Comentário Exegético – XXXI Domingo do Tempo Comum (Ano C)

EPÍSTOLA (2Ts 1, 11-2,2)

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Escrita desde Corinto, provavelmente no ano 52 e a pouca distância da primeira, com a mentalidade de que a parousia estava próxima. Alguns agitadores mais exaltados afirmavam que o dia da parousia estava tão próximo que era inútil trabalhar. Apoiavam sua teoria em revelações, profecias e até em escritos de Paulo. O fundo da carta é, pois, escatológico; e sem esquecer o seu pensamento sobre a próxima data da parousia, certos sinais devem preceder e ainda não foram manifestos; e, portanto, não havia motivo para a sua iminência. Por outra parte, ninguém pode saber certamente a época da mesma que pode estar relativamente longe dos dias atuais. Nos versículos anteriores aos da epístola de hoje, Paulo louva o comportamento dos tessalonicenses pela paciência no meio das tribulações que a fé dos mesmos trouxe, afirmando que os que a essas aflições contribuíram terão o castigo proporcionado no dia do Senhor. É por isso que Paulo roga pelos fiéis de Tessalônica para que sua fidelidade seja confirmada e acompanhada por boas obras.

ORAÇÃO DE PAULO: Pelo qual, também rogamos sempre por vós para que o nosso Deus vos faça dignos da vocação e complete todo desejo de bondade e obra de fé, em poder (11). In quo étiam orámus semper pro vobis, ut dignétur vos vocatióne sua Deus noster et ímpleat omnem voluntátem bonitátis et opus fídei in virtúte.

ROGAMOS SEMPRE: Não é uma afirmação dogmática, mas uma praxis que é também lugar teológico em que a fé se afirma e confirma. Temos aqui a intercessão dos santos, como oração que sobe como incenso agradável aos olhos de Deus (Ap 5, 8) e que Paulo sempre usa para com os seus convertidos, como em Rm 1, 9-10 ou Ef 1, 16, e de modo especial também para os de Tessalônica na primeira carta: Orando abundantemente dia e noite, para que possamos ver o vosso rosto, e supramos o que falta à vossa fé (3, 10). A praxis é reconhecida como locus theologicus em que se encontra a manifestação de Deus e dentro dessa prática nada melhor que a oração, em cujo cume está precisamente essa união de inteligência e amor em que Deus se manifesta às almas a Ele elevadas em contemplação. A oração pelos irmãos na fé de Cristo é, portanto uma prática recomendável que a igreja usa, especialmente após a consagração na oração eucarística de modo especial. VOCAÇÃO [klësis<2821>=vocatio] A entrada no Reino e a Glória consequente é o chamado [vocação] de Deus segundo 1Ts 2, 12 vocação de todo cristão que espera as riquezas da glória como herança entre os santos ou consagrados de Deus (Ef 1, 18). Essa vocação é um chamado de Deus que escolhe os mais humildes e pobres, segundo a carne e a sabedoria humana (1Cor 1, 26). Vocação universal (1Tm 2, 4) diferente da que Paulo teve, esta uma outra vocação particular: ser ministro do evangelho entre os gentios como refere At 13, 2. No mundo atual se esquece a vocação universal e se dá mais importância a vocação ministerial ou pessoal de determinados membros da Igreja como presbíteros e religiosos. Mas também o matrimônio exige, segundo Paulo, uma vocação particular (1 Cor 7, 17 e 20). Em todos os casos, a oração é necessária para conservar o dom de Deus, assim como a boa conduta, segundo 2 Pd 1, 10.

