meditações e retiros, etc., coisa importante, mas insuficiente.  Vê-se claramente que está havendo agora um desejo de que seja resgatada a prática da direção espiritual no sentido clássico de orientação individual, pessoal.  Assim, por exemplo:

a) A Ex. Ap. Pastores dabo vobis (25/3/1992), ao tratar da pastoral vocacional, enuncia um programa que é válido para todos: «É preciso redescobrir a grande tradição do acompanhamento espiritual pessoal, que sempre deu tantos e tão preciosos frutos na vida da Igreja» (n. 40).

b) Posteriormente, o Diretório para o ministério e a vida do presbítero, da Congregação para o Clero (31/1/1994), afirma: «Paralelamente ao Sacramento da Reconciliação, o presbítero não deixará de exercer o ministério da direção espiritual. A descoberta e a difusão desta prática em momentos diversos da administração da Penitência é um grande benefício para a Igreja no tempo presente» (n. 54) [1].

B) Em segundo lugar, como acabamos de ver, o Diretório recomenda o atendimento da direção espiritual em momentos diversos da confissão (com mais calma, com mais tempo). Isso é sempre possível, em maior ou menor medida, a todos os sacerdotes. No entanto, àqueles sacerdotes que julguem sinceramente não ter tempo para tanto, vale a pena recordar que toda confissão, administrada com espírito de fé e de caridade, pode e deve ser também direção espiritual. Lembremos o Santo Cura d’Ars – referencial para nós neste Ano Sacerdotal -, que, mesmo quando só podia dar conselhos brevíssimos na confissão, rasgava horizontes às almas, elevava, orientava, despertava, suscitava em muitos a inquietação vocacional, etc. Seus conselhos eram como dardos de fogo dirigidos ao ponto certo de  cada alma, e mudavam vidas, com a graça de Deus.

C) Em terceiro lugar, um esclarecimento: esta conferência estará centrada, fundamentalmente, no tema da Direção espiritual em si,  de modo que não trataremos da confissão, objeto de várias intervenções neste Curso [2].

A exposição estará subdividida em três partes:

1) Qual a finalidade da direção espiritual?

2) Quais as condições pessoais do diretor espiritual?

3) Como exercer a prática da direção espiritual?

 

I. Qual a finalidade da direção espiritual?

A finalidade da direção espiritual só pode ser bem compreendida à luz de alguns conceitos básicos da antropologia cristã e da teologia espiritual, que convém ter sempre presentes.

             A) A antropologia sobrenatural cristã evidencia que o cristão não pode ser compreendido nem ajudado apenas por meio das ciências humanas (psicologia, pedagogia, sociologia, etc.), uma vez que é, ontologicamente (não só moralmente), uma criatura nova (2 Cor 5,17), um homem novo (Ef 4,24), em quem foi restaurada, pelo batismo, a semelhança  com Deus (Catecismo da Igreja Católica [CEC], n. 734, 1701, etc.), pois foi feito, pela graça do Espírito Santo, participante da natureza divina (2 Ped 1,4 e CEC, n. 460).

É muito esclarecedor o processo que se observa – não de modo linear, mas quase que “em espiral ascendente” (como diria Romano Guardini) -, no Evangelho de São João, para ilustrar a vida nova do homem novo:

a) Já no prólogo, São João afirma que, aos que crêem em Cristo, Ele deu-lhes o poder de se tornarem [portanto, trata-se de uma transformação] filhos de Deus, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus (Jo 1, 12-13). É uma “nova criação”;

b) No cap. 3, na conversa com Nicodemos, Jesus declara: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus (Jo 3,5). É uma referência evidente à necessidade do novo nascimento para a vida nova que se opera pelo Batismo;

c) No cap. 3, ao conversar com a Samaritana, Cristo dá mais um passo e ilustra essa vida nova com a imagem da água que não pára de jorrar e subir: O que beber da água que eu lhe der, virá a ser nele fonte de água, que jorrará até a vida eterna (Jo 4,14). É uma referência ao dinamismo da vida sobrenatural do cristão, chamada a crescer sem cessar, até desabrochar plenamente na vida eterna (cf. 1 Jo 3,2);

d) Finalmente, na festa dos Tabernáculos, o Evangelho de João explicita claramente que essa “água” é a graça do Espírito Santo. Jesus, de pé, clamou: Quem crê em mim, como diz a Escritura, “do seu interior manarão rios de água viva”. Dizia isso referindo-se ao Espírito Santo que haviam de receber os que cressem nele (Jo 7,38-39). Cf. também, por exemplo, Rm 5,5, Rm 6,4, etc, etc.

