Comentário Exegético – XXXIII Domingo do Tempo Comum – Ano A

EPÍSTOLA (1Ts 5, 1-6)

0 DIA DO SENHOR

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

A afirmação da proximidade da Parousia nos leva facilmente a pensar na sua urgência e em consequência à possibilidade de calcular exatamente o momento preciso da mesma. Paulo resolve a questão em nível de princípios: o momento não pode ser conhecido. O importante é viver como filhos da luz, de modo que é indiferente o momento no qual a gente é chamada a dar conta dos seus atos. Os cristãos nada têm a temer porque vivem na luz do evangelho e não na escuridão da infidelidade. Deus não quer que ninguém pereça; e Cristo morreu para que vivamos como filhos de Deus no caminho da salvação. Porém é necessário se manter vigilantes e sóbrios para ressistir à carne e ao demônio.

O DIA DO SENHOR: Porém, acerca dos tempos e das circunstâncias correspondentes, irmãos, não tendes necessidade de que vos escrevamos (1). Porque vós mesmos, de modo certo, conheceis que o dia do Senhor virá assim como ladrão, de noite (2). De tempóribus autem et moméntis, fratres, non indigétis ut scribámus vobis; ipsi enim diligénter scitis quia dies Dómini, sicut fur in nocte, ita véniet. sicut fur in nocte, ita véniet.

DOS TEMPOS [kaipön<5550>=de temporibus]. O plural indica que não existe um tempo único, mas uma série de eventos, ou um tempo prolongado, como vemos em At 1, 7: Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder. A palavra tempo está seguida por CIRCUNSTÂNCIAS [kairön<2540> =momentis]. Kairos é um momento, um período de tempo, um tempo favorável, uma oportunidade, um tempo determinado ou fixo, os últimos tempos. Pelo que corresponde as circunstâncias podemos citar  Mt 24:45: Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Ou como diz Lc 20, 10: Quando chegou a época das vindimas, mandou um criado aos camponeses para pagarem a sua parte do fruto. Como vemos pelos textos citados, podemos substituir tempo por época ou circunstância. E Paulo diz que não tem necessidade de lhes escrever, pois todos sabem que não existe uma data fixa. DIA DO SENHOR: É uma expressão tomada dos profetas do AT que o chamam de yom appou [=ëmera orgës autou=dies furoris sui=dia de sua ira] (Lm 2,1). Também lemos em Is 13:8: Eles estão desmoralizados, apanhados pelo terror e pela angústia. Torcem-se como a mulher que dá à luz. Olham uns para os outros aterrados, com os rostos da cor do fogo e 9: Eis que vem o dia do SENHOR, horrendo, com furor e ira ardente, para por a terra em assolação, e dela destruir os pecadores. Como vemos o dia do Senhor não é necessariamente o dia final de um novo céu e uma nova terra. É o dia do juízo sobre uma nação, como Babilônia, referida no texto anterior de Isaías, e na qual a intervenção divina castiga o pecado. Textos do NT: Temos em At 2, 20: O sol se converterá em trevas. E a lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor. Pedro cita aqui uma profecia de Joel 2, 2-3 em que O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do SENHOR [yom Yahveh=ëmera Kiriou=dies Domini]. Como vemos, esse dia não é o final dos tempos, senão o final de uma época determinada, que pode ser o dia de Pentecostes em Atos, acima citado, ou o dia da destruição de Jerusalém, na tradição paulina. Os elementos apocalipticos são tomados dos que precederam à epifania do Sinai, para indicar que realmente todos poderiam ver a presença real de Deus e de sua ira. Para Paulo, falando do incestuoso, parece que o dia do Senhor é o dia da morte, pois escreve em 1 Cor 5, 5: Seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus.

REPENTINO: Quando disserem: paz e segurança então lhes sobrevirão repentina destruição como dores de parto havidas no ventre e de modo algum escaparão (3). Cum enim díxerint: Pax et secúritas, tunc repentínus eis supervéniet intéritus, sicut dolor in útero habénti, et non effúgie.

