Comentário Exegético – XXX Domingo do Tempo Comum (Ano C)

EPÍSTOLA (2Tim 4, 6-8. 16-18)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Paulo está preso pela segunda vez em Roma e considera que sua primeira defesa foi suficiente para obter a libertação, mas confia em Deus que, sem dúvida, dele obterá o melhor resultado para a propagação do evangelho que foi o destino final de sua vida. Por isso ele oferece como ofereceu sua vida sabendo que o termo da mesma está próximo e que se realizará como um sacrifício, como derramamento de sangue, ou seja, uma libação sagrada.

LIBAÇÃO: Pois eu já me ofereço em libação e o tempo apropriado de minha desintegração está próximo(6). Ego enim iam delíbor et tempus resolutiónis meae instat. LIBAÇÃO [spendomai<4689>=delibor] é o presente passivo do verbo spendö cujo significado é ser oferecido como uma libação [cerimônia religiosa em que vinho ou azeite eram derramados diante do altar]. Paulo sente que está para derramar seu sangue pelo testemunho que deu de Cristo como uma libação diante do altar. TEMPO APROPRIADO [kairos<2540>=tempus] kairos é uma medida de tempo: daí, tempo definido, tempo de crise, tempo oportuno, que temos traduzido por tempo apropriado, para distingui-lo do chronos que é tempo em geral. DESINTEGRAÇÃO [analysis <359> =resolutio] o grego tem o significado de desatar, dissolver, separar; e metaforicamente, de partir, como uma nave que levanta a âncora e parte para alto mar, que muitos traduzem por despedida ou partida; ou seja, morte. Paulo não tem esperanças e sabe que sua sina é o martírio.

O COMBATE: O bom combate combati, a carreira acabei, a fé guardei (7). Bonum certámen certávi, cursum consummávi, fidem servávi. BOM [kalos <2570>=bonus] originariamente kalos é belo, formoso, mas também excelente, precioso, daí, competente, e moralmente bom, nobre, honorável. Aqui o termo bom é o mais apropriado. COMBATE [agön <73>=certamen] o significado de agön é assembleia, ou o lugar da mesma, especialmente a arena ou o estádio. Daí esforço, luta, batalha, e até ação judicial, julgamento. Escrevendo aos tessalonicenses, Paulo diz que lhes falou o evangelho de Deus com grande oposição [agön] (1Ts 2,2) e em 1Tm 6, 12, fala do bom combate da fé [kalön agöna] e realmente na vida de Paulo encontramos mais do que traços dessa luta, segundo o que ele mesmo narra: Recebi dos judeus cinco quarentenas de açoites menos um, três vezes fui açoitado com varas, uma vez apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo; em viagens muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos da minha nação, em perigos dos gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre os falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas vezes, em frio e nudez (2Cor 11,24-27). CARREIRA [dromon<1408>=cursum]  o dromos é o curso ou percurso, especialmente usado como o percurso da vida, que é traduzido por carreira, ou melhor por curso da vida nos três versículos em que sai no NT (At 12, 35; At 20, 24 e esta de 2 Tm4, 27) este percurso está terminado. Paulo está no fim de sua vida, mas tem uma coisa a seu favor: manteve a fé. GUARDEI [tetërëka<5083>=servavi] tetërëka é o perfeito do verbo tëreö, guardar ou tomar conta de uma coisa, conservar. Ele tem aqui o mesmo significado que encontramos em Mt 19, 17, :se queres entrar na vida eterna guarda os mandamentos. A fé se transforma num preceito, o primeiro, sem o qual, a entrada no reino está fechada. E essa fé tinha entre os judeus uma expressão única: Jesus Cristo, ou Jesus é o Messias. E como disse o Senhor a Pedro, é o meu Pai que to revelou (Mt 16, 17).