Essa nova vida brota, por assim dizer, da chaga do peito de Cristo crucificado (Jo 19,34), uma vez consumado o Sacrifício redentor, que tem como “fruto” o envio do Espírito Santo (emisit Spiritum: Mt 27,50), do “santificador” (Rm 1,4), daquele que – conforme gosta de frisar a tradição teológica oriental – nos “deifica”, nos “diviniza”, nos “cristifica” (cf. Rm 8,29; Gál 2,20). [3]

B) Por seu lado, a teologia espiritual, com base nos dados da antropologia cristã, entendida à luz da Revelação, explica que o Espírito Santo, ao criar em nós uma “vida nova”, impanta na nossa alma um “novo organismo”, o que a teologia ascética e mística clássica (p.e. Garrigou-Lagrange, Royo Marin), e também o Catecismo da Igreja (n. 1266), chamam “o organismo da vida sobrenatural do cristão”: a graça santificante é infundida na essência da alma, e as virtudes  e dons do Espírito Santo, nas potências da alma (inteligência, vontade…).

a) O Catecismo da Igreja Católica, no n. 1266, explica assim esse “organismo”:

«A Santíssima Trindade dá ao batizado a graça santificante, a graça da justificação, a qual

– torna-o capaz de crer em Deus, de esperar nele e de amá-lo por meio das virtudes teologais;

– concede-lhe o poder de viver e agir sob a moção do Espírito Santo, por seus dons;

– permite-lhe crescer no bem pelas virtudes morais.

Assim, todo o organismo da vida sobrenatural do cristão tem a sua raiz no santo Batismo».

Isso significa que a direção espiritual deve consistir, principalmente, em orientar e ajudar o dirigido a alimentar e aumentar a vida da graça, a cultivar as virtudes (teologais e morais ou humanas), e a buscar uma purificação e união com Deus cada vez maiores, de modo a se tornar capaz de secundar com delicadeza as moções do Espírito Santo, que não cessa de impelir para uma vida santa por meio dos seus dons.

b) Ao mesmo tempo, a teologia espiritual ensina que as fontes da graça, comunicada pelo Espírito Santo, resumem-se fundamentalmente em três:

1) Os sacramentos (particularmente, na prática da direção espiritual, os da Reconciliação e da Eucaristia);

2) A oração (pela sua eficácia impetratória e transformadora);

3) O mérito sobrenatural, ou seja, o amor sobrenatural com que se praticam os atos das virtudes e dos deveres (Cf. CCE nn. 2010 e 2011). Esses atos das virtudes e dos deveres abrangem, permeiam, todos e cada um dos aspectos da vida, desde os mais importantes até os mínimos.

Portanto: a direção espiritual deverá cuidar de que o dirigido:

– incremente e melhore a participação no Sacramento da Reconciliação, na Santa Missa, nas devoções eucarísticas;

– amadureça na vida de oração (oração vocal, mental, contemplativa, lectio divina, devoções sólidas);

– aprenda a viver as virtudes teologais e morais no seu próprio estado de vida, no dia a dia, e a santificar os seus deveres (familiares, profissionais, sociais, etc.).

c) Finalmente, a teologia espiritual nos lembra que a meta da direção espiritual é, na realidade, a própria meta da vida cristã: a santidade.

Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, João Paulo II quis lembrar, com forte insistência, um ensinamento central do Concílio Vaticano II, ensinamento que Paulo VI considerava o “ponto central” desse Concílio: a chamada universal à santidade: «Os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade» (Lumen gentium, n. 40).

Com base nessa proclamação do Concílio, João Paulo II , ao propor o “programa pastoral” da Igreja para o novo milênio quis destacar, com uma ênfase toda especial, essa “chamada universal à santidade”, salientando dois “princípios” que jamais se podem perder de vista, quer na luta pessoal, quer na direção de almas:

1) «O horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral é a santidade» (Novo millennio ineunte, n. 30) [4];

2) «Não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar e imitar » (Ibid., n. 29).

 

II. Que condições pessoais que deve ter um bom diretor espiritual?

Em primeiro lugar, ter  a consciência clara de que o diretor espiritual não é nem o modelo nem o modelador: «O modelo é Jesus Cristo; o modelador, o Espírito Santo, por meio da graça»[5].