PAZ E SEGURANÇA [eirënë<1515> asfaleia<803> = pax, securitas]. Paulo quer dar a sensação de que no momento menos pensado, quando tudo parece estar tranquilo, virá o dia da ira do Senhor. Dia que será um dia de aflição e angústia, pelas calamidades sobre determinados habitantes e num definido tempo com suas correspondentes circunstâncias: será quando menos se espera. Assim lemos em Lc 17, 27-29, sobre como viria a chegada do Reino de Deus: Comiam, bebiam, casavam, e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio, e os consumiu a todos. Como também da mesma maneira aconteceu nos dias de Ló: Comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam. Mas no dia em que Ló saiu de Sodoma choveu do céu fogo e enxofre, e os consumiu a todos. Por este exemplo de Lucas podemos afirmar que não necessariamente Paulo fala da escatologia final nesta carta, mas pode se referir a um outro evento que determinará uma nova era ou época para o cristianismo nascente, que Jesus declarava ser a vinda do Reino de Deus. Podemos interpretar suas palavras como o fim de Jerusalém e do templo, significando Nova Era em que Jesus seria o Cristo, o Messias, reconhecido como tal pela humanidade. E isso é fato histórico irrefutável. Que para Paulo essa vitória esmagadora de Cristo com o final de todos os tempos é provável, pela falta de orientação cronológica de toda profecia que é descrita como imediata pela visão do profeta no momento de sua revelação. REPENTINA DESTRUIÇÃO [aifnidios<160>olethros <3639>=repentinus interitus] No capítulo 21, Lucas [não esqueçamos que foi o escritor do evangelho de Paulo] escreve estas palavras: Os asseguro que não passará esta geração antes de que suceda todo isso (32). Para dar na continuação, estas advertências: Cuidado de que os vossos corações não se embotem pelo vício, embriaguez e as preocupações da vida, e de repente caia de improviso sobre vocês este dia (34). E segundo o evangelista Jesus afirma desse tempo como sendo uma época de horror: Homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto as virtudes do céu serão abaladas (21, 26). E termina Lucas advertindo: Vigiai, pois, em todo o tempo, orando, para que sejais dignos de evitar todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar em pé diante do Filho do homem (36). Estar em pé como vencedores  e não prostrados para serem pisados como vencidos (Sl 7,5). Segundo os exegetas modernos como o Pe. Manuel de Tuya, afirmam que em Marcos (cap 13) e Lucas (cap 17) não existe alusão ao final dos tempos no discurso escatológico de Jesus. Porém, Mateus aproveita o mesmo para declarar o juízo final no capítulo 25. O silêncio de João indica que a profecia de Jesus estava já cumprida na época da escrita de seu evangelho. Tudo confirma que tanto Lucas como Marcos escreveram cuidadosamente as palavras de Jesus e que Mateus, com esse seu espírito recopilador de catequista, escreveu o juízo final como uma apostila ao dia profético do Senhor sobre a destruição de Jerusalém. Terminemos, deixando falar o magistério eclesiástico no seu novo catecismo: 1) Haverá uma ressurreição de todos os mortos, justos e pecadores (At 24, 15). 2) Estes irão a um castigo eterno e os justos a uma vida eterna (Mt 25, 12+). 3) O juízo final evidenciará que a justiça de Deus triunfa sobre todas as injustiças e que seu amor é mais forte do que a morte (Catechesi tradendae 8,6). 4) Haverá, então, novos céus e nova terra (2 Pd 3, 13). 5) Porém, ignoramos o momento desta consumação dos tempos (ver números 1038 a 1050).

DORES DE PARTO: É uma expressão clássica, já dos tempos de Jeremias: Porventura não te tomarão as dores, como à mulher que está de parto? (13,21),  ao declarar a ruína de Judá. No NT temos as palavras de Jesus na última cena que compara a tristeza dos apóstolos após a separação dEle com a da mulher, quando está para dar à luz: sente tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois de ter dado à luz a criança, já não se lembra da aflição, pelo prazer de haver nascido um homem no mundo (Jo 16, 21). E será Paulo quem compara seus trabalhos para a conversão dos gálatas com o parto doloroso de uma mulher (Gl 4, 19). CONCLUSÃO: Unicamente sabemos uma coisa certa: que esse dia não poderá ser conhecido de antemão. Virá como ladrão na noite. Do resto, podemos dizer que é do gênero apocalíptico, exagerado e simbólico, para indicar a presença extraordinária do Criador ou do Senhor Jesus e chamar a atenção dos que escutam ou leem as palavras do texto.