EM PODER [en dynamei <1411>=in virtute] Em primeiro lugar devemos falar da obra de fé como oposta a obra da Lei; ou, como Paulo diz, a lei da fé (Rm 3, 27) e não a lei das obras (Rm 3, 27). Tudo que leva à justiça da fé, é contrária à justiça da circuncisão (Rm 4, 11). Unicamente em 1 Ts 1,3 fala também Paulo da obra de vossa fé, que neste versículo está qualificada do distintivo de em poder. Segundo Paulo, este poder que nos evangelhos é traduzido por obra milagrosa; é o poder de Deus para salvação (Rm 1, 16), que também recebe o apelativo de poder do Espírito Santo (Rm 15, 13), que obra grandiosos sinais e prodígios (Rm 15, 19). A essa sobrenaturalidade refere-se Paulo quando diz que sua pregação era uma demonstração do espírito e poder (1 Cor 2, 4) e que o Reino de Deus não é na palavra, mas em poder [en dynamei]. Bastam estes exemplos para deduzir que essa fé é a que se manifesta ou obra milagres. Sem oração, é impossível – Paulo afirma- que a fé obre boas obras e que o poder sobrenatural de Deus se manifeste. Esta sobrenaturalidade da obra da fé é assegurada no versículo seguinte, como veremos mais adiante.

A GLORIFICAÇÃO DE CRISTO: De modo que seja glorificado o nome de nosso Senhor Jesus entre vós, e vós nele, segundo a mercê do nosso Deus e (do) Senhor Jesus Cristo (12). ut clarificétur nomen Dómini nostri Iesu Christi in vobis, et vos in illo secúndum grátiam Dei nostri et Dómini Iesu Christi. GLORIFICADO [endoxasthë<1740>=clarificetur] o verbo endoxazomai significa glorificar, honrar, exaltar e, como passivo, em subjuntivo, a melhor tradução é seja exaltado ou glorificado. NOME [onoma<3686>=nomen] está no lugar de pessoa, palavra que foi tomada muito mais tarde como equivalente a sujeito [hypóstasis]. Pessoa [Persona] era a máscara que os autores do teatro ou mimo latino portavam para cobrir o rosto e assim representar os diversos personagens da comédia com um mesmo comediante atuando. SENHOR [kyrios<2962>=dominus] a palavra Kyrios é a tradução dos Setenta do nome Jahveh só (Gn 1,1), ou Jahveh Elohim como vemos em Gn 2, 4, em que o grego traduz Jahveh<03068> Elohim<0430> como Theos e o latim como Dominus Deus. Creio que Jahveh Elohim deveria ser traduzido por o que é ou Vivente dos deuses. Assim o rabi Metzker traduz Jahveh por O ETERNO sendo Jahveh Elohim o ETERNO DEUS. A Bíblia Valera opta por reter o nome hebraico e traduz Jehová Dios (1Sm 25, 29) pela primeira vez. Já em Gn 3, 9 Jahveh Elohim é traduzido pelos Setenta como Kyrios ‘o Theos e daí Dominus Deus da Vulgata. Kyrios é, pois, o Senhor, sendo este o nome do Deus de Israel. Com esse título só [o Senhor] é também nomeado Jesus após a ressurreição, com o qual se situa no mesmo plano de Jahveh ou, se queremos, no plano da divindade. Frequentemente encontramos o Senhor Jesus, como aqui.