O seu papel é apenas (nada mais e nada menos) o de ser instrumento nas mãos de Deus. As orientações que o diretor espiritual dá não podem ser “opiniões pessoais”. Ele deve ser sempre, o mais possível, «luz de Deus, voz de Deus, fogo de Pentecostes» (São Josemaria, em São Paulo, em 1974) [6].

E, como estará em condições de poder falar e agir desse modo?  Tendo também a convicção (que é, ao mesmo tempo, uma responsabilidade) de que a direção espiritual, por ser tarefa sobrenatural (santificadora), deve-se apoiar, antes de mais nada, nos meios sobrenaturais [7]. Concretamente:

a) na sua oração: a começar pela petição humilde e insistente das graças e luzes do Espírito Santo e dos seus dons; e a constante petição pelas pessoas concretas que atende;

b) na sua mortificação [8], consciente de que – como lembra São Josemaria Escrivá- «o Espírito Santo é fruto da Cruz […]. Só quando  homem, fiel à graça, decide colocar no centro da sua alma a Cruz […], só então é que recebe com plenitude o grande fogo, a grande consolação do Espírito Santo» [9];

c) de modo geral, numa sólida vida interior, própria de quem procura seriamente a santidade. Como lemos no Decreto Presbyterorum Ordinis, n. 12: «Embora a graça possa levar a termo a obra da salvação também por ministros indignos, no entanto, prefere Deus ordinariamente manifestar as suas maravilhas através daqueles que se fizeram mais dóceis ao impulso e à direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida»;

d) como fruto da vida interior, o instrumento de Deus estará em condições de manter aceso o zelo apostólico, a vibração que se contagia e leva os outros a vibrar, a desejar servir (suscitam-se, assim, vocações) e a fazer apostolado.

Pelo que acabamos de comentar, fica claro que o maior inimigo da verdadeira direção espiritual  é a tibieza: «O apóstolo tíbio: este é o grande inimigo das almas» (Forja, n. 488). Por quê?

a) em primeiro lugar, porque a tibieza “cega” para as coisas de Deus. Ao tíbio, Cristo diz: És pobre, cego e nu. Dou-te um conselho: […] compra um colírio para curar os teus olhos, para que enxergues (Apoc 3,7-8). E São Paulo afirma, categórico: O homem não-espiritual não aceita o que é do Espírito de Deus… Ele não é capaz de entendê-lo (1 Cor 2,14);

b) em segundo lugar, porque não basta saber, ter ciência, para orientar bem. Além da doutrina bem assimilada, é necessária uma verdadeira vida interior, para que atuem em nós os dons do Espírito Santo: sabedoria, inteligência, conselho… Na realidade, só o santo, ou o que luta por sê-lo, é capaz de “entender”, de “captar” e transmitir a “voz do Espírito Santo”, porque capta “por conaturalidade” (S. Tomás) as luzes de Deus;

c) Faltando a luz do Espírito Santo, será fácil que o sacerdote baseie a  orientação dos fiéis na simples sensatez, no palpite do momento; ou então nas ciências humanas: pedagogia, psicologia, que, quando muito, podem ser auxiliares secundárias. Por esse caminho, mesmo que o diretor espiritual dê alguma ajuda, acabará causando muitos estragos. Deixará o organismo sobrenatural em estado de coma (tal é o caso do diretor espiritual “muito amigo”, que escuta e conversa de mil coisas, mas não toca no essencial, e deixa as almas, do ponto de vista da vida sobrenatural, numa “anemia perniciosa”).

Dentro dessa perspectiva, a Exortação Pastores dabo vobis, n. 53,  frisa que deve haver uma união indissolúvel entre estudo e piedade. O diretor espiritual deve ter a doutrina – as idéias, as soluções e conselhos – iluminada e aquecida pela piedade.

O perigo é que, quando não se é exigente consigo mesmo nestes pontos, é fácil acabar na situação medíocre de alguns sacerdotes, diáconos e seminaristas que, nas paróquias ou comunidades, contam com agentes de pastoral, ministros e colaboradores, que são gente de confiança, “braços direitos”, mas que são muito fracos na doutrina, na piedade e nas virtudes. Isso leva inevitavelmente a cair no ativismo, e a pensar que tudo está feito apenas com essa “movimentação”, que às vezes não passa de agitação superficial. É importante que não esqueçamos a grande verdade que se encerra nesta breve frase de Caminho: «Estas crises mundiais são crises de santos» (n. 301), e só os que lutam por ser “santos” as poderão superar.