FILHOS DA LUZ: Pois todos vós filhos de luz sois e filhos de (o) dia. Não somos d(a) noite nem d(a) escuridão (5). Omnes enim vos fílii lucis estis et fílii diéi: non sumus noctis neque tenebrárum. O apóstolo tem em mente a fé como uma luz no meio das trevas do paganismo e por isso chama de filhos da luz aos convertidos. Paulo segue diretamente as palavras de Jesus na festa das luzes: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida (Jo 8,12). Dessas palavras se faz eco o apóstolo em Rm 13, 12-13: A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos, pois, as obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz. Andemos honestamente, como de dia; não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja. Parece que a luz era símbolo comum entre os membros da primitiva Igreja, porque encontramos em 1 Jo 2, 8 a  mesma ideia: Vos escrevo um mandamento novo, que é verdadeiro nele e em vós; porque vão passando as trevas, e já a verdadeira luz ilumina.

VIGILÂNCIA: Portanto, não durmamos como os demais, mas vigiemos e estejamos sóbrios (6). Igitur non dormiámus sicut et céteri, sed vigilémus et sóbrii simus. Paulo aqui insinua a vida despreocupada dos gregos e romanos que passavam a noite em banquetes e bebedeiras e durante o dia, dormiam na maior parte. Na parábola das dez virgens Jesus narra como tardando o noivo ficaram todas com sono e adormeceram (Mt 25, 5). Daí que recomende em 25:13 como moral da parábola: Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do homem há de vir. Como colofão, citemos as palavras de Paulo na carta aos romanos, escrita alguns anos depois: E isto digo, conhecendo o tempo, que já é hora de despertarmos do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé. A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos, pois, as obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz. Andemos honestamente, como de dia; não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja (Rm 13, 11-13). São palavras que servem de admoestação para todos os tempos e de modo especial para estes modernos, em que o bem-estar tem substituído a fé dos nossos ancestrais.

EVANGELHO (Mt 25, 14-30)

LUGAR PARALELO: Lc 12, 19-27

PARÁBOLA DOS TALENTOS

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: À parte alguns dados significativos da parábola, que são alegóricos, a maioria dos outros são teologicamente nulos, ou sem significado, e refletem unicamente a cultura do tempo. Do contrário, poderíamos ressaltar da parábola, que Deus aprova juros e bancos e que visa o lucro como um empreendedor qualquer, dando uma palmada de aprovação a um capitalismo liberal e selvagem. Porém a intenção da parábola é completamente diferente e é essa intenção que deve conduzir nossa hermenêutica: Durante a ausência do Senhor [Jesus], os discípulos não podem permanecer de braços cruzados, mas devem exercitar seus talentos [qualidades] de modo a aumentar o número de discípulos, trabalhando para estender o Reino, como faria um mordomo que recebesse um capital de seu senhor. Quem cruzasse os braços, não estaria cumprindo a vontade do senhor, durante a ausência deste. Vamos agora pensar como pensavam os contemporâneos de Jesus, sabendo dos costumes e interpretando as mesmas com a ajuda da cultura atual.