A PAROUSIA: Pedimos, pois, a vós irmãos,pela parousia do nosso Senhor Jesus Cristo e de nossa reunião com Ele (2, 1). Para que vós não sejais abalados de vosso entendimento, nem turbados, nem por espírito, nem por palavra, nem por carta como proveniente de nós, como que se estivesse perto o dia do Senhor (2). Rogámus autem vos, fratres, per advéntum Dómini nostri Iesu Christi et nostrae congregatiónis in ipsum. ut non cito moveámini a vestro sensu neque terreámini neque per spíritum neque per sermónem neque per epístolam tanquam per nos missam, quasi instet dies Dómini. PAROUSIA [3952] que a Vulgata traduz por adventum. Parousia é presença, chegada, vinda e advento, ou presença final de Cristo para julgar vivos e mortos, como recitamos no Credo. Neste capítulo, Paulo precavê os tessalonicenses contra a postura de que, como era iminente a vinda de Cristo, não deviam se preocupar de  trabalhar. Paulo declara que antes devia existir uma grande apostasia e a revelação do Anticristo, o homem do pecado, que enganará a muitos declarando-se ser deus (2 Ts 2,3-4). Do qual ele, Paulo, já falou anteriormente (idem 5). Do qual o império romano era impedimento (v.6) e só aparecerá quando o impedimento cessar (v. 7-8). Antes teremos a apostasia, termo que indica abandono, e que neste caso é de sentido religioso. Apostasia da fé, aludida por Jesus Cristo no seu discurso escatológico com esfriamento da caridade e sedução até dos escolhidos se isso fosse possível (Mt 24, 11-12,24 e Lc 18, 8). No Apocalipse também se fala da besta que lutará contra os escolhidos (13, 7-8). Esta apostasia está unida ao homem de pecado. O problema é quando. Paulo confirma a predição de Jesus que implica a pregação do evangelho a todos os povos do mundo (Mt 24, 14) e ao mesmo tempo a aparição do homem de pecado. ANTICRISTO [antichristos<500>=antichristus] não é nome usado por Paulo, mas por João (1Jo 2, 18). A linguagem paulina está inspirada especialmente em Daniel 11, 36, falando de Antíoco, em Isaías do rei da Babilônia (14, 13) e Ezequiel do rei de Tiro (28,2). Não é fácil saber a distinção entre a imagem e a realidade. A expressão sentar-se no templo de Deus (v. 4) pode não ser tomada ao pé da letra, como quem toma os direitos de Deus. Própria de Paulo é a relação entre o Anticristo e Satanás, sendo aquele instrumento deste, como faz o Apocalipse entre a besta e o dragão. Se esse Anticristo é um indivíduo ou uma colectividade, como conjunto das forças do mal, é coisa discutida. É mais provável seja esta última a realidade, pois Paulo diz que já está operando, mas não se manifesta por um obstáculo (2 Ts 2,7). Como Jesus fala de vários falsos profetas e não de um único opositor (Mt 24, 11-24) devemos também entender que a coletividade é mais conforme com a realidade interpretativa. O obstáculo ou impedimento pode ser TO ou ‘O em grego indicando coisa ou pessoa. O grego opta por TO e indica coisa. Tudo que poderemos pensar sobre que coisa seja o impedimento é pura conjetura e nada podemos afirmar com verdadeiro fundamento. Que fosse o império romano é como modelo de autoridade e não como realidade verdadeira e Paulo falaria da autoridade como representada no império para se opor ao mal. Outra suposição é que o impedimento é constituído pelos pregadores evangélicos. Esta teoria tem sua confirmação em Ap 11, 3-10 donde os pregadores evangélicos serão vencidos e mortos pela besta, uma vez terminado seu testemunho. Finalmente, a terceira teoria é que é o anjo Miguel e suas hostes; pois na literatura apocalíptica é este anjo o defensor de Israel, cuja descendência é o povo cristão e que na antiga liturgia era invocado como defensor da Igreja no fim da Missa. A vitória contra Miguel significaria a