A VITÓRIA: Desde agora, a coroa da justiça está me guardada a qual me dará o Senhor naquele dia, o justo juiz, não só a mim, mas também a todos os que amarem a sua aparição (8). In réliquo repósita est mihi coróna iustítiae, quam reddet mihi Dóminus in illa die iustus iudex; non solum autem mihi, sed et iis qui díligunt advéntum eius. COROA [stefanos< 4735>=corona] é diferente de diadema que era a coroa dos reis. O diadema era uma cinta branca que rodeava a cabeça, distintivo da autoridade real e logo geralmente adornada com adornos diversos. Os imperadores romanos  se apresentavam com a coroa triunfal ou radiante, inicialmente de folhas de lauro, mas depois de ouro no passeio triunfal até o capitólio.  Stefanos era a guirlanda de galhos de oliveira ou de folhas de hera, que recebiam os vencedores dos jogos olímpicos e rodeava sua cabeça. Esta é a coroa da vitória após a luta no agön [arena] que Paulo diz está reservada para ele. Paulo joga com a palavra agön que também pode designar um tribunal e diz que o justo juiz lhe dará essa coroa de vencedor. NAQUELE DIA [en ekeinë të ëmera=in illa die] é uma frase usada pelo próprio Jesus em Mt 7, 22: Muitos me dirão naquele dia Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? E em teu nome não fizemos muitas maravilhas? Pois só aquele que faz a vontade de meu Pai entrará no reino dos céus (idem 21). Também Lucas em 17, 31  se refere à destruição do templo e ruína de Jerusalém. Em At 17, 31 lemos, no discurso de Paulo no Areópago que Deus tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo por meio do homem que destinou. E esta fé de Paulo aparece também e 2 Ts 1, 10,  em que nesse dia vier para ser glorificado em seus santos. Podemos falar de dois dias diferentes: 1º) o dia da destruição do templo. 2º) o dia do juízo final. Provavelmente Paulo fala do dia da destruição de Jerusalém, próximo, de forma tal que Jesus afirmou: Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam (Mt 24, 34). OS QUE AMAM SEU ADVENTO [epifaneia<2015>=adventum] mais do que advento é a manifestação ou demonstração visível de sua presença. Como temos comentado, esta demonstração pode ser moral muito mais do que física; e deu-se evidentemente no ano 70 com a destruição do templo, assim como em outras circunstâncias posteriores. A última em 1989 com a queda do Muro de Berlim.

SOLIDÃO: Na minha primeira defesa ninguém me assistiu, mas todos me desampararam. Que não lhes seja imputado! (16). In prima mea defensióne nemo mihi ádfuit, sed omnes me dereliquérunt: non illis imputétur. DEFESA [apologia <627>=defensio] apologia é a defesa verbal no tribunal ou também um argumento ou afirmação bem argumentada, própria para persuadir. Paulo quer dizer que não teve um advogado nessa sua primeira presença diante do tribunal em que foi julgado. Paulo muda de assunto e nestes versículos nos dá conta de sua situação no cárcere. Está só. Unicamente Lucas está com ele (ver 11). E nesta situação só se queixa de um tal Alexandro, de ofício ferreiro, a quem deixa o Senhor como vingador. Perdoa os outros que o abandonaram.  Mas teve a seu lado o Senhor como diz em versículos seguintes.

ASSISTÊNCIA DIVINA: Porém o Senhor assistiu-me e me fortaleceu, para que por meu meio o anúncio fosse cumprido e ouvissem todas as nações  e fosse livre da boca do leão (17). Dóminus autem mihi ádstitit et confortávit me, ut per me praedicátio impleátur, et áudiant omnes gentes; et liberátus sum de ore leónis. TODAS AS NAÇÕES [panta ta ethnë<1484>=omnes gentes] ethnos significa multidão, companhia, em especial se são gente de uma mesma raça ou gênero; por isso, se emprega para designar uma tribo ou nação. Neste caso traduz o ha goyim <1471>hebraico, como em Ez 23, 3º: Estas coisas se te farão, porque te prostituíste após os gentios [aharei goyim] e te contaminaste com os seus ídolos. Paulo emprega ta ethnë para os cristãos não judeus. Aqui, são as nações ou raças para distingui-las da nação judaica ou eretz  Israel. BOCA DO LEÃO:  No AT encontramos a frase em Sl 22, 21: Salva-me da boca do leão, sim, ouviste-me, das pontas dos bois selvagens. E em Amós 3, 12: Assim diz o Senhor: como o pastor livra da boca do leão as duas pernas ou um pedaço da orelha, assim serão livrados os filhos de Israel que moram em Samaria. Com esta frase Paulo espera ser livre da morte, como foi o seu caso na primeira vez  que esteve preso em Roma, ou talvez, visto que na primeira audiência ele soube apresentar a sua apologia ou defesa (vers 16) de modo tal, que pareceu convincente e não foi condenado de imediato.