A AUSÊNCIA: Pois do modo como um homem, deixando o país, chamou os seus escravos e entregou-lhes os seus bens (14). Sicut enim homo proficiscens vocavit servos suos et tradidit illis bona sua. A parábola começa com um homem apodëmön [que emigra ou se ausenta a um país longínquo]. Ele reparte sua fortuna entre três de seus escravos [doulos<1401>=servus]. A palavra doulos implicava uma dependência absoluta de outra pessoa: o dono. O escravo, nem sempre era tratado de modo bárbaro e, muitas vezes, era tratado de modo humano. Para um israelita, o período de escravidão estava limitado a 6 anos (Êx 21,2). Muitos dos escravos, no oriente próximo, eram prisioneiros de guerra, que eram separados em três partes: uma, como servidores do templo; outra, entregues aos líderes militares; e a maior parte, para o serviço do rei. Os súditos de um rei são seus escravos (Gn 21,25 e Êx 7, 28) e todos os que estão ao serviço do rei são seus escravos (Gn 40, 20), inclusive os seus oficiais (1 Sm 19, 1 e 2 Rs 22, 12). A palavra abed refere-se tanto a um servo de Deus (Dn 3, 93{26}) quanto a um servo de um rei humano (Dn 2,4;7). Já no início, Deus deu ao homem o poder de controlar o mundo [=domínio da terra], ou seja, de substituí-Lo, submetendo os animais (Gn 1,27-28), porque formou o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,26). Jesus formou seus discípulos também à sua imagem e semelhança: Quem vos ouve a mim ouve (Lc 10,16) de modo que devem anunciar os fatos de forma semelhante aos enviados pelo Batista: Deviam referir a João o que tinham visto e ouvido (Mt 11,4). Assim, os discípulos de Cristo foram constituídos em testemunhas (Lc 1,2). Por isso, durante a ausência de Jesus, eles devem continuar o trabalho do Mestre para expansão do Reino. Os talentos recebidos são a memória fiel do visto e ouvido.

A PARTILHA: Antes de partir por um longo período de tempo (19), repartiu seus bens entre três de seus servos. No tempo de Jesus a administração dos bens era coisa dos escravos, ou dos libertos. Os cidadãos livres sentir-se-iam humilhados em trabalhar como comerciantes ou artesãos. Durante essa longa ausência do senhor, a conduta dos servos foi diversa.

OS BENS: Uparchonta<5224>, que é traduzido na Vulgata como bona, plural de bonum são os bens, possessões ou riquezas. O motivo de dividi-las é provável que o dono não confiasse muito num único administrador. Caso a administração fosse um desastre, o dono só podia botar no xadrez o culpado e vender seus familiares como escravos.

A REPARTIÇÃO: Então, a um deu cinco talentos, mas a outro dois, e a outro, pois, um; a cada um segundo sua própria capacidade. E imediatamente foi ao estrangeiro (15). Et uni dedit quinque talenta alii autem duo alii vero unum unicuique secundum propriam virtutem et profectus est statim.

TALENTO <5997>: A palavra grega significava, originalmente, pratos de uma balança, até, finalmente, designar um peso determinado, que, nos tempos de Jesus, equivalia a 35 ou 45 Kg de prata, porque o ouro era tão escasso que não se computava com esse padrão, demasiado alto para o mesmo. O talento era uma medida de peso, a maior de todas. De modo que falar de talentos, em dinheiro, era sempre referido à prata. Para se ter uma ideia, a prata de um dólar tem um peso de 25 g. Era o valor do antigo duro espanhol. O talento, pois, equivalia a 1400 ou 1800 dólares de prata. É uma soma considerável de dinheiro. Na realidade, o peso básico entre os orientais era o siclo [shekel] equivalente a 10 ou 12 gramas de prata. Os valores mais altos eram a mina, equivalente a 50 siclos (Ez 45, 12) e o talento [kikkar] (Êx 28, 25-26) valendo 3 mil siclos. Portanto, um talento equivalia a 60 minas. Como moedas correntes, temos o denário ou dracma, e o didracma [dois dracmas], este último valendo a metade de um siclo. O denário [1/4 de siclo] era o salário de um dia. Logo um talento equivalia a 12 mil salários, ou seja, aproximadamente 32 anos de trabalho. Entre os romanos a moeda mais comum era o sextertius [sextércio], inicialmente de prata e logo de bronze, cujo valor era aproximadamente um quarto de denário, ou 2,5 asses. O salário médio da época [séc I e II dC] era de 700 ou 2 mil sextércios/ano; ou seja, meio denário a um pouco mais de um denário por dia. As fortunas médias de Roma se calculavam na base de 70 talentos.