vitória contra a Igreja. Conclusão: Fala Paulo do fim dos tempos, ou do fim do tempo antigo e triunfo de Cristo como introdutor da nova era cristã? Pois essa vitória seria próxima com a destruição do templo no ano setenta. Pois nunca uma profecia foi dada para um período maior do que uma geração, como disse Jesus (Mt 24, 34). Na realidade, o artigo único TOU precede dois aspectos do final do tempo: a parousia e a reunião com Ele (V.1). São simultâneos ou são eventos diferentes em tempos não concomitantes? Creio que, neste último caso, deveríamos pensar em distâncias de séculos e num final do tempo diferente do fim dos tempos. O versículo 2 continua o dito no versículo primeiro. ABALADOS [saleuthënai<4531>=moveamini] do verbo saleuö com o significado de agitar, sacudir e finalmente, abalar especialmente pelos ventos e o mar. No caso seria melhor traduzir por removidos do que anteriormente pensavam e agora turbados ou perturbados pelas novas teorias, para estarem num estado de agitação mental. Os motivos de semelhante agitação seriam: uma profecia, uma palavra inspirada que poderia ter origem na tradição apostólica, pois no tempo da carta não existiam ainda os escritos evangélicos; e finalmente, uma carta paulina. Esta última refere-se provavelmente a uma carta forjada ou falsificada, coisa frequente naqueles tempos, como vemos em 2 Ts 3, 17-18, carta que Paulo toma a  advertência de assinar de punho e letra. Pois sempre este tema da escatologia tem sido causa de numerosos enganos, como vemos em particular a história dos adventistas desde outubro de 1844, dia assinado por William Miller como dia final. Hoje não faltam profecias sobre a iminência do advento de Cristo, inclusive no mundo católico, que separam sua manifestação do fim dos tempos. Coisa que a própria Escritura parece indicar. Assim, diferentes condições ambientais aparecem entre a grande tribulação em Mt 24, 21, e uma vida de prazer em 24, 38. E até diferentes maneiras da própria manifestação do Senhor para a terra: a voz de ordem dada pelo Senhor, o shofar do anjo e a ressurreição dos mortos (1 Ts 3, 16) e a descrição do cavalo branco do Apocalipse no capítulo 19 que mata os seguidores da besta. Podemos dizer que toda profecia demora em se cumprir por um espaço de muitos anos (Fátima e a 2ª guerra mundial: 22 anos), mas o profeta vê  as coisas tão iminentes que para ele tudo é imediato e é esta a impressão que deixa nos ouvintes ou leitores. Uma coisa é certa: o tempo e a hora serão sempre desconhecidos e o foram até para o próprio Jesus (Mt 24, 36) o que nos dá liberdade para interpretar as passagens escatológicas de modo amplo e não restrito às palavras literais. PERTO: Paulo também não sabe quando, e até parece que não considera o dia como próximo. Faltariam anos ou séculos talvez. DIA DO SENHOR é a intervenção solene de Deus na História que pode se abreviar com naquele dia. Pode ser uma intervenção de ira e  castigo e será o dia do juízo como em Is 2, 11 e Mt 10, 15. Mas também de triunfo e libertação para os bons como em Is 11, 10-11 e Jo 6, 39. No NT, por uma parte é o momento da vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, ou do tempo, como 1 Cor 1, 8, em que Senhor Deus é substituído por Senhor Jesus. Segundo Lucas, essa vinda de Jesus é o triunfo dos seus fiéis (Lc 21, 28) ou como dirá João o Batista recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo (Mt 3, 12). Muitos espertos dizem que dia é um tempo e pode ser mais ou menos longo, ou seja, um período em que o reinado de Cristo será indiscutível, como preparação para seu regresso. Como vemos não existe um determinado evento nem dia para a intervenção solene de Cristo na História, que possamos determinar com certeza.