DESEJO FINAL: Livrar-me-á o Senhor de toda obra má e guardará para seu reino celestial. Ao qual a glória pelos séculos dos séculos. Amém. (18). Liberávit me Dóminus ab omni ópere malo et salvum fáciet in regnum suum caeléste, cui glória in saécula saeculórum. Amen. Cremos que Paulo insiste em que sua morte [obra má] por parte de seus inimigos não está próxima  e, portanto estará vivo para a vinda do Reino que ele acredita estar próxima, como parousia. Uma outra interpretação é que, tendo em vista a sua morte Paulo pensa que estará cedo com Cristo no céu. O final é uma doxologia frequente em Paulo  (Ef 3, 21; Fp 4, 20 e Tm 1, 17), que termina com o Amém em todas essas passagens como os judeus terminavam suas súplicas nas sinagogas. De donde podemos tirar como consequência lógica que Jesus é para os cristãos o que era jahveh para os judeus.

Evangelho (Lc 18, 9-14)

O FARISEU E O PUBLICANO

(Pe Ignacio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Esta é uma parábola própria de Lucas. As circunstâncias, com o templo de fundo, e a oração como ambiente, são as mais sagradas que podemos encontrar dentro da religiosidade da época, para descrever os momentos mais sublimes das relações entre Deus e o homem. A parábola emite, pois, um juízo profundo de valor sobre a intimidade das pessoas e a ação divina, que exalta, ou rejeita, o conceito que de si mesmas abrigam. Mas também é uma parábola de contrastes entre dois homens, que significam o máximo e o mínimo em religiosidade. E finalmente, é uma lição suprema sobre o orgulho e seu oposto, a humildade. A parábola é dirigida aos que, seguindo a lei, desprezavam os outros homens que consideravam ladrões, perversos e adúlteros. Esses homens, honestos, erigidos em justos, auto-suficientes e seguros de si mesmos, eram os fariseus, embora Jesus não usasse este termo para descrevê-los no início da parábola, próprio do evangelista. A continuação, no exemplo que é sempre uma parábola, usa como modelo dos homens honestos um fariseu, e, como espelho dos outros homens, um publicano. São os extremos, vistos desde a perspectiva tradicional do momento. No juízo que o evangelista emite sobre os fariseus, o mais negativo não é que se gabassem por serem corretos e de conduta imaculada [dikaios], mas o desprezo com que olhavam os demais homens. Nisso podemos afirmar que sua conduta não era tão louvável como eles pensavam. A pobreza, ou melhor, a mendicância de quem pede perdão e nada exige de Deus é a que ganha o favor divino e obtém, além do pedido, a graça da amizade com Deus. As obras humanas, boas ou más, não são razão suficiente para obter por si mesmas a justificação [ dikaiöisis <1347>] que é um presente [ dörema<1434] ao qual o homem não tem direito algum, mas que não é negado a quem tem retas intenções [bemaventurados os puros de coração, porque verão a Deus, Mt 5,7].