CAPACIDADE: o grego fala de dynamis <1411>, força física no sentido geral e capacidade financeira no sentido de realizar empreendimentos monetários. Em Lucas 19, 13, serão dez os servos e cada um recebe uma mina [aproximadamente um ano de trabalho].

AS CONDUTAS DIVERSAS: Então, tendo saído, o que recebeu cinco talentos trabalhou com eles e fez [ganhou] outros cinco talentos (16). Do mesmo modo também, o dos dois, ganhou ele, igualmente, outros dois (17). Mas aquele que recebeu um, tendo-se afastado, cavou na terra e escondeu a prata do seu senhor (18). Abiit autem qui quinque talenta acceperat et operatus est in eis et lucratus est alia quinque. similiter qui duo acceperat lucratus est alia duo. Qui autem unum acceperat abiens fodit in terra et abscondit pecuniam domini sui.

AS DUAS PRIMEIRAS: Segundo a intenção da parábola, as duas condutas dos que receberam maior quantidade de bens do senhor foram idênticas; e as respostas do senhor, as mesmas para os dois. Conseguiram um lucro de 100% aumentando em dobro a quantidade recebida. Por isso as palavras do senhor foram igualmente laudatórias.

A TERCEIRA CONDUTA: O que recebeu um único talento o escondeu após cavar um buraco no chão. Era o costume da época em tempos de guerra em que os saqueadores eram frequentes e não existiam meios para guardar melhor os bens adquiridos.

O RETORNO: Então, após um grande [intervalo de] tempo, chega o senhor daqueles escravos e tem uma fala com eles (19). Post multum vero temporis venit dominus servorum illorum et posuit rationem cum eis. O presente histórico não é conservado na Vulgata, mas parece mais próprio da narração da parábola. Chega o dono e imediatamente chama os servos para saber o que foi feito com o dinheiro emprestado.

O PRIMEIRO: Assim, tendo se aproximado aquele que recebeu cinco talentos, apresentou outros cinco talentos, dizendo: Senhor, tu me deste cinco talentos. Vede, ganhei outros cinco talentos sobre eles (20). Diz-lhe o seu senhor: Ótimo, escravo bom e confiável, sobre poucas coisas foste fiel! Sobre muitas coisas te constituirei. Entra dentro do gozo do teu senhor (21).  Et accedens qui quinque talenta acceperat obtulit alia quinque talenta dicens domine quinque talenta mihi tradidisti ecce alia quinque superlucratus sum. Ait illi dominus eius euge serve bone et fidelis quia super pauca fuisti fidelis supra multa te constituam intra in gaudium domini tui. Ótimo: É a tradução do grego Eu [=bom, bem feito] que a Vulgata traduz por euge como interjeição de aplauso e parabéns, que hoje traduziríamos por ótimo, perfeito, que também podemos usar em português como OK, aprovado, e que em latim tem o mesmo significado. Pistós <4193> significa confiável em quem se pode acreditar. Daí provém a palavra pístis fé, confiança. Foste fiel em poucas coisas [coisas pequenas] sobre muitas te constituirei administrador. Entra no gozo [chara <5479> grego e gaudium latino] de teu senhor. Como se dissesse: entra a formar parte dos validos que eu estimo com prazer como amigos. Podemos ver nesta expressão outra interpretação: Todo escravo [doulos] era alforriado quando admitido à mesa do dono e com ele comia. É possível que esta seja a melhor interpretação da frase que estudamos.

O SEGUNDO: Tendo, pois, se aproximado também o que tinha recebido os dois talentos disse: Senhor, dois talentos me entregaste; vede, ganhei outros dois talentos além deles (22). Diz-lhe o seu senhor: Ótimo, escravo bom e fiel! Sobre poucas coisas foste fiel; sobre muitas coisas te constituirei. Entra no gozo de teu senhor (23).  Accessit autem et qui duo talenta acceperat et ait domine duo talenta tradidisti mihi ecce alia duo lucratus sum. Ait illi dominus eius euge serve bone et fidelis quia super pauca fuisti fidelis supra multa te constituam intra in gaudium domini tui. Os dois versículos deste segundo caso são exatamente cópia do primeiro, salvo o número de talentos e o personagem que com eles trabalhou. Em ambos os casos, o rédito é máximo: 100%.