NOTA: As passagens do AT que tratam do Dia do Senhor, com frequência transmitem um sentido de iminência, cercania e expectação: Uivai, pois está perto o dia do Senhor (Is 13. 6), Isto porque sobre o Dia do Senhor fala-se tanto do que está cerca como do que está longe de se cumprir a profecia. Vezes há em que o dia do Senhor é usado para falar de julgamentos históricos já efetuados, como esse de Is 13, 6-22 ou Ez 30, 2, 19 e outros, em que se trata de juízos do final dos tempos como Joel 2, 30-32. O NT fala dele como o dia da ira, dia do Deus todo-poderoso (Ap 16, 14) e se refere a um futuro quando a ira de Deus se abaterá sobre o Israel incrédulo e o mundo sem fé, que virá de repente, como um ladrão na noite (Mt 24, 43 e 1 Ts 5,2) e devemos estar preparados. Além de ser um tempo de julgamento, será um tempo de salvação porque Deus livrará o remanente de Israel, ao cumprir a promessa de que Israel será salvo (Rm 11, 26). Nesse dia, será o final da história, quando com maravilhoso poder, Deus castigará o mal e cumprirá todas as suas promessas.

EVANGELHO (Lc 19, 1-10)

A CONVERSÃO DE ZAQUEU

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

JERICÓ: E entrado, caminhava por Jericó (1). Et ingressus perambulabat Hiericho. Seu nome pode ser traduzido por lugar de fragrância. Era a cidade das palmeiras na depressão do mar Morto  a vinte e cinco quilômetros no nordeste de Jerusalém. Jericó está a quase 240 m abaixo do nível do mar num clima tropical onde crescem os balsameiros, (Ct 1, 14), o estoraque, os sicômoros (2). As rosas de Jericó eram consideradas extraordinariamente belas (Eclo 24, 14). A primeira vez que aparece seu nome na Bíblia é no  livro dos Números 22,1. Logo aparece em relação ao acampamento dos israelitas em Setim e no livro de Josué que fala de Jericó, fortemente custodiada, mas que foi conquistada através dumas procissões que demoraram sete dias. No último, a procissão deu sete voltas e ao grito dos israelitas os muros da cidade desabaram. (Js 6, 1-25). A data aproximada era o ano 1403 aC. Jericó achava-se nos limites de Benjamim e Efraim. Eglon, rei de Moab, fez dela sua residência na época em que oprimiu os israelitas (Jz 3, 13). Era a cidade reedificada por Hiel (1 Rs 16, 34) onde moravam os discípulos dos profetas para a qual se dirigiu Elias antes de sua ascensão. Eliseu saneou as águas por meio de um punhado de sal, tal como podemos ler no 2 Rs 2, 4-5 e 14-22. Hoje estas águas são chamadas de Ain es-Sulãn. Em Jericó os caldeus se apoderaram de Sedecias (2 Rs 2, 4) e, depois do desterro, alguns dos seus habitantes ajudaram a construir os muros de Jerusalém(Ne 3, 2). Nos tempos dos Macabeus, Báquides, general sírio, levantou os muros de Jericó (1 Mc 9,50). No início do reinado de Herodes, o grande, os romanos saquearam Jericó. Quando Herodes chegou à Palestina teve que lutar na planície de Jericó contra 6 mil inimigos partidários de Antígono; nesta batalha o próprio Herodes foi ferido. Mas logo após o início de seu reinado, Herodes a embeleceu, construindo um palácio e sobre a colina detrás da cidade levantou uma cidadela que chamou Cipro, em honra de sua mãe; também construiu um hipódromo e um anfiteatro, canalizou a água e criou jardins. Cinco dias após a morte de Herodes, um antigo escravo de nome Simão saqueou e incendiou as propriedades. Foi Arquelau, o filho mais velho, que reconstruiu a obra do pai e refez os jardins. Esta será a Jericó que Jesus visitou antes de entrar em Jerusalém na sua última subida. No NT será Mateus que fala de Jericó como a cidade que Jesus atravessou na sua ida a Jerusalém para na saída encontrar os dois cegos a quem curou (Mt 20, 29-34) que Marcos, na entrada, (10, 46-52)e Lucas, na saída, (18, 35-46) reduzem a um só. Jericó estava no caminho do norte em rota para Jerusalém. Era a segunda cidade da Judéia. Jericó era uma cidade, em grande parte, residência de sacerdotes, pois dos 24 grupos de sacerdotes e levitas,  os rabinos falavam de 12 deles estacionados em Jericó. Daí que no exemplo da parábola do samaritano seja um sacerdote e um levita os que aparecem em primeiro lugar (Lc 10, 31-32) Foi destruída pelos romanos em 230 dC. A cidade de Jericó moderna está a 1,5 km ao sudeste da fonte da qual temos antes falado. Encontrou-se nas ruínas da antiga Jericó abundancia de grãos queimados, indicando uma conquista rápida de uma cidade não submetida pela fome, mas após breve assédio. Em 1950 as escavações descobriram muros caídos de dentro para fora; seus fundamentos não tinham sido minados; mas parece que foi um forte terremoto. Também existia evidência de um forte incêndio. Os muros teriam 9 m de altura e a cidade estava tão superpovoada  que havia casas por cima do espaço entre as duas paredes, interna e externa do muro, separadas por 5 m, (Js 2,15). A parede externa ruiu para fora e a segunda parede, com as casas, afundou no espaço vazio. Isso está em conformidade com o que diz a Escritura sobre a conquista da cidade. Estava a pouca distância de Guilgal onde os israelitas fizeram seu primeiro acampamento, celebraram a páscoa e pela primeira vez deixaram de receber o maná. Era a cidade onde Samuel julgava  e onde Saul foi coroado e Davi foi recebido pelo povo após a rebelião de Absalão.