Convençamo-nos de que, sem levar a sério o forte apelo para a santidade da Novo millennio ineunte, sem compreender que essa é a mais evidente «urgência pastoral» (n. 30), não será possível superar as grandes crises morais que, no mundo atual, se alastram e agravam de forma cada vez mais sensível, entre fiéis de todas as idades.

Essas convicções, o diretor espiritual deve aplicar, em primeiro lugar, a si mesmo. É preciso ter sempre presente que a caridade – «vínculo da perfeição» – não tem fim (Cf. 1 Cor,13,8), exige um crescimento contínuo, até a alma chegar à estatura do Cristo em toda a sua plenitude (Ef 4,13). Por isso, o próprio diretor espiritual deverá esforçar-se sinceramente em “crescer” (procurando ter um sólido plano de vida espiritual; recebendo, também ele, o auxílio de uma direção espiritual eficaz, etc.). Caso contrário, deixará facilmente as almas estagnadas, num nível inferior ao que Deus quer.

 

III. Como exercer a prática da direção espiritual?

Podemos refletir sobre este ponto lembrando o esquema clássico das funções do confessor, que também se aplicam ao diretor espiritual: pastor, pai, médico, mestre e juiz (prescindiremos agora da função de juiz, que é mais específica da administração do Sacramento da Penitência: Cf. Jo 20,22-23).

 

Pastor

A parábola do Bom Pastor (Jo 10,1 ss.), ensina-nos que este conhece as suas ovelhas e as chama pelo nome. Isso significa que cada alma, cada uma, é única aos olhos de Deus, e é um “universo“. Por isso, não há receitas genéricas e estereotipadas, válidas para todos, mas é preciso, tanto quanto possível, um esmerado atendimento pessoal. Já víamos, no início da conferência, que não basta a direção espiritual “coletiva”, por importante que seja (palestras, meditações pregadas, etc.).

Essa forma de proceder é um dos modos de dar a vida pelas ovelhas, porque assim, dispondo-se a um atendimento pessoal, o padre disponibiliza, em favor dos fiéis, o seu tempo, o seu lazer, os seus interesses particulares. Entrega-se. Concretamente, é preciso um empenho sacrificado do sacerdote para organizar os seus horários, de modo a reservar o tempo necessário ao atendimento personalizado (além de ser também generoso, sempre que possível, com os fiéis que o procuram fora de horas).

Cristo, o Bom Pastor, disse que veio para que tenham vida e a tenham em abundância. A direção espiritual, portanto:

a) deve alimentar abundantemente a “vida” espiritual do dirigido, facilitando-lhe as orientações concretas para que essa vida se renove e cresça. O dirigido deveria tirar de cada conversa com o diretor espiritual alguma coisa viva, “prática”, que possa encarnar no dia a dia;

                         b) a direção irá bem quando o interessado, em cada conversa, começar lembrando os propósitos que foram concretizados na conversa anterior;

c) neste sentido, o diretor espiritual deverá pedir luzes ao Espírito Santo para acompanhar o crescimento das almas pelo plano inclinado adequado a cada uma delas. Para cada alma, deverá  achar o ritmo, às vezes rápido, às vezes lento ou até muito lento (trabalho de anos e anos), que a faça crescer, sem desanimar nem desistir quando percebe que demoram a perceber-se os frutos da direção.

É importante que o diretor saiba convencer com alegria a pessoa dirigida, de modo que ela própria, livremente, deseje e queira fazer o que o diretor sugere (porque o diretor só sugere, não manda). Agindo assim, chegará um momento em que a alma que dirige já não se limitará a esperar passivamente os conselhos, mas se adiantará sugerindo “iniciativas”, consultando possíveis lutas, metas novas que sente que Deus lhe pede: sinal de que está tendo vida interior e tornando-se sensível às moções do Espírito Santo.

Convém recordar também que as almas, normalmente,  não crescem tanto por “acúmulo” (mais práticas, mais devoções, mais mortificações…), como por “intensidade“. Certamente, ao longo do tempo, muitas vezes será preciso “aumentar” as práticas e os horários dedicados à vida espiritual e ao apostolado, mas quase sempre o conselho mais eficaz consistirá em sugerir um modo bem concreto e prático de melhorar a qualidade e a intensidade de algum ponto de luta (aprofundar numa prática de piedade, pôr mais ordem no plano espiritual, melhorar o modo de orar, crescer na caridade com determinadas pessoas, santificar detalhes do trabalho diário, lutar contra defeitos do caráter, etc).