CONTRA OS ENVAIDECIDOS: Disse, pois, também contra alguns dos que a si mesmos, persuadidos como sendo honestos, e que desprezam os demais esta parábola (9). Dixit autem et ad quosdam qui in se confidebant tamquam iusti et aspernabantur ceteros parabolam istam. Temos respeitado os tempos dos dois verbos – acreditar [pepoithotas] e ser [eisin]. A tradução literal de pepoithotas é persuadidos, como um particípio passado, e de eisin é são, em presente. Querendo conservar o grego original temos traduzido por: persuadidos como sendo [que são no original] honestos. A ideia é de que existiam sujeitos que acreditavam na sua honestidade [é a justiça grega] e desprezavam a moral dos outros como sendo condenável. A justiça é o que hoje chamamos de probidade [rightness em inglês]. Daí, o homem justo era aquele que cumpria exatamente a LEI, tanto a escrita [Torá] como a transmitida oralmente [Mishná], como é apelidado José, esposo de Nossa Senhora (Mt 1, 19). A ênfase está, não tanto em sua vanglória como homens íntegros, mas no desprezo com que consideravam os outros seres humanos. A lógica nos invita a descobrir a causa desse desprezo, que era a falta de cumprimento da lei, como vemos no versículo 11. Na realidade, desprezavam o ham haaretz, o povo simples, que não estudava nem entendia as leis. Como sempre, Jesus faz uso do exemplo, da parábola, para que aquele que quiser compreender, entenda.