ZAQUEU: E eis um homem de nome chamado Zaqueu, e o qual era chefe dos publicanos e ele era rico (2). Et ecce vir nomine Zaccheus et hic erat princeps publicanorum et ipse dives. O nome significa puro. Era chefe dos publicanos. Até César, parece que os publicanos pertenciam à classe dos optimates ou senadores. Eram ricos que depois da segunda  guerra púnica [contra Cartago], após a batalha de Canas quando o erário estava exausto, adiantaram grandes somas de dinheiro ao Estado, com a condição de serem pagos no fim da guerra. Mais tarde e até o fim da república e nos primeiros anos do Império, eram da classe dos equestres, de modo que équites e publicani eram palavras equivalentes .Ubi publicanus est, ibi aut jus publicum vanum, aut libertas sociis nulla. Onde está o publicano ou o direito público é vão ou a liberdade dos sócios é nula – dirá Tito Lívio. Porém eles não recolhiam os impostos nas províncias, como era a Palestina. Esta parte era feita por uma classe inferior de pessoas, que podiam ser escravos e até provincianos. Este grupo era chamado de família publicanorum [família de publicanos] e nela eram incluídas todas as pessoas que recolhiam o vectigal [taxas]. Entre as quais encontramos decumae [dos campos cultivados que pertenciam ao Estado], portoria [alfândega], scriptura [compra e venda, especialmente de gado] e as receitas das minas e salinas. Sendo Jericó uma cidade limite entre os domínios romanos e os de Herodes Antipas, e ponto de encontro de caravanas nabateas [árabes da época], é lógico que o pedágio ou alfândega era a principal receita de taxas da mesma. O título de archiereos significa que ele era o chefe do qual dependiam os publicani locais. Segundo Lucas, ele era rico. Mas também era de baixa estatura e procurava saber [ver] que tipo de pessoa era Jesus. Mas a multidão o impedia por causa de sua pequena estatura. Daí que subisse a um sicômoro que estava no caminho.

SICÔMORO: E procurava ver (o) Jesus quem era e não podia por causa da turba, pois era de estatura pequena (3). E correndo adiante subiu sobre um sicômoro para vê-lo, porque por ali estava a passar (4). Et quaerebat videre Iesum quis esset et non poterat prae turba quia statura pusillus erat. Et praecurrens ascendit in arborem sycomorum ut videret illum quia inde erat transiturus. O sicômoro era uma figueira especial, própria da região. Os sicômoros aparecem em 1Rs 10, 27, repetidos em 2 Cr 9, 27, como árvores comuns na planície. Segundo a Mishná uma árvore deve estar distanciada da cidade vinte e cinco cúbitos[8m] e se é um sicômoro cinquenta [13 m]. Por isso o relato de Lucas fornece elementos para indicar que o sicômoro estava fora da cidade, e provavelmente na saída da mesma. Caso estivesse dentro da cidade era mais fácil subir ao terraço de uma casa. O sicômoro era uma árvore de tronco forte cujos galhos saem muito próximos do chão de modo a formar uma espécie de banqueta a menos de um metro de altura sendo fácil subir a essa plataforma de onde brotam os ramos e dali, como de um tamborete, poder melhor olhar a multidão. Os frutos do sicômoro são como figos, de cor rosa quando maduros. Enxertos dos galhos são usados para reprodução. Amós era um pastor e também cuidava dos sicômoros, ocupando o mais humilde dos ofícios de seu tempo, já que era um cultivo dos mais esforçados. Parece que, como os egípcios, os hebreus pungiam ou furavam os frutos para impedir que as vespas pudessem aninhar neles; e o faziam com pregos ou garfos fazendo incisões nos figos. A ideia era que assim, saindo o látex, ajudavam o fruto a amadurecer. Na realidade, ao furar o fruto, ele emite etileno que ajuda a amadurecer o fruto. Modernamente o etileno é induzido através de fito- hormonas.  Estavam plantados ao longo dos caminhos para produzir sombra. Sua madeira era preferida pelos egípcios especialmente para os caixões de seus mortos. Nos tempos atuais, é comum ver sicômoros perto das casas por sua sombra com frangos comendo seus frutos que não foram recolhidos pelo dono. Seus frutos são um pouco inferiores em gosto aos figos, embora muito aromáticos. Hoje podem ser vistos ao longo das estradas e das avenidas em Tel Aviv e outras cidades da Palestina. O fruto do sicômoro varia de um máximo de 50 cm em diâmetro até muito menores. Ele aparece em cachos no tronco principal e nos galhos. Sua cortiça e seu látex são usados como remédio contra a tinha e outras doenças da pele. O nome provém do grego e significa figo-amora.