Como é lógico, convém examinar e comentar com frequência, na direção, como vão as grandes colunas que sustentam  edifício espiritual: sacramentos, vida de oração, “lectio divina”, virtudes fundamentais

Finalmente, a experiência indica que, para garantir a eficácia da direção, convém que o sacerdote, ao conversar com o irigido, se centre nos temas próprios, específicos, da direção espiritual. Poderia atrapalhar a eficácia da direção meter-se imprudentemente em problemas não espirituais nem morais da pessoa, como assuntos financeiros relativos à sua empresa, escola ou loja, aconselhamento sobre organização econômica familiar (investir nisso, aplicar naquilo, etc.), aconselhamento de medicinas alternativas, etc.

 

Pai

Como um bom pai [10], que quer o verdadeiro “bem” dos filhos, o diretor espiritual deve saber compaginar a compreensão com a exigência.

Um sacerdote bondoso, “paizão“, pode ser muito querido, mas quase com certeza vai “mal-criar” as almas, vai deixá-las enfraquecidas, com vida interior muito frágil. A típica “mãe condescendente” acaba sendo “cúmplice” dos erros e do fracasso moral do filho. Neste sentido, João Paulo II dizia que, hoje, os que se contentassem com uma «oração superficial» seriam «não apenas cristãos medíocres, mas cristãos em perigo» (Novo millennio ineunte, n. 34).

A experiência evidencia que o diretor que se limita a “consolar” e animar sentimentalmente as pessoas aflitas, sem elevá-las para Deus, com visão de fé, com energia e caridade, não só não ajuda, como faz mal. Quando se trata de mulheres, mais vulneráveis ao sentimentalismo, é preciso convencer-se de que as “lágrimas” não se resolvem com consolos afetuosos (que podem até tornar-se para o sacerdote uma armadilha do diabo), mas com a fé e a caridade de Cristo: ajudando a pessoa a orar mais e melhor, a meditar sobre o amor de Jesus crucificado, a se colocar junto da Mãe dolorosa, e – coisa muito importante nestes casos – a pensar menos em si e mais nos demais (este último ponto é essencial para sofredores e desanimados).

Lembremos que o pai do filho pródigo não se limita a ser compreensivo, acolhedor e carinhoso. Não é um pai que se limita a abraçar e chorar, e logo se despede do filho, dizendo-lhe: – «Meu filho, vá em paz (para onde?), mas não demore muito a voltar; não deixe de me visitar de vez em quando». Pelo contrário, o pai do pródigo aperta o filho no peito e o leva para dentro da casa paterna, a fim de que lá se instale permanentemente; dá-lhe a melhor veste (símbolo da graça), um anel no dedo (símbolo da dignidade filial recuperada), e prepara um banquete, façamos uma festa (símbolo do amor, da união com Deus): cf. Lc 15,20-24).

Além disso, para ser bom pai, o diretor precisa de ter a paciência e a misericórdia do pai do filho pródigo. Que as almas nunca vejam o sacerdote magoado, decepcionado, desesperançado, cansado delas. O pai do pródigo não se cansou de esperar.

Lembremo-nos ainda que a Carta aos Hebreus diz que o bom pai, à imitação de Deus, corrige o filho, para seu bem: Se permanecêsseis sem a correção, seríeis bastardos e não filhos legítimos (Heb 12,8). A correção, feita com caridade e clareza, dói, mas acaba produzindo frutos de aperfeiçoamento, que o filho agradecerá.

 

Médico

Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes (Mc 2,17). Todos somos “enfermos”. Mas a direção espiritual não pode limitar-se a ser um pronto-socorro, uma ajuda emergencial para problemas pontuais (crise conjugal, perda de um ser querido, filho drogado, desemprego, ruína econômica). A verdadeira direção – já o vimos – é uma orientação habitual, para o dia-a-dia, rumo à santidade.

É natural que muitas vezes os fiéis recorram a nós como “pronto-socorro” espiritual. Logicamente, atenderemos essas consultas e desabafos com dedicação e carinho, como um bom médico, mas mesmo os “acidentados” devem ser ajudados a enxergar mais longe, a compreender o que Deus lhes pede naquelas circunstâncias, a entender com fé a cruz e a abraçá-la.