O TERCEIRO: Tendo também se aproximado o que recebeu um único talento, disse: Senhor te conheço como um homem duro, ceifando onde não semeaste e recolhendo onde não espalhaste (24). E, temendo, tendo me afastado, ocultei o talento na terra. Eis, tens o teu (25). Respondendo, então, o seu Senhor disse-lhe: Escravo perverso e preguiçoso! Conhecias que ceifo onde não semeei e recolho onde não espalhei (26). Era justo, pois, que tu entregasses a minha prata aos cambistas e, chegando eu, receberia o meu com juros (27). And the one who received the one talent also coming up, he said, Lord, I knew you, that you are a hard man, reaping where you did not sow, and gathering where you did not scatter. And being afraid, going away, I hid your talent in the earth. Behold, you have yours. Respondens autem dominus eius dixit ei serve male et piger sciebas quia meto ubi non semino et congrego ubi non sparsi.  Oportuit ergo te mittere pecuniam meam nummulariis et veniens ego recepissem utique quod meum est cum usura. Quando quem recebeu um único talento, o devolveu íntegro, disse: Senhor, conhecendo-te que és um homem inflexível [skleros <4642>, duro, exigente], que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste [as sementes]. Do ponto de vista das relações humanas, a desculpa do terceiro servo é insolente, se não politicamente descabida. Em vez de louvar, critica duramente atitudes negativas ou pouco recomendáveis do senhor. É uma justificação, por meio do medo, de sua preguiça e indolência. Sempre os pecadores, de todos os tempos, buscam a escusa que os aparta de culpabilidade. Adão se escuda em Eva e esta na serpente. E nosso homem, na inflexibilidade de seu senhor. Disse que foi este medo que o levou a uma conduta, que o amo censura como péssima e negligente; pois se sabia que o amo ia esperar dele frutos não semeados, por que não cuidou de entregar o dinheiro aos cambistas [trapezites <5133>=nummularii] para que na minha vinda o recebesse com usura [tokos <5110> grego e usura latina].

BANCOS E JUROS: Desde aproximadamente o ano 100 a. C. existiam os bancos. Na realidade, o banco era uma mesa, uma banca. Daí seu nome. Havia necessidade de troca de moedas, especialmente no templo. Daí os cambistas, que tinham como lugar de trabalho uma banca ou mesa. Ao que parece, eles cobravam preços excessivos e Jesus os comparou a verdadeiros ladrões (Mt 21,12 e Jo 2,14). Os banqueiros do tempo de Jesus também recebiam empréstimos, e investimentos, pagando juros sobre o dinheiro depositado a eles. Os juros dos empréstimos eram de 12 a 13 % se eram de emergência, e até 50% ao ano. Existiam também poupanças e faziam-se hipotecas e existiam cartas de crédito. Em Lv 25,36 lemos: Não aufiras [de teu irmão] nem juros, nem lucro; é assim que terás o temor de teu Deus e teu irmão poderá sobreviver a teu lado. O empréstimo com juros é permitido em Dt 23,21: A um estrangeiro farás empréstimo a juros; mas não a teu irmão. Em Pr 28, 8: Quem aumenta seus bens por juros e usura, acumula-os para os que têm pena dos indefesos [=ou seja, não lhe trarão proveito e voltarão para os necessitados]. Ez 18,8 descreve o homem justo como aquele que não empresta a juros e não pratica a usura, afasta a mão da injustiça e pratica um julgamento verdadeiro. Assim, os cambistas e os bancos deveriam ter sido a resposta e não o buraco no chão sem proveito nenhum para o senhor. Não era necessário, em semelhante situação, entregar o dinheiro a homens, nem ser enterrado na terra que o assegurava intacto. Logicamente Jesus não produz um juízo formal sobre a usura; mas o que interessava era a conduta do servo, reprovável como administrador da confiança do seu senhor. Logicamente ele é reprovado, por sua negligência em procurar ganhos certos com o capital recebido.