HOJE DEVO HOSPEDAR-ME EM TUA CASA: E como chegasse ao lugar, tendo olhado para cima (o)Jesus o viu e lhe disse: Zaqueu, apressado desce; pois hoje em tua casa é precisso hospedar-me (5). E se dado a pressa, descendeu e o recebeu exultante (6). Et cum venisset ad locum suspiciens Iesus vidit illum et dixit ad eum Zacchee festinans descende quia hodie in domo tua oportet me manere. Et festinans descendit et excepit illum gaudens. O verbo usado é dei [obrigação moral, devido às leis, ou melhor, ao mandato divino que está na providência das coisas]. A estadia de Jesus em casa de Zaqueu é para ficar um dia inteiro, não unicamente para um banquete ou jantar noturno. O mais admirável do caso é que é o próprio Jesus quem se auto convida. A razão desse convite é que Deus o quer. Logo, o resultado dará a razão a Jesus: o caso constitui um claro exemplo da visita do Salvador que poderá exclamar: Hoje a salvação foi feita nesta casa. Por isso Zaqueu desceu depressa e hospedou Jesus em sua casa com alegria.

A MURMURAÇÃO: E como vissem, todos murmuravam dizendo que junto a um homem pecador entrou para se hospedar (7). Et cum viderent omnes murmurabant dicentes quod ad hominem peccatorem devertisset et cum viderent omnes murmurabant dicentes quod ad hominem peccatorem devertisset. Todos os que viram o espetáculo murmuravam dizendo: É em casa de um homem pecador que se hospeda. Chamo a atenção que diz homem pecador e não simplesmente pecador, exatamente como Pedro a si mesmo se declara quando da pesca milagrosa (Lc 5, 8). Porque pecador, como nome, é um substituto em Lucas de gentio ou pagão (Lc 6, 23). Disto deduzimos que Zaqueu era um judeu, mas considerado como mau homem por suas relações com os pagãos. Esta maledicência recorda a realizada pelos escribas e fariseus porque Jesus recebia e comia  com pecadores (Lc 15, 2).  O mesmo repúdio de Mateus em 9, 10 em que os publicanos formavam parte do grupo repudiado.

A RESTITUIÇÃO: Porém, posto de pé, Zaqueu disse ao Senhor: Eis a metade dos meus bens, senhor, dou aos pobres e se de alguém tenho defraudado alguma coisa, restituo o quádruplo (8). Stans autem Zaccheus dixit ad Dominum ecce dimidium bonorum meorum Domine do pauperibus et si quid aliquem defraudavi reddo quadruplum.  Zaqueu de pé, como expressão semítica que precede a uma atuação específica, como de um ato solene ou ritual. Aqui se trata de uma promessa séria, uma espécie de voto de Zaqueu. Era uma réplica da confissão que se realizava na tarde do último dia festivo com esta fórmula: tenho afastado as coisas santas de minha casa [=o segundo dízimo e os frutos das árvores do quarto ano]. As entreguei ao levita [dízimo do levita] também fiz outra entrega ao estrangeiro, ao órfão e à viúva [dízimo dos pobres]. Mas aqui Zaqueu daria a metade de seus bens aos pobres. A esmola, ou melhor, o segundo dízimo devia ser gasto em Jerusalém; mas o terceiro e sexto ano de cada sete, esse dízimo devia ser entregue aos pobres segundo os textos bíblicos de Dt 14, 22-26; 28 e Dt 26, 12. É provável que Zaqueu tivesse esquecido este segundo dízimo e agora estava pronto a ressarcir sua falta. A segunda classe de restituição era o roubo mais ou menos encoberto através de exações frequentes entre a classe à qual ele pertencia como vemos em Lucas 3, 12-13. No caso de roubo, a lei de Êx 21,37 mandava que se o animal roubado fosse boi, ou ovelha o ladrão devia restituir cinco bois por um e quatro ovelhas por uma. Mais adiante o próprio Êxodo reforma esta lei pedindo o dobro se o animal for encontrado vivo. Caso o roubo fosse de uma oferenda devida a Javé ao restituí-la acrescentará de 1/5 do valor inicial (Lv 5, 15 e Nm 5,7). Pagar o duplo era comum para ladrões que roubavam tanto coisas inanimadas como animais, (Mishná Bava Kama) exceto se estes últimos fossem bois ou ovelhas, em cujo caso devia ser pago quatro vezes mais. Devido –diziam os rabinos- à dificuldade de saber a quem pagar, o arrependimento de pastores [considerados ciganos e ladrões na época] e de publicanos era muito difícil. Vemos como o AT entra no NT, o que indica duas coisas: a veracidade do relato e a autenticidade de Jesus como verdadeiro judeu que observava a Torah.