Um bom médico nota-se pela capacidade de fazer, quanto antes, um diagnóstico, por ter “olho clínico“. O sacerdote, especialmente em relação às pessoas que começam a  amadurecer espiritualmente ou a assumir colaboração nas tarefas pastorais, deve ter olho clínico para detectar algumas “doenças” que influem em todo o “organismo”, como uma anemia profunda ou uma infecção generalizada. Dentre as principais:

a) a doença do sentimentalismo: ter uma religiosidade meramente emocional, que não sabe apoiar-se na cruz, na abnegação, na doação generosa, numa “vida em ordem”, com horários que garantam a fidelidade aos propósitos de orar, meditar, ler, conversar com a família, etc, tanto se a pessoa “sente” vontade e disposição de fazê-lo, como se não “sente”.

O que importa é viver de fé, de convicções. É a fé que arrasta o amor. Amor sem raízes de fé, é folha seca ao vento.  Na Encíclica Caritas in veritate, Bento XVI escreve: «Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos» (n. 3).

b) a doença do pietismo: muito relacionada com a anterior, que consiste em reduzir o progresso espiritual à simples melhora e incremento de atos de piedade e devoção, sem cuidar de ganhar formação doutrinal nem de se esforçar por adquirir virtudes.  Surge, então, a figura do beato: está metido(a) em mil coisas da igreja, mas que dá mau exemplo, por falta de critério e de virtudes; e assim se desprestigia, pois aparece antes todos como pessoa preguiçosa, maldizente, profissionalmente medíocre, cheia de amor-próprio, vaidade, mexerico, maledicência, inconstância, etc;

c) a doença do voluntarismo: é a dos fiéis que, de modo explícito ou implícito, pensam que, afinal, tudo depende de sua força de vontade. Esquecem-se de que Jesus afirmou: Sem mim, nada podeis fazer (Jo 15, 5). Por causa desse engano, essas pessoas lutam e trabalham sem pedir a ajuda a Deus, sem rezar com constância, sem viver cada vez mais intensamente os sacramentos da Reconciliação e a Eucaristia, sem oferecer mortificações pela sua melhora espiritual e pelo apostolado. Não devemos esquecer o «primado da graça», que tanto frisou João Paulo II na Novo millennio ineunte (n. 38).

Há ainda situações especiais, que exigem o que poderíamos chamar de medicina especializada: p.e., atendimento de casais em situação irregular (cf. Familiaris consortio, n. 84 e Catecismo da Igreja católica, n. 1651); ou atendimento de viciados em drogas, em pornografia da Internet e da tv, ou obsessivos-compulsivos  com desvios sexuais, etc. Não é possível aqui descer a essa casuística, mas o diretor espiritual deve estar preparado, e, concretamente, ter informações seguras sobre alguns médicos e psiquiatras ou psicólogos católicos de absoluta confiança, para os quais possa encaminhar essas almas.

Finalmente, um bom médico deve saber agir com pulso quando se torna necessário intervir prontamente com uma cirurgia (Cf. Mt 5,29-30). Por exemplo, de cortar uma ocasião próxima de pecado grave ou de escândalo. Não fazê-lo, equivaleria a deixar que um câncer progredisse ou que um membro fosse sendo tomado pela gangrena: deve agir, porém, com uma clareza e uma energia que estejam impregnadas de caridade, de apoio fraterno, e que não humilhem.

 

Mestre

O diretor espiritual deve ser mestre de almas. Deve, portanto, “ensinar” a adquirir doutrina sólida e a vivê-la na prática,formar a consciência, a aprender a orar. Para isso, é necessário que o diretor de almas se prepare e se esforce por ser:

A) Mestre de doutrina, em primeiro lugar.

a)  É evidente que hoje, entre os católicos, há um enorme -por vezes, completo – déficit de doutrina: de fé fundamentada em idéias claras e convicções sólidas [11]. Essa carência de doutrina torna a espiritualidade tão frágil como um castelo de papelão. Qualquer vento, na hora da dificuldade ou do cansaço, o derruba (Cf. Mt 7,24 ss);