O CONTRASTE: Dois homens subiram ao templo para orar, um deles fariseu e o outro publicano (10). Duo homines ascenderunt in templum ut orarent unus Pharisaeus et alter publicanus. O TEMPLO: Era o lugar do sacrifício, mas também da oração para todos os povos (Is 56, 7),  que Jesus cita ao expulsar os vendilhões do templo. Era a casa da comunicação com Deus, onde Ele morava com seu povo.  Como vemos na conduta de Moisés, a Tenda [chamada da Reunião] ou Tabernáculo, era o lugar em que Moisés entrava para se comunicar com Javé (Êx 33, 7-11). Lugar em que Ana orava (1 Sm 1, 10) e no qual Salomão, na frente do altar (1 Rs 8, 22), orou ao ser declarado rei. No NT, a hora nona era a hora da oração no templo. Era precisamente a hora do sacrifício vespertino, ou seja, três da tarde, como vemos em At 3,1. Paulo dirá de si mesmo, que entrou no templo para orar e caiu em êxtase (At 22, 17). Os rabinos declaravam que a oração da assembleia, embora existissem pecadores entre eles, nunca ficaria sem ser ouvida por Deus. De modo que, quem não reza com e em comunidade, é um mal vizinho. Por isso, a sinagoga era chamada casa de oração. Do mesmo modo dirão os sábios: quem reza na casa do Senhor  é como se oferecesse uma oferta pura. Pensavam, pois, que esse era o melhor lugar para que suas preces fossem ouvidas. De fato as orações das sinagogas sempre tinham o plural como agente das mesmas, exatamente como o Pai-Nosso, ensinado por Jesus. Segundo Jesus, fariseus e escribas hipócritas adoravam rezar de pé nas sinagogas. Parece que existiam espaços determinados nas sinagogas para rezar. Aliás, as sinagogas foram especialmente lugares de oração segundo Maimônides, e deviam ser construídas sempre que houvessem dez homens para se reunirem. O fato de ficar de pé era costume entre os judeus e por isso também o publicano reza do mesmo modo; costume que eles atribuíam a Abraão que se levantou de madrugada (Gn 19, 27) e a Davi (2 Sm 7, 18). Os fariseus acostumavam rezar nas esquinas das ruas porque assim eram mais visíveis suas orações. Também nas sinagogas os assistentes se levantavam para orar (Mt 6, 5). É lógico que essa ostentação, levava-os a ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes (Mt 23, 6). Por isso estava nosso protagonista na frente no templo, ao contrário do publicano, que ocupava um lugar distante (13). Não sabemos o lugar específico de oração dentro do templo. Provavelmente seria o átrio dos  israelitas, onde podiam entrar os homens adultos, na hora do sacrifício, tanto matutino como vespertino, uma vez ultrapassada a porta de Nicanor, separado do átrio dos sacerdotes por um muro de pouca altura que deixava ver os sacrifícios. A estes acompanhavam orações, como vemos por Atos 3,1. OS FARISEUS: A palavra original era parishim, que significa separados, no sentido de escolhidos, ou melhor, os que não querem se misturar com o povo [o hám-haaretz comum], para não se contaminarem com as impurezas destes últimos. No tempo de Jesus, seu número era de 20 mil, pequeno, ao que  parece, mas enormemente influentes por sua vida, aparentemente santa. Jesus denunciou a hipocrisia de muitos deles que, tinham como fim de seus jejuns e orações, serem vistos pelos homens, mas que no seu interior eram sepulcros de corrupção e perversidade que Jesus chamava com razão sepulcros caiados (Mt 32, 27) porque a tinta branca cobria a negrura interior dos mesmos. Sem dúvida, que eles estavam na mira no início da parábola: alguns que confiavam em si mesmos como corretos [cumpridores da Lei] e desprezavam o resto, ou os outros, como traduz a vulgata. Mas não eram só os fariseus os atingidos, de início, por esta parábola. Sem dúvida que aqui existe uma intencionalidade mais ampla do que a palavra fariseu determina. Porém um fariseu típico era o exemplo  mais apropriado daqueles que confiavam em suas obras; e o publicano, do pecador que tinha transgredido todas as principais leis mosaicas. Os fariseus eram uma das três categorias religiosas do judaísmo pós-exílio, formados em círculos não sacerdotais, de leigos dedicados à interpretação da Torah. Mas, como grupo organizado, surgiram no tempo dos Macabeus, pouco antes de João Hircano (134-104 aC). Sua moral estava baseada na estrita interpretação, tanto da lei escrita como da que provinha da tradição (Mc 7, 7-9). A meta de todo judeu era conservar uma nação santa, consagrada e dedicada ao Deus de Israel, cujos meios consistiam, segundo eles, na educação e conhecimento da Torah. Seu credo era formado pela observância estrita do sábado e dias festivos em honra do Senhor e o cumprimento exato das leis da pureza ritual, no pago dos dízimos e nas dietas alimentares, na crença da liberdade humana, sob o controle da providência divina, e sua fé na ressurreição, nos anjos e no Messias. Nisto se diferenciavam dos saduceus (At 23, 8), Os fariseus formavam um grupo religioso, que se distinguia particularmente por sua estrita observância das prescrições religiosas e por sua interpretação formalista da Lei, em boca de Flávio Josefo. Podemos dizer que os fatos de que se gabava o nosso fariseu eram reais. O PUBLICANO: Publicanos eram, na antiga Roma, as pessoas encarregadas de cobrar os impostos, normalmente de origem equestre, pois os senadores não podiam participar. Nos tempos da república, as arrecadações eram realizavas por sociedades financeiras [societas publicanorum] que pagavam o total do importe do imposto ao Estado antes de proceder à arrecadação do mesmo. César modificou no ano 47 aC o sistema na Palestina, reduzindo os impostos e declarando os anos sabáticos isentos de tributação. Nos tempos de Jesus, havia dois tipos de taxas: impostos diretos sobre a renda e o patrimônio, e impostos sobre mercadorias e alfândegas, estes últimos, precisamente, eram os que eram leiloados para que fossem arrecadados pelos architelones [chefes de publicanos], cujos agentes recebiam o nome de telones, palavra que significa escritório ou banca de trabalho comercial. Estas bancas estavam distribuídas nas portas da cidade e nos acessos das mesmas como pontes e portões das muralhas das mesmas. Na Galileia dependiam de Herodes Antipas e, nos territórios do sul, do governador romano. Por terem de repor o dinheiro leiloado, tornava o sistema de arrecadação um dos mais abusivos e inescrupulosos de todos os conhecidos. O publicano tinha muito de que se arrepender pelos abusos e excessos cometidos no exercício de seu trabalho.