O PRÊMIO: Tomai, pois, dele o talento e dai àquele que tem os dez talentos (28). Pois a todo que tem, dar-se-á e estará em abundância; mas daquele que não tem até o que tem será tomado dele (29). Tollite itaque ab eo talentum et date ei qui habet decem talenta. Omni enim habenti dabitur et abundabit ei autem qui non habet et quod videtur habere auferetur ab eo. O receptor era o primeiro servo que tinha aumentado seu capital até dez talentos. E Jesus afirma a razão desta decisão com um provérbio, aparentemente comum, na época: Ao que tudo tem se lhe dará e terá em abundância; mas ao que não tem até o [pouco] que tem lhe será tirado. A vulgata traduz o que não tem do grego como: o que parece que tem [quod videtur habere] (29). É a mesma frase que Jesus disse anteriormente em Mt 13,12 respondendo a falta de resposta às parábolas do reino por parte dos seus ouvintes. Marcos 4, 25 traz a mesma afirmação de Jesus e no mesmo contexto. Lucas (8, 18) acrescenta o que parece que tem, que a vulgata traz como expressão particular no evangelho de hoje. Lucas como Mateus traz de novo a expressão em 19, 26 com motivo de uma parábola semelhante que tem como protagonista um rei e que 10 servos recebem, no lugar de talentos, cada um, uma mina para negociar. A mina era 1/60 de um talento, ou seja, 30 dólares de prata. O primeiro e segundo servos ganham 10 e 5 minas respectivamente e o terceiro a guarda embrulhada num lenço. A este também repudia o rei, terminando com a frase em questão: Pois vos digo que a todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem, lhe será tirado. Evidentemente, no caso das duas parábolas, podemos interpretar a frase como estando materialmente correta com a atuação do amo ou do rei (Lc): ao que realmente tem, porque o ganhou, se dará mais e ao que não ganhou [não tem ganho] até o que tinha será tirado. No caso dos ouvintes, o que tinham era a eleição como povo escolhido, de modo que as palavras de Jahweh eram seu guia. Os que ouviram com atenção e deram fruto terão mais: o seu novo estado será mais perfeito que o anterior. Mas os que não quiseram ouvir até o que tinham como povo eleito, lhes será tirado. João em 15, 2 dirá que o sarmento que não produz fruto será cortado e o sarmento que produz fruto será podado para que produza mais fruto ainda. É neste sentido que devemos entender as últimas palavras de Jesus. Delas depende toda a interpretação da parábola. A parábola, justamente, ensina que não é só Jesus [evidentemente o amo ou rei], mas seus servos, apóstolos de modo especial, que têm o dever de trabalhar pela difusão do Reino. Chega a hora de render contas e logicamente os esforçados são remunerados, conforme suas obras, e os que nada fizeram, como o servo preguiçoso, serão condenados.