b) Hoje é frequente, mesmo em católicos convictos, piedosos e apostólicos, uma falta, por vezes espantosa, de conceitos claros acerca das verdades em que acreditam (Trindade, Cristo Deus-Homem, Santa Missa, Igreja, Confissão, pecado, etc.). Falta-lhes uma visão de conjunto, coerente, das verdades da fé, de verdades conhecidas claramente e harmonizadas como as peças que compõem um maravilhoso mosaico (essa é a perspectiva que “deveriam” ter, se a catequese e a orientação espiritual tivessem sido sérias). Sua fé, pelo contrário, pode ser comparada a uma sacola em que se foram jogando e misturando em desordem fragmentos quebrados do mosaico da verdade, juntamente com cacos e pedregulho de erros e interpretações confusas ou até  “heréticas” acerca de muitos pontos da fé;

c) Daí a responsabilidade do sacerdote por estar muito preparado para dar doutrina: ler com constância, aconselhar-se com colegas experientes sobre os diversos tipos de obras de doutrina (de dogma, moral, ascética e mística, etc.), que, pouco a pouco, poderá ir aconselhando aos seus dirigidos, a começar pelos pequenos catecismos, pelo “Compêndio do Catecismo da Igreja Católica” e pelo próprio “Catecismo da Igreja Católica, edição típica”, valorizando também muito as exposições sistemáticas e pedagógicas da fé e da moral, do tipo da “A fé explicada”, de Leo Trese, etc.

B) Mestre de virtudes e da arte da luta ascética.

a)  Cristão sem virtudes morais, sem virtudes humanas, é um ser “invertebrado“. Na época atual, todos percebemos as conseqüências negativas de muitas vidas de “gente boa”, que foi “instruída”, mas não foi “formadana prática das virtudes: falta de fortaleza, de constância, de paciência, de disciplina, de ordem, de autodomínio (gula, castidade), de delicadeza, de abnegação, de mansidão, de espírito de serviço, de desprendimento, etc. (Cf., por exemplo, Catecismo da Igreja Católica, nn. 1803 e 1804);

b) Não poucos fiéis, e também seminaristas e sacerdotes, acabam sendo, por causa desse déficit, pessoas problemáticas, despreparadas para enfrentar as responsabilidades, as tentações e os embates da vida [12]. Esqueceram, ou nunca aprenderam, que «onde não há mortificação, não há virtude» [13];

c) Talvez hoje, mais do que em outras épocas, seja importante aprofundar – lendo bons livros – na vida e na luta ascética dos santos, bem como nas obras dos autores espirituais clássicos, que são válidas para todas as épocas (Sta. Teresinha, S. Afonso Maria de Ligório, S. Francisco de Sales [Filotéia], Imitação de Cristo, Sta. Teresa de Ávila, S. Josemaria Escrivá, etc, etc.) [14].

C) Mestre de oração.

a) Eis uma tarefa que a Novo millenio ineunte considera prioritária: «Para essa pedagogia de santidade, há a necessidade de um  cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração […]. A oração cristã, vivendo-a plenamente – sobretudo na liturgia, meta e fonte da vida eclesial, mas também na experiência pessoal -, é o segredo de um cristianismo verdadeiramente vital» (n. 32);

b) Daí que o sacerdote, começando por aprofundar ele próprio na oração, deve ficar em condições de poder ensinar, de modo prático, a orar: oração vocal, meditação, oração contemplativa, enfim, as diversas formas de oração maravilhosamente explicadas na quarta parte do Catecismo da Igreja Católica;

c) Naturalmente, para isso, é necessário que o diretor espiritual seja homem de oração, homem de adoração, homem de vivência diária da “lectio divina”;

                         d) Enfim, concluindo, vale a pena citar, a esse respeito, umas palavras da Instrução da Congregação para o Clero, O Presbítero, Pastor e Guia da comunidade paroquial, (14/8,2002), n. 27: «Guiar os fiéis a uma vida interior sólida, sobre o fundamento dos princípios da doutrina cristã, como foram vividos e ensinados pelos santos, é obra pastoral muito mais relevante e fundamental [do que planejar e debater planos, novidades e mudanças superficiais]. Nos planos pastorais é precisamente esse aspecto que deveria ser privilegiado. Hoje, mais do que nunca, é necessário descobrir a oração, a vida sacramental, a meditação, o silêncio adorante, o coração a coração com Nosso Senhor, o exercício cotidiano das virtudes que a Ele configuram; tudo isso é  muito mais produtivo do que qualquer discussão e é, de qualquer forma, a condição para a sua eficácia».