ORAÇÃO DO FARISEU: O fariseu, posto de pé, orava para si: (o) Deus, te agradeço porque não sou como o resto dos homens, ladrões, malvados, adúlteros, nem tampouco como este, o publicano (11).Jejuo duas vezes na semana, pago o dízimo de tudo quanto possuo (12). Pharisaeus stans haec apud se orabat Deus gratias ago tibi quia non sum sicut ceteri hominum raptores iniusti adulteri vel ut etiam hic publicanus ieiuno bis in sabbato decimas do omnium quae possideo. Posto de pé, orava para si [de si para si], que outros traduzem como olhando a sua conduta. Ele dá graças [eucharisto]. A razão é que não sou como os demais homens(11). Aparentemente é uma oração que qualquer um de nós poderia subscrever como sua. Dar graças a Deus é uma das melhores formas de orar. Agradecemos sempre as coisas boas. (Por que também não o fazemos com os infortúnios e os pecados?) A única dificuldade da oração do fariseu era a sua comparação com o pecador que é realmente desprezado, [como este publicano] e também com o resto dos homens. A parte negativa dos mesmos homens da qual o fariseu não comparte, é de serem ladrões, injustos [pecadores], adúlteros. Realmente, o juízo dos homens, formado pelo fariseu, em geral, não é tão incorreto. A maioria entraria numa dessas três categorias certamente. A parte positiva da qual ele realmente se gloria como atuação livre e meritória é que jejua duas vezes na semana [Sábado segundo o grego e a Vulgata latina] e paga dízimo de tudo quanto possui. Pelo que respeita ao sábado ou Shabat, ele tinha dois sentidos: o dia do sábado e a semana. Sem dúvida que aqui este último sentido é o que prevalece. O JEJUM: Os taaniyot [dias de jejum] eram sinais de arrependimento, luto ou petição de uma assistência divina especial [caso da rainha Ester em 4, 15]. Como os árabes durante o Ramadão, o jejum hebraico supunha total abstenção de comida e bebida. Os jejuns dos dias da Expiação [Yom Kippur] (Lv 23, 27-32) e do dia 9 do mês de Av, dia da destruição do primeiro e segundo templo de Jerusalém, eram totais, de ocaso a ocaso [o dia se contava assim no tempo], mas os jejuns, em geral, duravam apenas de sol a sol. Os que jejuavam costumavam sentar-se no chão, se vestir de aniagem [o famoso saco] e cobrir a cabeça com cinzas (ver Mt 6, 16). Os dias de jejum entre os fariseus eram segunda e quinta; quinta, por afirmar a tradição, embora um tanto tardia, que foi o dia da semana em que Moisés desceu do monte após os quarenta dias, e segunda por ser o dia de sua ascensão. Mas parece mais provável que a escolha dos dias era pela sua separação apropriada com respeito ao sábado e entre os dias da semana. O DÍZIMO: Era o Maasser, o imposto de dez por cento de produtos agrícolas, destinado ao sustento dos levitas (Dt 14, 22-23), de famílias necessitadas, etc. Era uma oferenda anual que se pagava no dia das cabanas ou tabernáculos, uma vez terminada a colheita. A entrega era em espécie, mas como era difícil levar ovelhas, grãos, etc, vendiam-se estes no lugar de origem e logo eram comprados em Jerusalém para entregarem o produto da compra no templo (Dt 14, 25-26). Como estrito observante da Lei, o fariseu pagava o dízimo até das coisas mínimas como a hortelã [menta], a erva-doce [anis] e o cominho, que Jesus declarava em Mt 23, 23. Como vemos, são ervas próprias de condimentos, usadas minimamente como alimento. A estas minúcias chegava à meticulosidade com que os fariseus observavam a Lei. Vejamos uma oração de R. Judá que afirmava que devia dar graças por três razões principais: Bendito sejas Senhor, porque não me fizeste um gentio. Bendito sejas Senhor, porque não me fizeste um ignorante e inculto. Bendito sejas Senhor, porque não me fizeste uma mulher. Por sua parte a mulher repetirá as duas primeiras e subsistirá a última por: bendito sejas Senhor porque me fizeste como desejaste. Tudo isso prova que a oração do fariseu não era uma invenção de Jesus.