A CONDENAÇÃO: E ao escravo indolente lançai nas trevas de fora. Ali haverá pranto e ranger de dentes (30). Et inutilem servum eicite in tenebras exteriores illic erit fletus et stridor dentium. O servo que não trabalhou [achreios <888>=inútil dizem o latim e as traduções], que nada fez, recebe um castigo que já fora dado aos que não admitiram Jesus entre os que aparentemente eram os herdeiros do Reino, ou filhos de Israel, que serão lançados nas trevas, lá fora, onde haverá choro e ranger de dentes (Mt 8, 12). Lucas trará em 13, 28 o mesmo dito de Jesus sobre a rejeição dos judeus e a entrada dos gentios no Reino. O castigo da fornalha acesa está unido a esse choro e ranger de dentes tanto em Mt 13, 42 como em 13, 50, em ambos os casos indicando a sorte dos que cometem a iniquidade (13, 41) e os maus (13, 50). A essas trevas exteriores será lançado o conviva mal vestido (Mt 22, 13) onde haverá choro e ranger de dentes. É também Mateus em 24, 51 que diz que o choro e ranger de dentes forma parte da sorte dos hipócritas, com os quais comparte destino o servo mau. Finalmente, o servo inútil de hoje será lançado nas trevas, onde encontrará o choro e ranger de dentes (25, 30). Que significam estas frases, evidentemente, mais simbólicas que reais? Logicamente, fora, nas trevas, é uma expressão tomada do banquete em que fora, era noite escura (Mt 22, 13). Quanto aos judeus que ficarão nas trevas em Mt 8, 13 e Lc 13, 28 são trevas do entendimento ou do coração, como diriam os antigos,  pois vendo não veem e ouvindo não ouvem (Mc 4, 12). O choro e o ranger de dentes em si mesmo, é, segundo o pensar dos judeus, próprio dos demônios no inferno, pois devido ao fracasso na revolta de Korah (Nm cap 16 e 17), na qual eles, os demônios, foram os bajuladores desses rebeldes e tiveram que recolhê-los no tumulto e indignação do inferno, onde os maus são um tormento como eram os carrascos no xadrez, segundo o Targum [paráfrase aramaica dos textos hebraicos], comentando Jó 3,17-18. Os comentários sobre o ranger de dentes, falam dos remorsos da consciência, torturas da mente, sentido de tribulação inexpressível, em que os malvados cairão, acompanhados pela raiva e o desespero. Ranger os dentes contra alguém como em Sl 35, 16 e At 7, 54 é o mesmo que se sentir estar cheio de ira e cólera, e por vezes de indignação e desprezo, como no caso de Davi em Sl 35, 16 e de Estêvão em At 7,54. É uma demonstração do ódio e aversão dos inimigos ou adversários, que estão como bestas selvagens dispostas a triturar os ossos dos quais buscam a ruína e destruição (ver comentário empresbiteros.org.br exegese domingo XXVIII parágrafo Trevas, Choro e Ranger de Dentes).

PISTAS: 1) A parábola forma parte das advertências de Jesus para os seus discípulos de como se comportar durante a ausência do Mestre. A parábola aponta de modo especial ao momento de dar conta do trabalho feito como administrador de certa fortuna. O trabalhador que não fez nada é condenado a uma expulsão definitiva. Daí o lamento e o ranger de dentes, indicando ira (Jó 16, 9), raiva (Sl 112, 10), furor (Lm 2, 16), irritação (At 7, 54). É o desespero dos que foram totalmente afastados do gozo do Senhor, como são os hipócritas (Mt 24, 51).

2) Quando teremos esse ajuste? Se considerarmos que o ajuste é particular, será na hora da morte de cada um. Mas não podemos descartar um ajuste geral na hora da volta do amo: Seria o caso para essa geração do desastre dos anos 70 com a destruição do templo e da cidade.

3) Porém, pelo contexto que é apocalíptico, e sob a pergunta de Jesus de qual é o servo fiel e prudente de 24, 45, parece que o importante não é o tempo do ajuste mas a conduta dos servos que têm uma incumbência, e que seu dever é cumpri-la com todo o empenho possível e necessário.

4) A parábola é uma alegação indiscutível contra a postura protestante em que só a fé basta, e não existem méritos pessoais. O dono, que evidentemente representa Jesus, dá a cada servo laborioso um prêmio porque foram fiéis. E não duvida em premiar de modo especial o que mais tem, dando a ele o que foi retirado do servo preguiçoso.  A tese evangélica de sola fides, solus Christus, sola gratia, [somente a fé, somente o  Cristo, somente a graça] tira do homem comum qualquer mérito e o que é pior invalida da parte de Deus qualquer prêmio ou misthós [=salário], como lemos em grego, referente às condutas corretas. Como explicar, desse ponto de vista evangélico, a conduta do dono da parábola? E se completamos a parábola de Mateus com sua semelhante em Lucas (19, 12-27), veremos mais clara a incongruência do princípio fundamental protestante. Os dois primeiros servos recebem a recompensa devida às suas ganâncias: dez cidades correspondem a dez minas e cinco às cinco minas obtidas pelo segundo servo.  Além da fé, Jesus exige um trabalho consciencioso com os dons recebidos e em proveito da comunidade, como Mateus anuncia, no que podemos chamar de consequência desta e da parábola das dez virgens.

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