 

Bibliografia

– João Paulo II: Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores dabo vobis, de 25/3/1992

– João Paulo II: Carta Apostólica Novo millennio ineunte, de 6/1/2001

– Congregação para o Clero: Diretório para o Ministério e a Vida do Presbítero, de 31/1/1994

– Congregação para o Clero: O Presbítero, mestre da Palavra, ministro dos Sacramentos e guia da comunidade em vista do terceiro milênio, de 19/3/1999

– Congregação para o Clero: O Presbítero, Pastor e Guia da Comunidade paroquial, de 14/8/2002

– Bento XVI: Homilias sobre o sacerdócio, nas diversas Missas Crismais

– São Josemaria Escrivá: Amar a Igreja, Ed. Quadrante 2004

 


[1] Cf. também: Congregação para o Clero, O Presbítero, mestre da Palavra, ministro dos Sacramentos e guia da comunidade, em vista do terceiro milênio (19/3/1999), cap. IV, par. 3; Instrução da Congregação para o Clero, O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial (14/8/2002), n. 27, etc.[2] As funções do diretor espiritual como pastor, médico, pai, mestre e juiz irão sendo focalizadas, em particular, de modo sintético, na última parte da exposição.

[3] «O Espírito Santo – explica São Josemaria Escrivá – é o Espírito enviado por Cristo para realizar em nós a santificação que Ele [Cristo] nos mereceu na terra» (É Cristo que passa, n. 130). E S. Cirilo de Alexandria diz: «O Espírito Santo não é um artista que desenhe em nós a divina substância como se fosse alheio a ela; não é assim que nos conduz à semelhança divina. Sendo Deus e procedendo de Deus, Ele mesmo se imprime nos corações que o recebem, como o selo sobre a cera e, dessa forma, pela comunicação de si mesmo e pela semelhança, restabelece a natureza consoante a beleza do modelo divino e restitui ao homem a imagem de Deus» (Tesouro da santa e consubstancial Trindade, 34).

[4] A Instrução da Congregação para o Clero O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial (14/8/2002), frisa insistentemente, na esteira da Carta Novo millennio ineunte, que a primeira prioridade pastoral é a santidade, sendo este «o principal desafio pastoral no contexto do tempo presente», de modo que se torna preciso ensinar e lembrar incansavelmente a todos que «a santidade constitui a meta da existência de cada cristão […]. A pedagogia da santidade é um desafio, tão exigente como atraente, para todos os que na Igreja detêm responsabilidade de guia e formação» (n. 28).

[5] S. Josemaria Escrivá, Carta 8/8/1956

[6] Que todos nos considerem como ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus  (1 Cor 4,1).

[7]  Na Carta Novo millennio ineunte, n. 38, João Paulo II insistia na necessidade de «respeitar um princípio essencial da visão cristã da vida: o primado da graça. Há uma tentação que sempre insidia qualquer caminho espiritual e também a ação pastoral: pensar que os resultados dependem da nossa capacidade de agir e programar. É certo que Deus nos pede uma real colaboração com a sua graça, convidando-nos por conseguinte a investir, no serviço pela causa do Reino, todos os nossos recursos de inteligência e de ação; mas ai de nós, se esquecermos que, “sem Cristo, nada podemos fazer” (cf. Jo 15,5)».

[8] «Os Presbíteros, consagrados pela unção do Espírito Santo e enviados por Cristo, mortificam em si mesmos as obras da carne e se dedicam totalmente ao serviço dos homens, e assim podem avançar na santidade…» (Decreto Presbyterorum Ordinis, n. 12).

[9] É Cristo que passa, n. 137

[10] De fato, mesmo que tenhais milhares de educadores em Cristo, não tendes muitos pais. Pois fui eu que […] vos gerei no Cristo Jesus (1 Cor 4,15).

[11] «Sempre houve ignorância. Mas hoje em dia a ignorância mais brutal em matérias de fé e de moral disfarça-se, por vezes, com altissonantes nomes aparentemente teológicos. Por isso, o mandato de Cristo aos Apóstolos cobra uma premente atualidade: Ide, e instruí todas as gentes (Mt 8,19)» (São Josemaria Escrivá, Amar a Igreja, Quadrante 2004, p. 69).

[12] Entende-se, por isso, o tom categórico com que a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, no n. 43, afirma referindo-se aos seminaristas: «Sem uma oportuna formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento»

[13] São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 180

[14] Cf. Congregação para o Clero, O Presbítero, mestre da Palavra,ministro dos Sacramentos e Guia da comunidade, em vista do terceiro milênio, cap. II, n.2