ORAÇÃO DO PUBLICANO: Também o publicano, de longe, de pé, não queria nem os olhos levantar ao céu, mas golpeava no seu  peito, dizendo: Tem misericórdia de mim, o pecador (13). Et publicanus a longe stans nolebat nec oculos ad caelum levare sed percutiebat pectus suum dicens Deus propitius esto mihi peccatori. De longe, como correspondia a quem se sente o mais humilde de todos os homens, como desprezado por Deus, como quem tem cometido um grande crime e, portanto, nem olhar podia para o seu antagonista, batia no peito. Este gesto, não se encontra no AT, mas Flávio Josefo fala dele como sendo sinal de arrependimento. Talvez porque se considerava que o coração era a fonte de maldade como declarará Jesus em Mt 15, 19. A Igreja usou este gesto no confiteor antes da Missa como sinal do pecado cometido e arrependimento: mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa.  A oração do publicano é uma simples petição de perdão, indicando que o necessita porque se confessa pecador, portanto afastado de quem agora está se aproximando. O grego com o artigo [o pecador] indica que ele, por seu ofício, se incluía entre os afastados de Deus, como um gentio e idólatra.

O JUÍZO DE JESUS: Digo-vos: Desceu este justificado para a sua casa, porque todo (aquele) que se exalta a si mesmo será humilhado, mas o que se humilha a si mesmo será exaltado(14). Dico vobis descendit hic iustificatus in domum suam ab illo quia omnis qui se exaltat humiliabitur et qui se humiliat exaltabitur. A tradução corrente é que este voltou para casa justificado e o outro não. Porém, não parece ser esta a melhor tradução do grego, que reflete em sua estrutura um comparativo hebraico. Vejamos essa tradução: Digo-vos que este [o publicano] voltou para sua casa justificado em comparação com o outro [fariseu]. A vulgata traduz fielmente: descendit hic justificatus in domum suam ab illo (14 a). Geralmente nós temos pensado que o fariseu foi reprovado não tanto por uma oração em que reconhecia a bondade de Deus em sua vida, mas pela falta de humildade com respeito ao próximo; e que o publicano era absolvido de seus pecados por reconhecer os mesmos e tentar o perdão do único que podia apagar sua dívida, num ato de profunda humildade. A justificação aqui vista sob o aspecto de um particípio perfeito, dedikaiómenos, é uma passiva teológica em que a ação de Deus é definitiva: Deus o perdoou, o admitiu como amigo em comparação [não oposição] com o outro, que não fez a oração do agrado divino. MORAL DA HISTÓRIA: O que se exalta será humilhado, mas o que se humilha será exaltado. Parece um tanto fora de lugar esta frase como moral da história. O mais lógico seria: a melhor oração, a que traz o favor divino, seria aquela em que o orante se apresenta como indigente diante de Deus. Mas Lucas gosta de exaltar a pobreza e, com ela, a humildade. Por isso, aqui repete o provérbio que tinha sido citado por Jesus, ao ver a luta entre os convidados, pelos primeiros lugares na mesa do jantar (14, 11). Já Ezequiel tinha escrito: saberão todas as árvores do campo que eu, Javé, é que abaixo a árvore alta e elevo a árvore baixa (7, 24). Assim passamos de um segmento particular, como é a oração, a uma norma geral, como é a escolha e o proceder divinos na sua total amplitude.

PISTAS: 1) Na anterior dominica vimos a constância na oração; hoje contemplamos como a sinceridade e humildade conquistam o favor divino. Não basta qualquer oração; é necessário que saia do fundo da indigência humana para provocar a ação divina. O fariseu busca um Deus que aprove sua vida e nada pede. Nada necessita: é a oração do auto-suficiente. Deus nada tem a fazer diante de semelhante atitude.

2) Devemos modificar nossa maneira de julgar nossos semelhantes. Geralmente fixamos nossa atenção nos seus defeitos, nos seus pecados, nos seus vícios. Por que não olhar neles as coisas boas, as excelências, as virtudes? Sem dúvida que seremos mais justos e teremos uma visão mais otimista do mundo.

3) No mal, no pecado, achamos a miséria humana, a derrota, a impotência, quando não a ignorância, nunca a grandeza. É a mesma miséria que encontramos na doença, no sofrimento, na morte. Se esta última nos oferece uma palavra de compaixão e de desculpa, por que não desculpamos e perdoamos a pessoa que comete esse mal, que, por outra parte, tão absolutamente reprovamos?

4) O perdão é o maior dom que podemos receber de Deus. A humildade, o reconhecimento de nossa insignificância, é a mais excelente disposição para recebê-lo. E todos necessitamos desse perdão.

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