RESPOSTA DE JESUS: Disse-lhe então (o) Jesus: Hoje se realizou a salvação nesta casa, pois também este é filho de Abraão(9). A salvação implica uma acolhida por parte de Deus a alguém que esteve fora e que agora volta à casa do Pai. Por isso Jesus afirma que Zaqueu deve ser contado entre os verdadeiros filhos de Abraão para quem a promessa divina foi dada em pessoa e para seus verdadeiros descendentes. Afirmar que Zaqueu é filho de Abraão é dizer que a promessa pertence a Zaqueu, promessa que em Jesus se realiza com a entrada no Reino e não na entrada numa terra de leite e mel (Êx 3, 8) mas num estado de completa amizade e união com a vontade divina através do Senhorio de Jesus, o Cristo.

O FILHO DO HOMEM: Já que o Filho do Homem veio buscar e salvar o que estava perdido (10). Venit enim Filius hominis quaerere et salvum facere quod perierat. Neste caso significa eu, minha pessoa enquanto homem, que é visto e ouvido e que representa o plano divino de salvação. Por isso o que estava realmente perdido, em Cristo, encontra a salvação.

PISTAS: 1) Quem busca encontra e quem bate encontrará a porta aberta (Mt 7, 7). Daí que esta narração seja um claro exemplo de como se cumpre a palavra de Jesus. Jesus não conhecia Zaqueu; mas a intimidade dos homens era por ele conhecida (Mt 12, 25) devido a sua íntima e pessoal união com a divindade. E nesse momento, o Espírito Divino, que jamais O abandonaria desde seu nascimento (Lc 1, 35), deu-lhe a entender que alguém, com intenções honestas, o estava esperando. Portanto, Jesus atende essas intenções como pedido de ajuda e, entre a grande turba que o constrangia,  aponta Zaqueu como seu preferido, como notou a mulher hemorroisa (Mc 5, 30).

2) Muitas vezes pensamos; Ditoso Zaqueu que pode receber em sua casa Jesus, o Senhor,  como hóspede. Mas esquecemos que essa oportunidade é também nossa, ao receber a Eucaristia. Nessa comunhão tão íntima, Jesus não só entra em nossa casa, mas quer fazer parte de nosso corpo e de nossa alma. Ele entra em nossa vida definitivamente, compartilhando-a. Que temos a oferecer quando o recebemos?

3) A visita de Jesus transformou a vida de Zaqueu. Sem abandonar seu ofício como fez Levi (2, 14), Zaqueu olhou para o próximo por cima de seus interesses particulares. Ele compartilha seus bens dando a metade aos mais necessitados. Ele compensa seu anterior egoísmo escolhendo a mais fervorosa das compensações previstas na lei. Temos pensado, algumas vezes, que a nossa salvação depende também de uma mudança generosa em nossa vida, tipo Zaqueu?

4) De palavra e com alguns pequenos atos realmente admitimos a presença de Jesus como senhor em nossas vidas. Mas será que essas pequenas ações como a reza,  a assistência à missa e essa palavra de anuência ao seu Senhorio, serão suficientes para que Jesus possa afirmar, como no caso de Zaqueu, a salvação se realizou nesta casa? Não é verdade que nos falta vontade de seguimento e generosidade para com os necessitados?

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