Prof. Dr. André Marcelo M. Soares
O debate sobre eutanásia tem recebido destaque da imprensa e a atenção de vários profissionais da saúde, além de despertar o interesse de membros dos Poderes Legislativo e Judiciário. A expressão morrer com dignidade se transformou num slogan confuso. De um lado, é proclamado por grupos e movimentos favoráveis ao desligamento de aparelhos que mantém vivo um paciente. De outro, é defendido por aqueles que, contra a transformação da pessoa humana em mero objeto, se colocam contra o prolongamento abusivo da vida humana através de tratamentos fúteis. Como se pode observar, há, para a mesma definição, não só duas, mas uma variedade de significados. Neste sentido, é necessário afirmar que o termo eutanásia (do grego boa morte, que também pode significar morrer com dignidade ou morrer em paz e sem dor) é ambíguo e inclui situações distintas e, muitas vezes, diametralmente opostas. Alguns, por exemplo, incluem no entendimento sobre eutanásia atos que, embora apresentem um desfecho semelhante, são conceitual e clinicamente distintos. Assim, pode-se chegar a identificar como eutanásia tanto a não aplicação de um tratamento como a suspensão deliberada dos meios utilizados para manter um paciente vivo.
Justamente por apresentar valorações ética e jurídica distintas, é necessário empreender um esforço para chegar o mais perto possível de uma definição mais clara e menos equivocada de eutanásia. A Encíclica Evangelium Vitae a define assim:
Uma ação ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento. A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregados (n. 65).
Atualmente, muitas pessoas, inclusive cristãos, acreditando defender ideais de humanidade e misericórdia, acabam caindo na armadilha criada pela multiplicação de terminologias. Os próprios meios de comunicação social têm contribuído para a difusão de equívocos cada vez mais complexos. O fator econômico também é um elemento importante utilizado na defesa da eutanásia. Algumas instituições e alguns profissionais da saúde acreditam que seria mais eficaz, do ponto de vista financeiro, limitar o uso dos recursos terapêuticos aos pacientes com maior possibilidade de recuperação. Em outras palavras, por trás da defesa de uma morte digna e sem dor encontra-se a intenção de eliminar da prática clínica e do cuidado a “beneficência sem retorno” e, com isso, evitar custos desnecessários para o Estado e para as empresas particulares de saúde.
Do ponto de vista moral, a eutanásia é totalmente condenável. Mas é importante observar que também a distanásia é também condenável. Ambas possuem em comum o fato de desviar a morte de seu curso natural. Enquanto a eutanásia antecipa a morte, a distanásia prorroga sua chegada. As duas encontram-se em extremidades opostas. Entre elas, encontra-se a ortotanásia. Nesta linha de pensamento, situam-se os cuidados paliativos ou medicina paliativa.
De acordo com a Evangelium Vitae,
Nestas situações quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes (Evangelium Vitae n. 65 ).
Até o início do século XX, o médico dispunha de muito poucos recursos terapêuticos efetivos. A era dos antibióticos só tem início no final da década de 1930, com o advento da penicilina. O suporte respiratório mecânico, como conhecemos hoje, tem como marco a epidemia de poliomielite em Copenhague, por volta de 1952. A desfibrilação cardíaca (choque elétrico no tórax para reverter a parada cardíaca) e as Uunidades de Tratamento Intensivo (UTI) também só aparecem na segunda metade do século XX, no início da década de 1960. Sendo assim, não dispondo de outros recursos, procuravam os médicos estar junto dos seus pacientes, aliviando a dor e outros sintomas, dando conforto psicológico e espiritual. O médico assumia uma função sacerdotal. Assim diz o primeiro Código de Ética Médica brasileiro, publicado em 1867: “Para ser ministro da esperança e conforto para seus doentes, é preciso que o médico alente o espírito que desfalece, suavize o leito de morte, reanime a vida que expira e reaja contra a influência deprimente destas moléstias…“.
A visão médica do sofrimento começa a mudar em meados do século XX. Com a introdução dos cuidados intensivos, a Medicina declara guerra contra a doença e a morte. Isto fica claro no Código de Ética Médica de 1931: “… um dos propósitos mais sublimes da Medicina é sempre conservar e prolongar a vida“. Observa-se a mudança de paradigma da Medicina, que passa a dar ênfase progressiva a esfera científico-tecnológico do cuidado. Surge daí uma competição com a morte e um esforço desmedido de prolongar, ao máximo e a qualquer preço, os sinais vitais. Este é o processo intimamente relacionado à distanásia. Em alguns casos, de modo especial nas UTIs, acaba ocorrendo o inverso: ao invés de prolongar a vida, prolonga-se o processo da morte.
A proximidade à morte não deve privar o enfermo de seu protagonismo. Como lembra a Evangelium Vitae: “quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus” (n. 65). Isto não significa, entretanto, dar ao enfermo o direito de solicitar procedimentos de eutanásia. Consciente da frivolidade de seu tratamento, o enfermo tem o direito de prosseguir com meios paliativos, aguardando o curso natural da própria vida.
Tal como a eutanásia, a distanásia é irracional e eticamente reprovável. Criar situações nas quais se prolonga quantitativamente a existência de um enfermo, às custas de obstinação terapêutica, é inaceitável. A morte de um paciente nem sempre representa o fracasso de um médico; o verdadeiro fracasso é impor a alguém uma morte desumanizada. É legitimo morrer dignamente. O que não é legítimo é antecipar ou retardar o processo de morte. Neste sentido, tanto a eutanásia como a distanásia são igualmente repudiáveis.
Filósofo, mestre e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA – Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).